“Se eu pisar no seu pé, vai te machucar. E se você pisar no meu pé, quem se machuca sou eu.” Essa frase, aparentemente óbvia, fez parte de uma série de afirmações de Shaquille O’Neal para alertar sobre como seu jogo estava sendo prejudicado pela arbitragem nos seus últimos anos de carreira. Shaq alegava que enquanto qualquer contato simples da sua parte contra armadores infiltrando no garrafão era considerado falta graças à diferença de tamanho envolvido, jogadores menores podiam ser fisicamente muito agressivos contra ele sem que isso resultasse numa falta. Os golpes que recebia de jogadores menores machucavam, atrapalhavam e limitavam seu jogo, mas não PARECIAM faltosos porque Shaq era um muro de tijolos que passava a impressão de não estar sentindo absolutamente nada.
Pivôs muito físicos sempre passaram por esse problema por um motivo simples: faltas são uma questão de interpretação por parte dos juízes responsáveis por apitar o jogo. São eles que devem levar em consideração se o contato foi exagerado ou não, se interferiu no arremesso, se ocorreu durante a passada rumo à cesta ou no ato de arremesso. Essa interpretação depende de uma aplicação teórica a um conjunto de informações recebidas pelos sentidos, e os sentidos enganam-se facilmente quando o assunto é colisão de corpos. Armadores pequenos jogando-se em cima de um pivô imenso parecem estar lhe fazendo carinho; uma falta banal feita por um jogador enorme em cima de um armador pequeno pode facilmente ser compreendida como uma falta grave, intencional, pois o corpo miúdo será arremessado ao chão como uma mosca. Quando Shaquille O’Neal avisa que o contato que recebe de jogadores menores do que ele também é capaz de atrapalhar e machucar e, portanto, deveria ser igualmente punido como falta, está nos dizendo que a percepção do impacto não corresponde à realidade das quadras de basquete.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”O braço de Shaq e o braço de Perkins se misturam porque os dois são feitos de tijolos”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/03/Shaq.jpg[/image]
Essa diferença de percepção era minimizada pelo fato de que a NBA sempre foi uma liga muito conivente com o contato físico entre jogadores. Grandes ou pequenos, os jogadores sempre foram incentivados a chocar-se jogo após jogo com punições previstas apenas para os contatos mais graves. Jogando de 1959 a 1972, com média de 45 minutos por jogo na carreira, Wilt Chamberlain somou 1045 jogos na NBA e saiu de quadra com 6 faltas em absolutamente NENHUM deles. Parte disso era mérito de Chamberlain, treinado desde o ginásio para não comprometer seu time indo para no banco por excesso de faltas, e parte disso era o medo que muitos adversários tinham de enfrentá-lo no garrafão, preferindo manter uma distância segura. Mas uma carreira inteira sem cometer 6 faltas num jogo só era possível dentro de um sistema de regras muito generoso com o contato físico dentro do garrafão.
Mas a partir do final dos anos 80 as regras foram limitando o contato gradualmente e os juízes passaram a ser mais rigorosos na interpretação de faltas. Aos poucos a vida de Shaquille O’Neal ficava cada vez mais difícil, não apenas porque sofria contato de seus defensores que não aparentavam ser faltosos mas comprometiam seus arremessos, mas também porque os jogadores de perímetro passaram a ter mais proteção das regras para atacar o aro e Shaq começou a colecionar faltas tentando defendê-los. Lembro bem de sua passagem pelo Cavs em 2010, limitado por lesões, mas ainda tendo um impacto enorme ao lado de LeBron James quando estava em quadra. Na semi-final da Conferência Leste, enfrentando o Celtics, recordo de um jogo em que Shaq saiu de quadra com 5 faltas ainda no terceiro quarto e não voltou mais para a partida. Foi quando percebi que mesmo sendo uma força enorme no garrafão, as regras da NBA haviam lhe custado a eficiência ao ponto de que não conseguia mais ficar em quadra. Aquele Cavs teve o melhor recorde de vitórias da NBA na temporada e mesmo assim perdeu a semi-final para o Celtics, com o Shaq no banco com excesso de faltas assistindo à série ir pelo ralo. Shaq até tentou prolongar sua carreira depois disso, mas já dava para ver ali que a aposentadoria era inevitável se ele não topasse alterar o seu modo de jogar, algo para o qual já não lhe restava mais tempo e nem vontade.
Quanto mais restrições ao contato no garrafão – e ao uso das mãos na defesa do perímetro, também – maior será o papel dos árbitros e de suas interpretações na hora de decidir se um jogador fica ou não fica em quadra. É possível ver como essas interpretações podem ser subjetivas através de uma lista com todos os árbitros da NBA e a quantidade de faltas que costumam marcar por jogo. O árbitro que mais apita frente ao contato é Zach Zarba, com 46 faltas apitadas por jogo – exatamente 10 faltas a mais do que o árbitro que menos faz uso do apito, Derek Richardson. A interpretação não fica restrita apenas ao número de faltas e ao impacto visual do contato envolvendo jogadores maiores, interferindo também no lado que recebe essas faltas: enquanto os árbitros tendem a uma paridade entre faltas apitadas para o time visitante e para o time da casa, oscilando pouca coisa para fora da marca de 50% para cada, temos pequenas aberrações como o árbitro CJ Washington, que apita quase 61% de suas faltas contra o time visitante, favorecendo muito os times que jogam em casa.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Enquanto você lê esse post, Harden cobrou 100 lances livres”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/03/Harden.jpg[/image]
É fazendo uso dessa variação de interpretação e de percepção dos árbitros que alguns jogadores encontram seu caminho ao invés de ficarem no banco de castigo como Shaquille O’Neal em seu melancólico fim de carreira. James Harden, por exemplo, está no seleto grupo de jogadores a ter convertido mais de 700 lances livres numa temporada – apenas 10 outros jogadores conseguiram essa proeza na história da NBA. Com 657 lances livres acertados nessa temporada até agora, é capaz que James Harden consiga de novo, assim como Kevin Durant conseguiu na temporada 2009-10 e na 2013-14. O que os dois possuem em comum, além de terem jogado juntos pelo Thunder, é a capacidade de explorar as regras de contato ao máximo, usando seus corpos aparentemente frágeis – Harden é relativamente baixo, Durant é mais magro do que os jogadores que o defendem – para forçar contato, fazendo o impacto PARECER mais prejudicial a eles e assim cavando falta atrás de falta. Além disso, os dois são especialistas num movimento chamado “rip-through”, que é colocar seus braços com a bola EMBAIXO das mãos do defensor adversário e de repente jogar suas mãos pra cima, forçando o contato e tirando os pés do chão para FINGIR um arremesso que não teria motivo nenhum para ser tentado naquela situação. É basicamente um truque para conseguir lances livres em cima de qualquer marcador que cometer o erro de marcar muito de perto.
Como os braços do Durant possuem quilômetros de distância, ele consegue explorar o contato mesmo com os marcadores mantendo certa distância. Nossa percepção natural é achar que um jogador mais “frágil” foi prejudicado pelo contato com um rival mais forte, os árbitros não conseguem evitar essa noção, as regras tentaram impedir a pancadaria que tomou a NBA nos anos 80, e o resultado é uma geração de jogadores simplesmente explorando as regras para poder cobrar o máximo de lances livres que conseguirem. O engraçado é que estão em excelente companhia: todos os jogadores aposentados que converteram mais de 700 lances livres numa temporada estão no “Hall da Fama” da NBA. De novo, é uma questão de percepção: conseguir pontos fáceis contra adversários maiores e mais fortes faz com que pareçam grandes heróis com um jogo de altíssima eficiência.
Curiosamente, a técnica do vídeo acima está oficialmente PROIBIDA pela NBA desde 2012. Isso não quer dizer que jogadores não possam mais forçar esse contato de baixo para cima, mas sim que fazê-lo não deveria resultar mais em lances livres, apenas em uma falta normal. O problema é que mesmo com essa orientação, a gigantesca maioria dos árbitros continua mandando os jogadores para a linha dos lances livres, especialmente porque grandes arremessadores (além de Durant e Harden, gente como Stephen Curry e até Jamal Crawford) conseguem forçar o contato e transformar o arremesso FINGIDO e IMPROVÁVEL em uma bola que chega ao aro – ou às vezes até mesmo entra na cesta – e fica difícil para o árbitro manter a alegação de que não havia real intenção de arremesso, apenas de cavar a falta.
Nessa temporada, Durant cobrou “apenas” 400 lances livres – foi passado para trás por jogadores como DeMar DeRozan, Russel Westbrook, Isaiah Thomas e Paul George. Todos eles são jogadores menores do que seus defensores ou então armadores muito agressivos, capazes de explorar a percepção de que qualquer contato neles parece UM ACIDENTE DE TREM, jogando seus corpos para cima dos poucos jogadores de garrafão que restam. O único jogador do Top 15 em lances livres convertidos a não estar nesse padrão é DeMarcus Cousins, esse bizarro armador no corpo de uma montanha de titânio, e que ataca a cesta com tal ferocidade, e que vende o contato com tal veia hollywoodiana, que consegue ficar atrás apenas de James Harden em lances livres cobrados por jogo. O problema é que Cousins sofre justamente por também estar do outro lado: ele é o lider de faltas por jogo na NBA, prejudicado por todos aqueles armadores que vendem o contato contra ele. Suas reclamações, ao contrário da afirmação coerente de Shaquille O’Neal que abre o texto, acontecem dentro da quadra em forma de urros contra os árbitros que limitam indiretamente seus minutos. Não à toa, Cousins é também o líder da NBA em faltas técnicas.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Mais um dia normal na vida de DeMarcus Cousins”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/03/Cousins.jpg[/image]
Isso significa que a maneira como os árbitros interpretam o contato tem impacto dos dois lados da quadra: temos jogadores mais leves forçando contatos aleatórios e liderando a NBA em lances livres cobrados, e jogadores mais fortes e pesados liderando a NBA em faltas cometidas por jogo. O único armador na lista dos 10 jogadores que mais cometem faltas nessa temporada é Patrick Beverley, cuja única função é sufocar o adversário e sair se cometer faltas em demasia no processo. Na temporada passada, enquanto dúzias de pivôs cometeram mais de 4 faltas a cada 36 minutos de média, apenas Ronnie Price e Matthew Dellavedova atingiram a marca como armadores, com gente como Beverley e Tony Allen próximos – por serem muito agressivos – enquanto Jeremy Lin e Aaron Brooks se aproximam da marca por serem defensores muito ruins explorados pelos adversários.
O fato de que alguns armadores também cometem muitas faltas mostra que embora as regras tenham dificultado um pouco mais a vida dos pivôs, elas dificultaram de fato a vida de todo mundo: defender agora é um exercício não físico, mas coletivo, de ocupação de espaços e dobras constantes. Os defensores mais agressivos ou mais fracos tecnicamente acabarão sendo punidos por isso, o que é normal. Mas o fato de que existem pivôs que mal conseguem ficar em quadra, como Cousins, e armadores QUEIMANDO NOSSAS RETINAS com lances livres cobrados sem parar como James Harden são menos fruto das regras e mais fruto de uma interpretação atrapalhada incapaz de perceber que o tamanho e a força dos jogadores não deveria alterar o conceito de falta estabelecido. É esse o problema que a NBA precisa enfrentar daqui para frente: uma padronização dos seus árbitros rumo ao fim da exploração do contato forçado e permitindo que os pivôs continuem podendo defender o aro. Sem isso a NBA corre o risco de perder ainda mais jogadores de garrafão, além de não encontrar resposta para a crítica crescente de que as transmissões televisivas se alongam cada vez mais com os lances livres cobrados. Os fãs do Rockets que o digam.