Pivôs que arremessam de três pontos sempre existiram, mas nunca como padrão ou como “necessidade tática” – eram apenas pivôs capazes de arremessar de longe e que, em casos extremos, eram acionados longe da cesta. Pivôs que se especializaram nas bolas de três pontos por conseguirem um aproveitamento acima da média foram raros na história da NBA e vistos como “curiosidades”, pequenas e interessantes aberrações sem muito espaço nos esquemas táticos mais tradicionais. Alas de força que arremessavam no perímetro começaram a conquistar espaço nos anos 80, se tornando verdadeiramente populares nos anos 2000, mas pivôs resistiram à tendência – afinal, alguém precisa ficar próximo ao aro para finalizar jogadas e lutar pelos rebotes, não é mesmo?

A revolução tática (que é, também, uma revolução estatística) pelo qual o basquete passou nos últimos anos passou a reconsiderar a necessidade de um pivô que se mantenha próxima à cesta. Vários times começaram a experimentar, por curtos momentos ao longo dos jogos, com pivôs que se afastavam do aro. Técnicos como Don Nelson e Mike D’Antoni começaram a jogar sem pivôs ou improvisar outros jogadores para a posição. Mas foi Erik Spoelstra quem popularizou a tática do “pace and space”, algo como “ritmo e espaçamento” (que soa terrivelmente pior em português), baseada em distanciar os jogadores de garrafão do garrafão. Spoelstra foi para as Finais da NBA quatro vezes consecutivas com esse esquema, ganhando dois títulos no processo. Foi sob sua supervisão que Chris Bosh se tornou um arremessador especializado em bolas de três pontos e LeBron James jogou muitos minutos como ala de força. Pivôs tradicionais ganharam minutos limitados e no ataque se afastavam do aro o máximo que sua distância de arremesso permitia.

A tendência, agora, é geral. Mesmo pivôs de estilo tradicional e jogadores que passaram a vida estritamente dentro do garrafão começaram a se arriscar com os arremessos de perímetro. DeMarcus Cousins, talvez o melhor jogador de garrafão de sua geração em termos de talento bruto, arremessou 7 bolas de três pontos em toda a temporada 2013-14, errando todas as suas tentativas. Na temporada 2014-15, foram 8 tentativas com dois acertos. E na temporada 2015-16 foram DUZENTAS E DEZ tentativas com SETENTA acertos. Cousins acertou mais bolas na temporada passada do que havia tentado em toda sua carreira no basquete até então.

Em 8 temporadas, Marc Gasol converteu 12 bolas de três pontos – seu arremesso sempre foi incrivelmente consistente. Nessa temporada, sob a tutela de David Fizdale e sua tentativa de implantar no Grizzlies um “basquete moderno”, Gasol já converteu 9 bolas de três pontos em apenas 6 jogos, acertando acima de 37% de suas tentativas. Brook Lopez, que por algum tempo foi o único pivô realmente difícil de marcar dentro do garrafão na NBA, havia convertido 3 bolas de três pontos em 8 temporadas, todas elas nos últimos dois anos. Já acertou 7 desses arremessos nos 6 jogos que disputou nessa temporada.

Luis Scola, um pontuador nato embaixo da cesta, conta que os especialistas em estatística do Houston Rockets o avisaram, durante sua passagem pela equipe, que novos dados sobre espaçamento iriam forçá-lo a arremessar bolas de três pontos se ele não quisesse ficar obsoleto na NBA em poucos anos. Enquanto esteve em Houston, Scola arremessou 17 bolas de três em 5 temporadas, acertando apenas uma. Já na temporada passada pelo Raptors, Scola arremessou 161 bolas de três pontos, acertando 65 – um aproveitamento acima de 40%, próximo dos especialistas.

Não é à toa, portanto, que Joel Embiid – o futuro do garrafão do Sixers, finalmente jogando sua primeira temporada – já tenha arremessado 9 bolas de três pontos em suas primeiras 4 partidas, acertando 6 delas para um incrível aproveitamento de quase 67%. “Espaçamento” é a palavra de ordem na NBA atual e os pivôs, cientes disso, estão arremessando mais do perímetro do que em qualquer outro momento na história do basquete.

[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Mehmet Okur tinha cavanhaque e arremessava de três antes disso aí ficar ‘legal'”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/11/Okur.jpg[/image]

Mas afinal, o que esse tal de “espaçamento” realmente significa? E mais importante: como é que alguns pivôs que nunca arremessam bolas de três, como DeAndre Jordan e Hassan Whiteside (esse último nunca tendo arremessado uma única bola do perímetro em sua carreira) continuam relevantes na NBA?

Conforme a NBA foi liberando a marcação por zona em seus jogos, as defesas de garrafão foram mudando consideravelmente. Imagine a seguinte situação: um armador está no perímetro sendo marcado por outro armador mas consegue driblá-lo e então parte para a cesta. Se os dois times estão usando pivôs e alas de força tradicionais que se posicionam dentro do garrafão, isso significa que existem QUATRO jogadores ocupando o garrafão (dois atacantes e dois defensores) enquanto o armador tenta infiltrar, se tornando o quinto jogador dentro daquele espaço diminuto. Não apenas isso, mas os defensores que já estão no garrafão podem ABANDONAR suas funções individuais e simplesmente fechar o caminho do armador para a cesta. Se esse movimento (que exige apenas antecipação e um mínimo de velocidade lateral) for feito adequadamente, é possível ao mesmo tempo bloquear O ARREMESSO, o CAMINHO PARA A CESTA e a LINHA DE PASSE para os jogadores de garrafão que foram abandonados durante a movimentação defensiva. Isso faz com que atacar a cesta vindo do perímetro seja uma atividade contestada por dois jogadores de garrafão, com um terceiro defensor – aquele que ficou para trás para que a infiltração começasse – se aproximando na cobertura. Defensores de garrafão agora podem ficar “passeando” de um lado para o outro do garrafão livremente, sem ter que marcar os jogadores de garrafão rivais, porque fechar o espaço para os passes e para as infiltrações é mais eficiente. Um armador que ataque a cesta e encontre dois defensores fechando seu caminho será normalmente obrigado a forçar um arremesso de meia distância, estatisticamente o pior arremesso do basquete. É claro que eventualmente os defensores podem chegar atrasados ou podem “passear” para o lado errado e o jogador de garrafão que ficou livre pode receber um passe preciso, mas em médias gerais essa opção por defensores que gravitam no garrafão compensa por gerar arremessos piores do adversário e conseguir roubos de bola dos armadores que insistem em tentar encontrar seus jogadores de garrafão “abandonados” embaixo da cesta mesmo no meio do “tráfego”, ou seja, mesmo que muitos braços estejam atrapalhando a linha de passe na região.

Mesmo a jogada mais clássica do basquete, o “pick-and-roll”, tornou-se menos eficiente frente a esse desenho defensivo. Quando um jogador de garrafão faz um corta-luz para um armador, o jogador que defendia esse armador para no bloqueio, batendo no muro. O armador então está livre e passa a ser marcado pelo pivô adversário, de modo que o jogador de garrafão que fez o corta-luz original está sem marcação e pode cortar para a cesta. O problema é que, agora, o caminho para a cesta conta sempre com um outro jogador de garrafão que abandona sua marcação para ocupar o caminho, recebendo ajuda de um ala para bloquear as linhas de passe. Receber a bola dentro do garrafão nunca foi tão difícil, mesmo através de um pick-and-roll.

Um pivô receber a bola de costas para a cesta, então, é um pesadelo. Se o defensor que está no jogador com a bola se preocupar em marcar a linha de fundo, o outro jogador de garrafão pode correr para dobrar a marcação se esticando para que o pivô não passe a bola para baixo da cesta, forçando o pivô a passar para o perímetro – o que seria recomeçar a jogada – ou perder a bola. No garrafão, atacar a cesta é sempre um exercício de iniciar sua jogada antes que dois ou mais jogadores se aproximem para a defesa, o que envolve ou um basquete de ritmo elevado (correndo para o contra-ataque antes que a defesa chegue ou que se posicione), ou habilidade e explosão física suficientes para vencer as múltiplas marcações. A parte da velocidade é o que Spoelstra chama de “ritmo”, passando a bola de um lado para o outro – ou correndo da defesa para o ataque – mais rápido do que os jogadores que estão “flutuando” possam responder. Mas a solução mais comum e mais acessível para esse problema da defesa no garrafão é o “espaçamento”: simplesmente tirar os jogadores de garrafão do caminho!

Com um ala de força e um pivô que saiam do garrafão, seus defensores precisam tomar uma decisão: ou saem junto para marcá-los, ou ficam nas proximidades do garrafão para defender infiltrações mas acabam liberando os adversários para arremessar de fora do garrafão sem nenhuma contestação. É por isso que tantos times simplesmente se livraram de pivôs e alas de força, trocando-os por alas menores ou armadores: colocando 5 jogadores no perímetro, temos então 5 defensores no perímetro e um caminho aberto para atacar a cesta. Com essa radical solução “moderna”, voltamos ao basquete “clássico” em que um jogador só precisa se preocupar em geral com o próprio defensor, bastando batê-lo para poder atacar a cesta com tranquilidade. E se defender sem dois jogadores de garrafão parece absurdo, basta lembrar que os defensores agora só precisam se preocupar em ocupar o espaço de infiltração e interceptar as linhas de passe, de modo que não é preciso ser gigante para isso. Um pivô grandão, protetor de aro, só faz realmente a diferença contra adversários muito atléticos ou habilidosos, capazes de enfrentar múltiplos defensores numa infiltração, ou contra jogadores de garrafão que conseguem receber passes POR CIMA da defesa, o que anula o perigo do passe ser interceptado por dois ou mais jogadores flutuando no garrafão em frente às linhas de passe.

Isso explica o motivo de tantos times optarem pelo “small ball”, jogando sem pivôs ou de pivôs arremessando de três pontos para atrair a marcação adversária para fora do garrafão – mas também explica o motivo de DeAndre Jordan e Hassan Whiteside ainda serem ofensivamente relevantes na NBA atual. Quando os dois estão no garrafão e são abandonados por seus defensores, basta acioná-los POR CIMA, numa ponte-aérea ou passe alto, para que possam pontuar relativamente livres. Whiteside, que finaliza menos pontes-aéreas, gira e ataca a cesta assim que recebe esses passes altos, além de se afastar do garrafão para arremessos de média distância.

A jogada acima é uma das enterradas mais famosas da carreira de DeAndre Jordan. Vejam que Chris Paul começa a jogada MUITO longe do garrafão, de modo que o jogador que deveria estar marcando DeAndre Jordan precisa ficar entre Chris Paul e a cesta – o que significa literalmente ficar fora do garrafão dada a distância do armador. Chris Paul não tem um caminho para a infiltração, um arremesso seu seria contestado pelo seu marcador individual e um passe para o garrafão seria roubado pelo marcador de DeAndre Jordan, que está bloqueando a linha de passe. Um outro defensor, vindo da zona morta, é o responsável por bloquear o espaço embaixo da cesta – não tanto para defendê-lo, mas mais para proteger a área para rebotes – até que o outro jogador de garrafão volte. E é nessa situação que acontece a mágica: Chris Paul passe a bola por cima de todo mundo, exatamente no espaço entre dois defensores, e DeAndre Jordan é atlético o bastante para pegar essa bola que está no limbo e ENTERRAR MESMO ASSIM, em cima do coitado do Brandon Knight.

Espaçar a quadra, então, é atrair para fora do garrafão o máximo de defensores possível. Pode ser indo para o perímetro como uma ameaça nas bolas de três pontos, mas pode ser ficando fora do garrafão e sendo uma ameaça constante nas pontes-aéreas e passes por cima da defesa, o que exige armadores espertos e pivôs rápidos e atléticos. O pivô lento e meticuloso que joga de costas para a cesta não tem espaço no modelo atual, mas o pivô que pensa rápido, ataca a cesta e consegue receber passes pelo alto ainda força defensores a acompanhá-lo e, saindo o máximo possível do garrafão, abre espaço para a infiltração dos seus companheiros e consequentemente para passes por cima da defesa quando estiver sozinho. É assim que o Atlanta Hawks injetou vida nova na carreira de Dwight Howard, tornando-o um perigo no ataque mesmo que ele praticamente nunca receba a bola de costas para a cesta. Ainda assim, seus parceiros de garrafão, como Paul Millsap e Mike Muscala, precisam ser arremessadores de três pontos para atrair a marcação e permitir que Dwight tenha que receber a bola nas costas de apenas um marcador, não de múltiplos corpos embaixo do aro. São jogadores novos e antigos se adequando às necessidades do nosso tempo e encontrando novas formas de serem efetivos. Da próxima vez que você ouvir falar em “espaçar a quadra”, portanto, pense que nas condições certas Dwight Howard e DeAndre Jordan também podem fazê-lo mesmo sem arremessar de fora – basta para isso que pensem para fora da caixa, deixando para trás as jogadas que associamos aos pivôs durante muitas décadas.