🔒O inevitável

O Boston Celtics era uma das melhores histórias dessa temporada: um time jovem, surpreendente, que abriu mão de sua reconstrução bem sucedida na temporada anterior para adicionar duas grandes estrelas e entrar em definitivo na disputa por um título. O processo encontrava paralelos no Celtics de 2007, que enviou uma série de jovens cheios de potencial e escolhas de draft para adicionar Kevin Garnett e Ray Allen e ganhar o título em 2008. A situação atual era diferente apenas em alguns poucos detalhes.: enquanto Gordon Hayward e Kyrie Iving não são nem de longe tão consagrados quanto Garnett e Allen, tentam compensar sendo bem mais jovens e oferecendo ao Celtics uma janela de oportunidade mais longa para lutar pelo anel de campeão. Além disso, aquele Celtics estava muito mais longe do sucesso do que o time do ano passado, que misteriosamente alcançou as Finais do Leste. Abrir mão de Isaiah Thomas também foi mais difícil, ao menos psicologicamente, do que entregar Al Jefferson na época: Isaiah foi um símbolo de dedicação e resistência ao continuar sua campanha nos Playoffs mesmo após a morte de sua irmã, fato chocante que uniu todos os torcedores da equipe numa incrível rede de apoio e admiração. Al Jefferson podia até ser uma promessa para dominar os garrafões no futuro, mas não representava muito, do ponto de vista simbólico, para a franquia. Da mesma maneira, Avery Bradley era a face de uma cultura de esforço e dedicação, perceptíveis em sua defesa enlouquecida, com a qual a torcida era capaz de se identificar naqueles duros momentos de ausência de talento e perspectiva.

Toda essa história – a comparação inevitável com o time campeão de quase 10 anos atrás, o baque emocional de enviar jogadores ligados demais à torcida e à cultura da equipe, o medo de desfazer um time que deu certo atrelado à emoção indescritível de juntar estrelas cujo ápice ainda é desconhecido – tornou o Celtics o time a se assistir durante essa nova temporada.  Acompanhar grandes elencos encontrando uma identidade em meio às adversidades é sempre uma experiência incrível para quem gosta do esporte, e o potencial do grupo deveria mandar calafrios a todos os adversários. Será que já seriam uma potência nessa temporada? Será que na próxima já seriam imbatíveis? Enquanto o mundo cheiroso e maravilhoso dos potenciais não tiver que se reportar à realidade, o céu é o limite.

Quando o calendário da temporada foi divulgado, a ansiedade só aumentou: o Celtics faria sua estreia contra seu algoz nas últimas Finais, o Cleveland Cavaliers, com o bônus de ser o time de onde Kyrie Irving havia partido, com todas as animosidades que fizeram parte de sua despedida forçada. O jogo não poderia ser mais simbólico para o Celtics: era um novo começo que conversava simultaneamente com o passado (aquele, de Garnett, Ray Allen e Paul Pierce, e o passado recente de uma Final contra o Cavs), com o presente (ao ter que fazer o elenco funcionar) e com o futuro potencial (aquele que já enche de anéis virtuais os dedos até do roupeiro). É nesses momentos, quando toda a narrativa se desvela numa linha contínua diante dos nossos olhos, que percebemos estar vendo a História. Não é comum que isso aconteça já no primeiro dia da temporada, exatamente quando estamos mais saudosos, mais sedentos, mais necessitados do basquete e de toda a narrativa que ele permite. Era difícil não estar emocionado.

Cinco minutos depois, Gordon Hayward caiu de maneira estranha no chão após um choque eventual. Quando a câmera se aproximou, era evidente que sua perna havia sofrido um dano considerável. A narração da TNT americana se limitava a gritar, enquanto a câmera estrategicamente se afastava dos detalhes da cena: “Hayward quebrou sua perna, Hayward quebrou sua perna, Hayward quebrou sua perna.” A História se fechou subitamente. O passado parecia distante, o futuro tornou-se completamente escuro, impenetrável. E o presente – estar ali naquela quadra e continuar uma partida normal de basquete – parecia insuportável.

Ao contrário do que diz o senso comum – “o que não te mata te torna mais forte” – sobreviventes são praticamente unânimes em afirmar que não há muitas lições possíveis a serem aprendidas com o horror. Ali, com a perna de Hayward quebrada no chão, demais jogadores se afastando em pânico, a temporada possivelmente terminada e as pretensões congelada para o ano seguinte, há uma vontade enorme de encontrar causas e solução. Mas a verdade é que não há nada que Hayward ou o Celtics pudessem ter feito diferente. A contratação, a troca, o pulo, o risco, fazem inteiramente parte do jogo. Times, comissões técnicas e jogadores fazem o seu melhor planejando e se preparando, mas o horror está sempre na esquina, espreitando, disposto a alterar o rumo dos planos e da História.

Esse incrível choque de realidade, a percepção inegável de que não temos tanto controle assim sobre nossas vidas, é aterradora. É na busca por algum tipo de controle em nossas mãos que alguns jogadores usam sempre o mesmo “calção da sorte”, fazem sempre o mesmo ritual pré-jogo, arremessam sempre do mesmo ponto – como tribos indígenas que, na ânsia de controlar minimamente a natureza, dançam segundo as regras de um ritual. Vale qualquer coisa para diminuir a sensação de que o fim de uma temporada – ou até mesmo o fim de uma carreira – está além do nosso controle. Mas a parte incrível do esporte é que nele não há espaço para o medo, o receio e nem mesmo o luto, como o Celtics sabe tão bem. Isaiah Thomas entrou em quadra ainda sofrendo pela morte da irmã e o time jogou como se aquela partida fosse tudo aquilo que existe no mundo, um universo à parte, avulso, com suas motivações próprias. Gordon Hayward saiu de quadra carregado e tudo que restou no seu lugar foi o silêncio sepulcral da torcida estarrecida, mas rapidamente a torcida voltou a se animar, os jogadores retomaram o foco e o basquete continuou. Não há controle, tudo pode dar errado em questões de segundo, mas no esporte o jogo continua, ele sempre continua. Gordon Hayward entrou na sala de cirurgia sabendo que ele pode simplesmente tentar ano que vem. Seu papel é se preparar o máximo possível e então se entregar ao horror do acaso, recomeçando sempre que for necessário. Todos os jogadores conseguem se identificar com esse eterno ciclo de recomeço, de modo que o apoio a Hayward, ainda em quadra, foi total. Estarão todos esperando quando ele voltar.

Tragédias incontroláveis assim possuem uma incrível capacidade de reescrever o passado, dando aos fatos anteriores uma nova leitura. A percepção de como os jogadores são frágeis e o quanto se expõe em uma liga incrivelmente física ao longo de 82 jogos apenas numa temporada regular dá outro peso para a decisão de Kyrie Irving, de jogar num ambiente em que se sinta à vontade enquanto ainda resta tempo. O risco do Celtics em assinar Gordon Hayward – que, ao menos nessa temporada, deu errado – parece paradoxalmente MENOR, já que sua lesão aleatória e gratuita mostra que na verdade não existe caminho seguro, certo, garantido. O que o Celtics tinha também estava a uma ou duas lesões de desaparecer por completo. Algumas coisas simplesmente não são possíveis de evitar, então que abracemos o caos e o risco – e que os jogadores usem o pouco tempo que lhes resta na situação que melhor desejarem, no time em que mais se beneficiarem, antes que a maca leve a todos.


“Eles não estão em forma ainda, então estamos vendo muitas lesões, muitos caras fora”, disse Jason Kidd, técnico do Bucks. Gordon Hayward não é a única baixa da primeira semana de temporada: Jeremy Lin rompeu um tendão no joelho depois de meses de reabilitação e muitas expectativas para essa temporada, Dante Exum rompeu o ombro numa colisão tola desfalcando um time que já tateava para encontrar profundidade. Chris Paul lesionou o joelho e só deve voltar mês que vem nos fazendo babar mais para ver a dupla com Harden, enquanto Milos Teodosic e seus passes absurdos está com uma lesão no pé e não tem previsão de volta. Fora esses ainda temos lesões menores em Dwyane Wade, Anthony Davis, Trevor Ariza, Elfrid Payton, Jonas Valanciunas, Hassan Whiteside e Markelle Fultz, apenas para citar alguns jogadores mais valiosos para suas equipes. E tudo isso sem citar os que estão lesionados há mais tempo e ainda nem estrearam nessa temporada, como Kawhi Leonard, Isaiah Thomas, Zach LaVine, Jabari Parker e os dois irmãos Morris, Marcus e Markieff. Se lesões são comuns, por um lado, por outro parece que nunca vimos tantos bons jogadores fora das quadras tão cedo numa temporada.

É evidente que lesões como as de Gordon Hayward não são evitáveis. Mas alguns técnicos acreditam que lesões como a de Lin abaixo são de outra natureza.

A suspeita é que essa lesão e dezenas de outras lesões menores tenham a ver com o fato de que tivemos pela primeira vez uma pré-temporada encurtada, com a temporada regular começando mais cedo de modo a espaçar melhor os jogos e reduzir o número de partidas em dias seguidos. Por muitos anos partidas em dias consecutivos ou séries de muitas partidas em poucos dias foram vistas como responsáveis pela queda de rendimento de times inteiros e por lesões significativas de alguns jogadores. Evitar esse problema reduzindo a pré-temporada, no entanto, parece ter criado outro: os jogadores tiveram que dar uma “guinada” de intensidade muito mais súbita, partindo das dinâmicas dos treinos para os rigores de uma partida profissional sem as tradicionais gradações dos minutos controlados. Erik Spoelstra foi categórico em afirmar que esses míseros 10 dias fizeram uma diferença brutal na preparação física de todos os seus jogadores – e isso no Heat, famoso por se preocupar imensamente com a forma dos seus jogadores durante a offseason.

Discutimos bastante acima o impacto que a lesão de Gordon Hayward teve na História do Boston Celtics e em nossas expectativas – e nossa fruição – para essa temporada. Mesmo as lesões menores possuem impactos semelhantes: Jeremy Lin era essencial para a organização tática do Nets e suas pretensões de se tornar um lugar atrativo para jogadores em busca de uma estrutura inteligente; o Houston Rockets abriu mão de múltiplos jogadores essenciais para poder colocar Chris Paul em quadra e ainda não o viu saudável; as pequenas lesões de Anthony Davis podem decidir indiretamente o futuro de DeMarcus Cousins e consequentemente de toda uma franquia. Tantas ausências são um dos fatores responsáveis por uma primeira semana de temporada tão caótica, instável, que já não possui nenhum time invicto. Por isso precisamos discutir abertamente, e de maneira responsável, como podemos impedir aquelas lesões que são evitáveis. Será que finalmente estamos chegando em um momento histórico em que as exigências sobre os corpos desses atletas já não sustentam mais o rigor dos 82 jogos e então finalmente cogitaremos temporadas mais curtas? Será que precisamos pensar em férias maiores, diminuir as viagens, aumentar os elencos? Será que as promessas de impedir que os times descansem suas estrelas perderá força diante dessa epidemia de lesões que consome muito mais a diversão da Liga do que um ou outro descanso eventual?

Diante do inevitável, daquilo que não podemos controlar, o que nos resta é olhar para o que PODE ser controlado e começar a traçar estratégias e rabiscar soluções. É o que nos resta como humanos: esticar nossos dedos controladores ao redor daquilo que está ao nosso alcance, numa tentativa desesperada de compensar aquilo que não podemos evitar. Não podemos evitar Hayward, precisamos aceitar isso, mas será que não podemos compensar evitando TUDO O MAIS? Quando será hora de repensar o formato da NBA para que protejamos os jogadores e, consequentemente, o espetáculo que tanto desejamos?

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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