O Toronto Raptors terminou a temporada regular passada, 2017-18, em primeiro lugar na Conferência Leste. As 59 vitórias foram o recorde absoluto da história da franquia e garantiram que o time fosse o primeiro a se classificar aos Playoffs na temporada. Enquanto isso DeMar DeRozan, cestinha da equipe, quebrou o recorde de pontos da história do Raptors com uma partida incrível de 52 pontos em cima do Milwaukee Bucks. Dwane Casey, técnico do Raptors e celebrado pela transformação ofensiva que implementou na equipe ao longo da temporada, foi eleito o melhor técnico do ano. O time foi derrotado nas semi-finais da Conferência Leste, mas perder na pós-temporada é algo que se espera de todas as equipes desde que o Golden State Warriors dominou a Liga em 2015. Com um clima eterno de “já ganhou”, especialmente depois da inclusão de Kevin Durant (e, agora, de DeMarcus Cousins), crítica e público simplesmente assumem que o troféu já pertence ao Warriors até que o time seja desmanchado. Sem reais expectativas de título frente ao poderio do Warriors, deveria bastar ao Raptors sua coleção de recordes pessoais: não deveria ser suficiente vencer quase 60 partidas, ter uma estrela adorada pela cidade marcando mais de 50 pontos e um técnico consagrado pelos seus pares? E foi então que, na impossibilidade de vencer um título, o Raptors foi para o “tudo ou nada”: trocou DeRozan por Kawhi Leonard, que pode abandonar o time ao fim da atual temporada quando encerra-se seu contrato, e enviou parte fundamental do seu banco de reservas em troca de Marc Gasol, veterano do Grizzlies. O que está acontecendo? Os times não deveriam estar se curvando à dominação do Golden State Warriors?
A história da equipe de Toronto não é única nesse sentido. O Houston Rockets, que deveria ter ainda menos sonhos de vitória por se encontrar na mesma conferência que o Warriors, abriu mão de uma série de jogadores para contratar Chris Paul. O contrato do armador durará até 2022, quando o Rockets terá que lhe pagar mais de 44 milhões de dólares na temporada. A aposta no jogador, que assumiu um papel secundário no time dominado por James Harden, é contra-intuitiva: ao invés do time se preparar para ter chances de vencer um título daqui a alguns anos, quando o Warriors possivelmente desmontar, o Rockets preferiu apostar todas as suas fichas numa vitória agora e comprometer suas chances futuras. Em seu declínio, já aos 37 anos de idade, Chris Paul estará em 2022 ocupando um pedaço gigantesco da folha salarial e impedindo reais investidas ao título e até mesmo um processo mais acelerado de reconstrução. Sua chegada ao time indica apenas uma coisa: o Rockets quer vencer nos próximos 2 anos, justamente quando a sensação é de que isso seria uma tarefa impossível.
Outros times caminham na mesma direção, fazendo ajustes para vencer agora ou em breve. Mesmo o Lakers de LeBron James deu indícios de que tentou se livrar de toda sua safra de reconstrução em nome de Anthony Davis, um talento que permitiria a LeBron competir imediatamente. O Sixers, com um núcleo de jogadores que pode competir em alto nível por pelo menos mais uma década, fez apostas ousadas para trazer Jimmy Butler e Tobias Harris de modo a lutar por um título agora mesmo. Até mesmo o Knicks, acostumado com derrotas por duas décadas, livra-se agora de seu maior acerto, Kristaps Porzingis, em nome de duas possíveis contratações ao fim da temporada que coloquem o time na briga por um título. Por que até o Knicks está com pressa, apostando alto, se o título supostamente já está nas mãos do Warriors?
Especialmente depois da contratação de Kevin Durant em 2016, a NBA começou a receber críticas de “não ter mais graça” por não existir uma força capaz de parar o Warriors na disputa pelo título. A única derrota do time nas Finais nas últimas 4 temporadas foi entendida no imaginário popular como um “deslize”, uma aberração que não iria mais acontecer. A chegada de DeMarcus Cousins, que alega ter assinado com o Warriors por falta de propostas dos demais times graças à lesão que sofreu na temporada passada, só intensificou essa narrativa. De fato estamos acompanhando um dos times mais dominantes de todos os tempos, não apenas em termos de talento do seu elenco mas também em termos técnicos, táticos e até mesmo em termos HUMANOS: poucas equipes sabem lidar tão bem com o bem-estar de seus jogadores, com a voz que possuem nos vestiários e o papel que desempenham na coletividade do time.
Equipes dominantes são uma consequência indireta do objetivo dos esportes: se damos tanto valor para as vitórias, eventualmente algum atleta ou grupo de atletas alcançará um grau de precisão ou de organização suficiente para acumulá-las. O problema é que ao realizar nosso sonho de vitória, esses super-times ou super-atletas também colocam em risco outro de nossos sonhos, que é o da COMPETIÇÃO. Queremos vitórias, com os atletas se tornando máquinas impressionantes de vencer, mas também queremos que eles sejam desafiados por outros atletas que os forcem ao seu limite. Infelizmente, atletas ou equipes bons demais podem não encontrar um desafio à altura, cortando do esporte qualquer chance de competição, de dificuldade e de superação. Na NBA, os super-times (o Celtics dos anos 60, que venceu 11 títulos em 13 anos; o Bulls tri-campeão nos anos 90; o Lakers tri-campeão nos anos 2000; o Heat bi-campeão de 2012; o Warriors de 3 títulos em 4 anos da atualidade) sempre nos levantam essa questão: dominar a Liga é saudável para o esporte? Vitórias demais destroem a competição?
O caso da NBA possui a particularidade de que desistir de competir pode ser UMA BOA IDEIA graças à dinâmica do draft, que beneficia os piores colocados com os melhores jogadores que entrarão na Liga na temporada seguinte. Se um time como o Warriors está dominando a NBA e ninguém parece ser capaz de pará-lo, por que não desistir completamente da competição e colher escolhas de draft para montar um time futuro? Por que não usar o domínio atual do Warriors como uma desculpa para preparar uma reconstrução de médio ou longo prazo? O medo dos torcedores não é apenas que a Liga perca a graça porque sabemos de antemão quem será o campeão, mas também de que os times desistentes montem um CAMPEONATO AO CONTRÁRIO, uma disputa para ver quem perde mais de modo a ter os melhores novatos para o futuro. Com o sucesso do Sixers, que montou um projeto de derrotas que se tornou uma reconstrução a longo prazo, por que mais times não se aproveitam dessa tática enquanto as chances de título estão “barradas” por um dos melhores times de todos os tempos?
No entanto, todos esses temores se mostraram infundados. Em 2016 o próprio Warriors deu um tropeço improvável frente ao Cleveland Cavaliers; em 2018 o Warriors quase tropeçou nas Finais da Conferência Oeste contra o Houston Rockets. Cada vez mais times estão se preparando para se aproveitar desse possível “tropeço” do adversário, e apostando alto para construir elencos que sejam capazes de se aproveitar da situação caso ela aconteça. Se o público acredita que o título já é do Warriors, e se mesmo qualquer analista de basquete mais racional veja a obrigação de admitir que eles são imensamente favoritos, essa não parece ser a sensação dos dirigentes, donos, técnicos, treinadores e atletas que povoam a NBA. Diversos times continuam sonhando internamente com uma chance de título, com a diferença de que para manter esse sonho vivo tiveram que contratar melhor, fazer trocas arriscadas, destruir a folha salarial futura, abrir mão de jovens talentos, fazer concessões, pular na piscina de cabeça. Frente a um time dominante, o que temos são mais e mais times indo para o TUDO OU NADA.
Com um teto salarial de 101 milhões de dólares, o Milwaukee Bucks gasta nessa temporada 132 milhões graças à aposta em Eric Bledsoe e Nikola Mirotic. O Raptors, que poderia estar satisfeitíssimo em ser o mesmo time do ano passado, agora gasta ainda mais: são 134 milhões de dólares, graças aos 24 de Marc Gasol e aos 23 de Kawhi Leonard. O Oklahoma City Thunder, aliás, é um caso interessante por ser o segundo em gastos salariais, com 146 milhões de dólares – mais até mesmo do que o Warriors, que tem todos os motivos do mundo para pagar as multas envolvidas em ultrapassar o limite imposto pela Liga. O Thunder tem como único motivo a esperança de que esse núcleo de jogadores possa ganhar um título mesmo com o Warriors existindo por aí. Enquanto Raptors e Thunder flertaram com um processo de reconstrução – uma maneira de “esperar o Warriors passar” – o Bucks tinha a possibilidade de simplesmente ESPERAR, apostando em seus jogadores mais jovens e na evolução constante de Giannis Antetokounmpo. Mas ao invés de sonhar com o futuro, os donos das três equipes resolveram ABRIR OS BOLSOS de uma maneira que dificilmente seriam obrigados a fazer se o Warriors não tivesse subido tanto a barra de talento necessário para enfrentá-los.
É claro que independentemente de quão dominante uma equipe seja, os jogadores sempre acreditam ser capazes de derrotá-la – faz parte da estrutura necessária para se tornar um atleta de alto desempenho um certo grau de delírio, uma crença desmedida nas próprias habilidades e, consequentemente, nas próprias chances. O que é chocante, na verdade, é que os DONOS de times – aqueles que investem dinheiro do próprio bolso, que pagam os salários e as multas – também acreditem que podem vencer. E a iminência do fracasso não os faz desistir, mas sim INVESTIR MAIS, contratar dirigentes mais agressivos, aceitar trocas mais polêmicas, repaginar elencos – ou seja, arcar com os custos de se ter uma equipe que possa ser vencedora numa época em que os padrões são elevadíssimos.
Sem o Boston Celtics dominante dos anos 60, talvez nunca tivéssemos visto o Los Angeles Lakers de Jerry West e Elgin Baylor. O Bulls dos anos 90 forçou seus adversários ao limite e criou, além de várias equipes interessantíssimas, o Houston Rockets campeão de 1994 e 1995. O Lakers tri-campeão dos anos 2000 forçou não apenas uma década de grandes defesas mas também o San Antonio Spurs a alcançar seu auge. O Miami Heat campeão em 2012 e 2013 forçou os jogadores da NBA a se unirem para ter chances reais de vitória. O Warriors de 2015 forçou o Cavs a ir para o tudo ou nada em 2016 – e forçou LeBron James a se tornar um jogador como nunca antes havíamos presenciado. Ao invés de super-times empurrarem as demais equipes à mediocridade, o que acontece é que eles PUXAM as demais equipes para a grandeza ao forçá-las a serem melhores. LeBron nunca teria que ser um jogador tão bom – e tão obcecado com treinos e a própria forma física – se não tivesse tido que derrotar o Warriors em situações terrivelmente adversas para trazer o tão sonhado título para Cleveland. Da mesma forma, os times atuais não teriam sido forçados a investir em estatísticas, dados avançados, bolas de três pontos e novos desenhos defensivos se não fosse pelo modelo que o Warriors impôs ao ser múltiplas vezes campeão.
Os times poderiam perder de propósito, poderiam esperar o Warriors acabar, poderiam enfiar a cabeça embaixo do lençol e só sair quando toda a dominação adversária tivesse se encerrado por questões financeiras, pessoais, pela idade, ou porque um METEORO destruiu o planeta. Mas, pelo contrário, o que os times fizeram foi MELHORAR: nunca se jogou um basquete tão CONSCIENTE como hoje, em que cada ação, tática ou arremesso é tão milimetricamente pensado; nunca tivemos tantos times arriscando tanto, investindo tão pesado em novos rostos em elencos que já eram bons e vencedores. A altura mínima para entrar nesse brinquedo foi aumentada: ou os times evoluem ou não podem mais brincar. Escolheram evoluir, e o resultado é que independente do poderio do Warriors – e da crença dos torcedores de que o troféu já está em suas mãos – a NBA é melhor, mais competitiva e mais interessante por conta disso.