Nos últimos 3 anos de NBA, apenas 10 times utilizaram uma defesa por zona por mais de 100 posses de bola. Apesar de ser um modelo defensivo permitido pela Liga desde 2001, muitos times optam por não utilizá-lo, e os que o fazem escolhem marcar em zona apenas em algumas posses de bola, não durante um jogo inteiro. A equipe que mais utiliza esse tipo de marcação, o Brooklyn Nets, só usou esse recurso em cerca de 10% das posses de bola defendidas nessa temporada, por exemplo. Na maior parte do tempo, um fã da NBA assiste a marcações estritamente individuais com algumas pequenas variações: jogadores que trocam de oponentes após um corta-luz ou marcações duplas em momentos de desespero, principalmente. Ainda assim, a prática está se popularizando aos poucos: se na temporada passada tivemos apenas 700 posses de bola defendidas por zona, na temporada atual o número ultrapassou com folga as 2000 posses. Isso porque os times estão descobrindo estatisticamente que as defesas por zona costumam ter muito mais sucesso contra os ataques modernos da NBA do que as defesas individuais, e uma das maiores vitrines para isso acaba de alcançar as Finais da NBA: o Toronto Raptors.
A equipe de Toronto já se consolidou a tempos como uma das melhores defesas da Liga. Na temporada passada, sob comando do técnico Dwane Casey, ficou em quinto lugar na lista de melhores defesas; na temporada atual, nas mãos de Nick Nurse, ocupou novamente o quinto lugar. Com tantos defensores versáteis, atléticos e mais a chegada de Kawhi Leonard, é natural que a equipe tenha conquistado bons resultados nesse quesito, cedendo apenas 0.9 pontos a cada posse de bola quando utiliza uma defesa individual, mano-a-mano. Mas os números do Raptors ao usar defesas por zona não são NADA naturais, beirando o MÁGICO: 0.7 pontos cedidos por posse de bola é o suficiente para alçá-los com muita folga à marca de melhor defesa da NBA, deixando pra trás inclusive a defesa do Boston Celtics, a melhor defesa por zona da temporada passada – e a segunda melhor da temporada atual. Não é à toa que o técnico Nick Nurse está usando cada vez mais esse modelo defensivo, especialmente desde a chegada de Marc Gasol, e que tenha recorrido a ele quando precisou esganar o Milwaukee Bucks. E, se o Raptors quiser ter chances de chocar o mundo e desbancar o Golden State Warriors nessas Finais da NBA, terá que recorrer justamente à defesa por zona novamente.
Em defesas por zona, ao invés de marcar os oponentes de perto marcam-se os “espaços” na quadra, contestando os oponentes que entrarem naqueles espaços. No caso do Raptors, isso acontece da seguinte maneira: em geral Pascal Siakam marca a parte “frontal” da linha de três pontos, ali perto da cabeça do garrafão. A posição é estratégica porque é o melhor lugar possível para um armador ter a bola nas mãos, dada a facilidade de passar a bola para os dois lados da quadra e, em caso de infiltração, a possibilidade de acionar ambas as zonas mortas, dependendo da reação da defesa adversária. Com a capacidade atlética, os braços compridos e a velocidade lateral de Siakam, o Raptors garante que esse espaço fundamental para a armação esteja sob controle. Enquanto isso, de cada lado de Siakam o Raptors mantém outros dois defensores, marcando os “ângulos” da linha de três pontos, para evitar os arremessos do perímetro. Outros dois defensores, por sua vez, marcam as zonas mortas, os “cantinhos” da quadra onde os arremessos de três pontos são mais próximos da cesta. Esses defensores responsáveis pela zona morta marcam, também, o espaço imediatamente atrás deles, no garrafão, na lateral de cada aro. E por fim um quinto defensor marca o garrafão, quase sempre um ou dois passos à frente do aro, transitando de um lado para o outro da área pintada de acordo com o lado em que a bola se encontre.
Com esse modelo defensivo, o Raptors garante uma série de cenários favoráveis. O primeiro é que em caso de corta-luz no perímetro, com um jogador saindo de um dos lados da quadra para chegar ao “centro” após o bloqueio, a marcação por zona garante instantaneamente que aconteça uma troca de defensores. Um jogador que estivesse do lado direito da quadra marcado por Kyle Lowry, por exemplo, ao sair do corta-luz de frente para a cesta estaria sendo marcado por Pascal Siakam, que já estaria marcando aquele “espaço” antes mesmo do corta-luz ocorrer. Caso o jogador que fez o corta-luz corra para o garrafão, o famoso “pick-and-roll”, Lowry não precisa acompanhá-lo, já que o espaço para o garrafão já está sendo marcado por outro defensor, geralmente Marc Gasol; nesse caso, não tendo ninguém para marcar, Lowry está livre para pressionar então o armador que tem a bola nas mãos, gerando uma dobra completamente orgânica, natural, sem precisar de muita comunicação e nem correndo o risco de estar no “lugar errado”.
O segundo cenário favorável que essa defesa cria é manter Marc Gasol, ou qualquer outro defensor de garrafão do Raptors, confortavelmente restrito à proteção do aro. Caso um pivô adversário saia do garrafão para o perímetro para um corta-luz, por exemplo, Marc Gasol não precisa segui-lo: os defensores que já estão posicionados na linha de três pontos lidarão com a jogada, permitindo a Gasol marcar um possível caminho para a cesta e um eventual retorno do pivô adversário no pick-and-roll; na pior das hipóteses, ele fica responsável, sozinho, por um rebote defensivo, o que permite que o resto do Raptors corra para o ataque como vimos com frequência na série contra o Bucks. Gasol só precisa se aproximar do perímetro caso o pivô rival nunca entre no garrafão, preferindo arremessar de três pontos, mas ainda assim não precisa lhe oferecer uma marcação individual, apenas uma cobertura caso os outros defensores daquele espaço não possam marcá-lo em algum momento específico – e isso se o pivô adversário tiver um aproveitamento razoável do perímetro.
Essa defesa por zona (conhecida como 1-2-2) permite, então, que o pivô seja “protegido” de embates individuais no perímetro, recusa espaços livres após cada corta-luz e permite dobras de marcação e pressão em jogadores que estão segurando a bola sem que isso gere falhas de comunicação ou decisões difíceis no calor da hora. E os resultados são ainda melhores quando estamos falando do Raptors por conta da versatilidade que seus jogadores oferecem ao modelo.
Na prática, qualquer um dos defensores do perímetro, até mesmo os da zona morta, podem ser intercambiáveis. Isso quer dizer que Kawhi Leonard, por exemplo, pode marcar uma das zonas mortas, protegendo com isso também o garrafão, ou pode ser acionado para marcar os espaços na linha de três pontos próximos ao meio da quadra, contestando melhor os arremessos frontais e interceptando as linhas de passe. A decisão de onde colocá-lo depende das jogadas que o oponente estiver executando, mas também da necessidade de descansar Kawhi ou de poupá-lo de faltas. Na zona morta, desloca-se menos, mas em caso de infiltrações arrisca-se cometer mais faltas; no perímetro, desloca-se mais porque times tendem a passar a bola de um lado para o outro contra defesas por zona, mas aumenta-se a possibilidade de interceptações que gerem contra-ataques. O mesmo cabe para Pascal Siakam, que costuma alternar sua função com Kawhi ao longo dos jogos. Cabe a Nick Nurse decidir onde cada jogador deve estar em cada momento, portanto, já que as possibilidades são diversas e a capacidade de ajuste do Raptors cresce imensamente com isso.
Mas para mim o grande trunfo da versatilidade dessa defesa não está em Leonard e Siakam, mas sim em Kyle Lowry. Quando marca a zona morta, o armador do Raptors tem muita liberdade para defender o garrafão, se posicionando antecipadamente às infiltrações adversárias e cavando faltas de ataque, dobrando a marcação embaixo da cesta e desviando passes para dentro, coisa que ele faz com maestria. E quando o Raptors joga mais baixo, ou até mesmo com Siakam, muitas vezes Lowry se torna ELE PRÓPRIO o responsável por marcar o garrafão na zona, ajudando a dobrar dos dois lados do aro e marcando os espaços de infiltração dos oponentes no perímetro, usando sua maior mobilidade para transitar mais e se aproximar da linha de três pontos se necessário. Tanto pela função quanto pelo poder físico apesar da estatura limitada, nesses momentos gosto de chamá-lo de DRAYMOND GREEN LIGHT. E sua atuação pode ser essencial contra o Draymond Green real.
Contra o Warriors, é possível que vejamos com mais frequência Lowry assumir a marcação do espaço do garrafão quando Marc Gasol sair de quadra e os atuais campeões optarem por usar Draymond Green de pivô. Isso porque Green é INCAPAZ de enfrentar Lowry no mano-a-mano, tendo dificuldade de costas para a cesta e vindo de uma temporada em que ele foi uma máquina de perder a bola nessas situações. Caso Green vá então para o perímetro, isso dá a Lowry duas opções: ou deixa Green arremessar e aí tem liberdade para transitar pelo garrafão impedindo linhas de passe e dobrando a marcação em outros jogadores próximos ao aro, ou, em caso de corta-luz de Green, pode marcar o possível espaço de infiltração ou até mesmo, se estiver OUSADO, dobrar a marcação em quem tiver a bola em mãos. Nesses momentos Lowry poderá mostrar toda sua inteligência defensiva, ajudar os companheiros, forçar faltas nos adversários e colocar toda a pressão nas mãos de Draymond Green. Se ele não acertar seus arremessos, torna-se inútil no ataque graças ao modelo defensivo e Lowry fica totalmente liberto para ser um “free safety”, um jogador coringa correndo para onde for necessário.
É claro que em diversos momentos o Toronto Raptors deve optar por uma marcação individual mais tradicional, que também vimos em vários momentos contra o Bucks, apenas trocando a cada corta-luz – com a exceção explícita, claro, de que Marc Gasol não faz trocas, deixando seu oponente livre no perímetro caso seja necessário, algo que o Blazers não foi muito feliz em realizar. Com excelentes defensores individuais que podem trocar de oponente a todo momento, a marcação no mano-a-mano pode incomodar e impedir que o Warriors marque pontos acelerando o jogo e principalmente puxando contra-ataques. Mas é na marcação por zona que veremos se o Raptors realmente tem condições de vencer essa série: foi esse tipo de defesa que tornou o Raptors um time de elite, que derrotou o Warriors nos dois jogos da temporada regular (forçando Kevin Durant em um deles a arremessar por cima da zona e passar dos 50 pontos porque ninguém mais encontrava espaços), que tornou Kyle Lowry um defensor invejável e que deixou adversários sem resposta ao longo do ano. Mesmo o Warriors, que é famoso por ser bom enfrentando defesas por zona – por conta dos arremessos rápidos e do alto volume de passes – só enfrentou esse tipo de marcação em 1% das posses de bola dessa temporada, não está nem um pouco acostumado a lidar com elas e se torna incrivelmente dependente dos arremessos de fora de Draymond Green, o que não é bom sinal. Some a isso o fato de que Andre Iguodala também pode ser deixado razoavelmente livre no perímetro e temos então mais um defensor que pode se ocupar de outro espaço, tumultuando o jogo de corta-luzes e movimentações sem a bola do Warriors. Trata-se do modelo defensivo mais equipado para explorar as – poucas – limitações dos atuais campeões, um encaixe muito feliz para o Raptors – times de puro mano-a-mano como o Rockets sentiriam menos o impacto dessa defesa – e uma novidade que os adversários ainda não estão familiarizados o bastante para lidar.
Seria irresponsável dizer que o Warriors não é favorito ao título novamente – estamos falando de um dos melhores times de todos os tempos e que já enfrentou múltiplos esquemas defensivos que não tiveram muito sucesso em pará-lo – mas vemos pela primeira vez em muito tempo um elemento novo entrando na equação, abrindo a possibilidade não necessariamente para um resultado distinto mas ao menos para um FRESCOR na maneira como esse duelo final ocorrerá. Veremos ao longo da série quanto o Raptors apostará na sua defesa por zona e o sucesso que ela terá, mas esse elemento inédito já enche as Finais da NBA com incógnitas num momento em que tudo que abrange o Warriors parecia pré-determinado. A importância dos próximos jogos, portanto, se estende para além do título: se uma defesa por zona mudar o rumo dessa série, mais e mais times passarão a adotar esquemas defensivos similares – e aí teremos esquemas ofensivos que terão que se adaptar a isso, mudando a maneira de se jogar basquete pelos próximos anos.