A cada partida que Carmelo Anthony faz pelo Portland Trail Blazers, algum jogador adversário – veterano ou novato – aproxima-se ansioso por parabenizá-lo. Carmelo passou mais de um ano longe das quadras, considerado “indesejável” por equipes, técnicos e torcedores, mas há um grupo que nunca o abandonou nesse tempo: os jogadores da NBA que dizem ser seus fãs. Enquanto o estilo de jogo e as tendências da NBA deixaram pouco a pouco Carmelo Anthony para trás, outros jogadores nunca se conformaram em vê-lo fora das quadras. Em abraços apertados e declarações na imprensa, sempre há algum atleta da NBA parabenizando Carmelo por sua volta, dizendo como se inspirou em seu jogo ou atestando que não fazia nenhum sentido um jogador de seu nível ter passado tanto tempo afastado do basquete profissional.
É curioso como a LENDA de Carmelo Anthony, que não faz absolutamente nenhum sentido para quem está chegando agora ou viu Carmelo jogar apenas nos últimos 3 anos, mantém-se viva graças a um punhado de fãs apaixonados e, principalmente, ao RESPEITO que ele recebe dos demais jogadores da NBA. Não é por acaso: Carmelo foi em algum momento, provavelmente, o mais talentoso e versátil pontuador de toda a sua geração (que inclui nomes como Dwyane Wade e LeBron James), liderou a seleção dos Estados Unidos em múltiplas oportunidades e dominou treinos informais entre atletas durante toda a sua carreira. Jogadores diversos cresceram espelhando-se em seu jogo ofensivo, torcendo pelo seu sucesso e tomando surras de Carmelo, vestindo seu já clássico CAPUZ, nos treinos abertos que ocorrem nos períodos vagos entre as temporadas. Quem enfrentou ou torceu por Carmelo já viu de perto quão talentoso ele é. A única coisa que não se viu, no entanto, é Carmelo ter sucesso na NBA – um fracasso que afasta times, técnicos e torcedores, mas que não é o bastante para apagar o respeito dos demais atletas por ele. Suponho que, para esses atletas, a história de Carmelo não apenas gere alguma empatia como também sirva de fábula educativa sobre o HORROR que pode acometer qualquer jogador da NBA se ele tomar decisões erradas e for parar no lugar errado, na hora errada.
Quando Carmelo Anthony assinou com o Houston Rockets na temporada passada, aqui no Bola Presa, já prevendo que a parceria não iria funcionar e que isso provavelmente significaria o fim de sua carreira, recapitulei para nossos assinantes toda a trajetória de Carmelo na NBA. Em resumo, Carmelo Anthony sempre esteve no lugar errado e, de forma neurótica, sempre tomou decisões que o levavam a repetir esses lugares errados, como se vencer em condições adversas pudesse enfim redimir todos os fracassos de sua carreira anterior. Querer vencer imediatamente, para competir com o sucesso dos amigos LeBron e Wade, o levou a um Knicks destruído, sem chances de título; depois, vencer nesse Knicks caindo aos pedaços tornou-se uma obsessão que consumiu os melhores anos de sua carreira. Quando todo o projeto em New York deu errado, Carmelo se convenceu de que jogar com outras estrelas lhe daria o título necessário para justificar seus erros anteriores, indo parar assim num Thunder que não tinha qualquer possibilidade de acomodar simultaneamente Russell Westbrook, Paul George e mais os seus talentos. Perdendo protagonismo rapidamente, Carmelo foi parar num Houston Rockets que oferecia uma situação muito, muito similar à de Oklahoma City – hoje, em 2019, sabemos muito bem como Westbrook e James Harden são mais parecidos do que jamais imaginamos. Enquanto isso, toda a concepção sobre o jogo de basquete em geral foi se alterando, chegando à conclusão de que bom aproveitamento e eficiência eram melhores do que média de pontos e arremessos de meia distância, o que alterou a percepção a respeito de Carmelo radicalmente.
O cenário é aterrador para qualquer jogador: a ideia de que é possível ir dormir uma estrela celebrada e acordar, no dia seguinte, tendo seu estilo de jogo questionado porque a PERCEPÇÃO sobre o basquete se alterou e ninguém te avisou. É um pesadelo kafkaniano equivalente a ir dormir e, após uma noite de sonhos intranquilos, acordar metamorfoseado numa barata. Além disso, há o medo recorrente de assinar com um grande time, coletar seus milhões, mas não receber o apoio prometido e acabar sendo culpado por todos os fracassos da franquia, manchando de maneira irremediável sua carreira. Toda vez que jogadores como Kyrie Irving, Kevin Durant, LeBron James ou Kawhi Leonard trocam de time, por exemplo, correm esse risco – tem muita grana envolvida, claro, mas basta uma das franquias não se encaixar para que, como estrelas e líderes que são, sejam culpados pelo desarranjo e destroçados pelo pública e pela imprensa. Se a NBA inteira ficar desconfiada do seu estilo de jogo graças a uma mudança cultura, então, o baque é ainda mais pesado e muitas carreiras não dão conta de segurar esse rojão.
O cenário assustador explica um pouco os motivos de jogadores conseguirem se relacionar com Carmelo e apoiá-lo nesses momentos de baixa, mas também explica as razões de jogadores bem próximos dele, como LeBron James, por exemplo, não terem acolhido Carmelo em seus elencos. Uma coisa é respeitá-lo e entender que a NBA – e o momento histórico – não foram muito justos com o jogador, coitado. Outra coisa COMPLETAMENTE diferente, no entanto, é estar disposto a pagar o PREÇO de se ter Carmelo Anthony num time – um preço que vai muito além do punhado de dólares que compõe o seu salário.
Quando se contrata um jogador, vem junto no pacote toda a sua HISTÓRIA: as expectativas presentes e passadas, a relação com a imprensa, os torcedores, os odiadores, as narrativas, as declarações, as rivalidades, aquela groselha que ele postou no Twitter naquele dia meio breaco, os arremessos que acertou e aqueles que ele errou. É como começar um namoro: embora todo início de relacionamento seja uma rara oportunidade de recomeço simbólico para os envolvidos, não se trata de um recomeço DE VERDADE. A gente carrega uma série de tranqueiras, famas, expectativas e coisas pré-concebidas para dentro de qualquer relacionamento, que vão se somar a todas as tranqueiras da outra pessoa criando uma mistura toda nova – que pode ser explosiva, mas que com sorte pode ser melhor do que cada uma era antes em forma avulsa. Tem uns relacionamentos que viram farofa apenas porque são um encontro ruim de bagagens anteriores dos envolvidos, e tem uns que a gente sabe que vai DAR RUIM mesmo antes de começar porque as bagagens não se encaixam de maneira evidente para qualquer um que esteja olhando.
Não é tão diferente assim no esporte. Contratar um jogador desconhecido na NBA, alguém da Liga de Desenvolvimento, a G-League, é bem fácil. O jogador em geral está eufórico de chegar ali, é o ápice de sua carreira; suas expectativas são se manter no time, lutar para ganhar uma vaga final no elenco, ajudar de alguma maneira, e quem sabe – num momento de SONHO LOUCO – conquistar minutos consistentes como reserva e sonhar alto só a partir daí. A torcida não vai se envolver muito, porque nem sabe quem é o sujeito, a imprensa vai provavelmente ignorar a contratação e a comissão técnica tem total liberdade de decidir o futuro do jogador. Se der certo, ganha minutos; se der errado, perde minutos, é cortado, abre a vaga de novo e procura-se outro jogador. A pouca bagagem do atleta – no caso, a baixa experiência na NBA – faz com que a situação toda tenha pouquíssimos riscos. A chance de dar super certo e você descolar um talento incrível ali é muito pequena, mas se der errado ninguém fica nem sabendo e a vida continua. Com poucas consequências, baixas expectativas e pouco comprometimento, esses relacionamentos são apenas experiências, tentativas juvenis de uns namorinhos durante férias curtas de verão na praia tomando refrigerante quente. Ninguém pensa em casar e muitas vezes a bagagem da pessoa nem entra em discussão.
Contratar alguém como Carmelo Anthony, por sua vez, é completamente diferente. Pela sua carreira, seu rendimento nos treinos e suas declarações para a imprensa, Carmelo chega sempre para ser titular – não há possibilidade real de convencê-lo a vir do banco de reservas. Isso já exige um grau diferente de comprometimento, porque o técnico não vai poder mudar de ideia no meio da temporada sem que isso cause uma crise enorme, com repercussões que podem atrapalhar o cotidiano do time. Além disso, Carmelo é notoriamente muito bom em algumas coisas – GENIAL, até – e muito ruim em outras. Isso significa que ignorar ou evitar as coisas que Carmelo faz bem (por que talvez não se encaixem no esquema tático do time, no elenco ou nos planos de jogo) pode gerar insatisfação no jogador, ou em último caso tornar sua presença ali desnecessária, fazendo com que Carmelo pareça um jogador pior do que é de verdade. Isso fica ainda mais acentuado pelo fato de que Carmelo faz algumas coisas muito mal, o que em geral exige que o time se adapte a isso, tente camuflar seus defeitos, e se aproveite das coisas que Carmelo faz bem para COMPENSAR aquilo em que ele fede. Se você não está disposto a usar as melhores armas ofensivas de Carmelo, você não está apenas desperdiçando seu talento, está também impedindo que ele compense as PORCARIAS que ele está fazendo na defesa, expondo mais suas fraquezas do que sua qualidade.
Some a isso também uma legião de fãs, uma outra legião ainda maior de odiadores, o olhar incansável da imprensa querendo saber cada detalhe sobre a situação de Carmelo e suas possíveis insatisfações e o que temos é uma série de coisas a que um time interessado é obrigado a se adaptar. Ou seja, receber Carmelo Anthony, voltando à nossa metáfora dos relacionamentos, é receber uma vasta bagagem, uma personalidade forte, vícios, loucuras, fins ruins de namoros passados, e tudo sob os olhos aflitos da imprensa, num nível Neymar-Bruna Marquezine, que fica torcendo para dar certo num dia e torcendo para dar errado no outro. Se um namoro desses dá certo, todo o esforço de acolhimento, adaptação e as concessões para fazer o relacionamento funcionar parecem que valem a pena. Mas se não funciona, o preço é caro: há envolvimento demais, gente demais dando pitaco e se metendo no relacionamento, concessões demais que precisaram ser feitas e que podem gerar bagunça na sua casa, treta com os seus amigos e rancor de todas as partes envolvidas. É o tipo de situação em que todo mundo olha, todo mundo sonha, todo mundo DESEJA, mas ninguém tem coragem de pedir o número do WhatsApp porque sabe que a dor de cabeça pode não valer a pena.
Receber Carmelo Anthony num elenco envolve ceder imediatamente minutos consideráveis, uma vaga de titular, algum protagonismo e liberdade ofensiva. Para justificar uma função tão importante, é preciso usar então suas melhores armas – os arremessos de meia distância e o jogo no mano-a-mano – e tentar compensar ou minimizar suas dificuldades defensivas sérias e seus problemas com a proteção de rebotes. Isso envolve um time que queira dar arremessos de meia distância e tenha uma vaga não apenas no time titular, mas também um vácuo no protagonismo da equipe. Também envolve um time que não se preocupe com suas limitações defensivas, que queira fazer ajustes táticos para acomodá-lo e que não tema os conflitos internos que possam surgir de uma figura tão grande, tão monopolizadora, que chega de repente já forçando todo mundo a mudar ao seu redor. E aqui nem estamos falando necessariamente de personalidade – tudo isso acontece no campo do estilo do jogo e da função na equipe. São condições demais, de modo que é fácil entender o motivo de tantos times, e jogadores amigos de Carmelo, terem ficado intimidados. O simples ato de tentar um pouquinho, dar uma experimentadinha pra ver se funciona, torna-se impossível porque o impacto que isso pode ter no elenco, especialmente com o holofote dado pela imprensa, é grande demais. Não é à toa que ninguém se atreveu a arriscar – ao menos publicamente, claro.
Certamente alguns times estavam interessados em Carmelo, mas em outros termos: talvez como reserva, talvez apenas parado na linha de três pontos arremessando bolas que sobrassem, talvez com minutos ou funções mais limitados. É difícil imaginar que ofertas nesses termos não tenham chegado nesse mais de ano parado. Mas Carmelo admitiu ter pensado em se aposentar recentemente porque aceitar uma situação que não fosse funcionar iria, em suas palavras, “se voltar contra ele”. Um calejado Carmelo afirmou, após sua primeira semana de retorno, que “se a situação não desse certo, a culpa iria recair sobre mim”. E ele tem toda razão: jogadores na NBA moderna possuem a liberdade de escolher onde jogar, mas são imediatamente culpados pelo fracasso quando escolhem situações que não se mostram ideais. Com Carmelo já destroçado pelos fracassos recentes (e por uma carreira inteira sem grandes conquistas na NBA), já quase aposentado pela opinião pública, qualquer situação que não fosse perfeita iria acabar confirmando os conceitos e os preconceitos que temos sobre ele, gerando uma culpa – se devida ou indevida, não importa – que iria certamente acabar em definitivo com sua imagem e com sua carreira.
E foi quando ele já estava considerando se aposentar sem passar por essa camada extra de culpa e polêmica que surgiu o Portland Trail Blazers. Enfim temos um time disposto a fazer as concessões necessárias para ter Carmelo: pra começar, trata-se de um time desesperado, tendo uma campanha muito abaixo das expectativas, de modo que o preço para um possível fracasso de Carmelo pareceu mais barato. Além disso, o time precisava imediatamente de um desafogo ofensivo, já que Damian Lillard e CJ McCollum, com estilos muito semelhantes entre si, são constantemente sufocados por defesas que sentem não precisar se preocupar com os demais jogadores, especialmente próximo ao garrafão. No elenco não há também preocupação com ceder minutos, já que não é um time muito profundo e nem desenvolvendo novatos ou futuros jogadores – por estar muito acima dos limites salariais, o Blazers está inteiramente comprometido com lutar por um título com o elenco que já tem em mãos. E, por fim, temos no Blazers um time disposto a receber um veterano, dar-lhe espaço e ouvi-lo simplesmente porque querem vencer – o elenco é unido, está junto há muito tempo, mas quer resultados e sabe que precisa de toda ajuda que puder, especialmente se ela topar um salário baixo. Ao invés de um intruso, ou de alguém pra chutar umas bolas de vez em quando, o Blazers quer ajuda PRA VALER e imediatamente, num clima de tudo ou nada que não pode se dar ao luxo de se preocupar com o futuro. Se Carmelo topou a brincadeira foi justamente porque percebeu que a situação era mesmo perfeita – o que não significa, claro, que a empreitada vai necessariamente ser bem-sucedida. De garantia, temos apenas que um time precisava de Carmelo tanto quanto ele precisava de um time, o que é algo que parecia impossível de se cogitar há poucos meses atrás.
Quem acha que Carmelo estava fora da NBA por não ser bom só pode ser cego, surdo e mudo. Mesmo com as mudanças drásticas pelas quais passou a NBA, arremessando cada vez menos bolas de meia distância, ainda há espaço para jogadores especialistas nesse arremesso num momento em que a maior parte das defesas oferece espaço para isso DE PROPÓSITO, na ânsia por proteger o perímetro e o garrafão. Mesmo as deficiências defensivas de Carmelo não parecem tão sérias quando comparamos com outros jogadores, ainda mais limitados nesse aspecto, e que acabam sendo tolerados porque seus times precisam do impacto ofensivo que oferecem em quadra – Isiah Thomas está aí, por exemplo, para não nos deixar mentir. Até o estilo de jogo, que passou a ser odiado pelos torcedores obcecados com uma visão simplista de “individualismo” e “coletividade”, está sendo resgatado pelas estatísticas avançadas, que mostram que muitas vezes atacar seu adversário no mano-a-mano é mais simples e eficiente do que jogadas muito mais difíceis e sofisticadas. Não há nada em Carmelo e em seu estilo de jogo que seja invariavelmente repulsivo ou evitável; o que há, na verdade, é o conjunto de concessões, adaptações e comprometimentos necessários para recebê-lo – o que é suficiente para afastar a maior parte dos elencos. Se for para usá-lo só de arremessador de três pontos estático, como fez o Thunder, o drama criado pela imprensa NÃO VALE A PENA – tem outros arremessadores de três disponíveis por aí que se errarem suas bolas, como Carmelo costuma errar, você pode simplesmente cortar do elenco sem ter que se preocupar com ocupar todas as manchetes de jornal. Se for para usar Carmelo como alguém que não toca na bola, como ocorreu no Rockets, é melhor chamar um cara da G-League, como foi o caso de Danuel House, para fazer a mesma coisa mas sem se sentir frustrado, inadequado, acabar gerando perguntas difíceis e constrangedoras para a comissão técnica e eventualmente um clima ruim no vestiário. Para se ter Carmelo, a única coisa que vale a pena é usar Carmelo da forma como ele é, o que obviamente cobra um preço e faz pouquíssimo sentido para a esmagadora maioria dos times da NBA. É estranho admitir, mas muitas vezes, para não ter que lidar com a bagagem histórica de um jogador, é melhor substituí-lo por outro PIOR.
É por isso que receber Carmelo não foi um plano de longa data do Blazers, que poderia ter feito a contratação antes da temporada começar e, com isso, ganhado a chance de incluir o jogador nos treinos da equipe com antecedência. O que vimos foi, ao invés disso, uma ação desesperada de um time que descobriu muito rapidamente que não tem nada a perder – é o famoso “pisou na merda, abra os dedos”. Ao invés de enfiá-lo num canto, o Blazers é o único time da NBA nesse momento que precisa que Carmelo seja exatamente Carmelo, com tudo que ele carrega de melhor e de pior, sem exceção. E para um carente Carmelo Anthony, isso é o mais perto de amor verdadeiro que ele conseguirá. Tudo que lhe resta é mostrar, agora, que ele ser ele próprio é mais do que o suficiente.