Os vidros quebrados

Há um desenho de Kobe Bryant pelo qual sou obcecado desde a primeira vez que o vi, mais de 10 anos atrás. Ele ilustra um capítulo sobre o jogador na obra “The Macrophenomenal Pro Basketball Almanac: Styles, Stats, and Stars in Today’s Game”, um livro criativo, bem escrito e bem pensado que explicava e detalhava os astros do basquete de meados dos anos 2000. A imagem batizada de “Perseguindo a Perfeição” é essa aqui:

Kobe Bryant

Tudo no desenho tem uma razão de ser. Kobe não está usando um uniforme de basquete, mas uma roupa formal e muito além da sua idade, está trabalhando e levando seu serviço muito a sério. Hoje mesmo Allen Iverson lembrou de quando ele foi jogar contra o Lakers em Los Angeles em 2001 e ele se encontrou com Kobe para jantar. Os dois conversaram e Kobe perguntou para onde Iverson iria depois. “Para uma boate”, respondeu o craque do Sixers, “e você?”. Kobe estava indo treinar. Uma de suas mil histórias absurdas de obsessão por melhorar, outra das quais se perdem entre casos absurdos e puras lendas que ninguém mais sabe diferenciar. “Com Kobe você deve ao menos considerar que seja verdade”, disse Buddy Hield ao falar de sua idolatria ao jogador em um texto de 2016. Que jovem milionário de 20 e poucos anos vai treinar em Los Angeles ao invés de sair, beber e aproveitar a vida? Um que é obcecado.

O desenho não mostra Kobe Bryant sorrindo também. Mas mais importante, não mostra ele com a sua característica cara de “black mamba”, aquele olhar assassino com queixo para frente e dentes rangendo. A verdade é que Kobe não era sempre assim e nem era melhor assim. Sei que o papo na época era de “segura ele agora” depois que fazia esse rosto, mas seus jogos mais mortais são os mais frios. Pegue as melhores atuações contra Utah Jazz, Phoenix Suns, Denver Nuggets e Boston Celtics nas épicas séries de Playoffs de 2008 a 2010 e verá que a única coisa que tinha de uma cobra lá era o sangue gelado. É a frieza de quem tem muitos passos na cabeça e que precisa realizar todos, pouco a pouco, para finalizar o serviço com a qualidade que ele mesmo exige.

Era possível ilustrar esse Kobe Bryant realizando dúzias de atividades diferentes: jogando xadrez contra si mesmo, montando um quebra-cabeças de 24 mil peças, construindo um foguete, fazendo uma cirurgia, pintando um quadro com nuances e detalhes ou construindo uma escultura com palitos de fósforo. A escolha pelo navio dentro de uma jarra de vidro, porém, é mais precisa. A atividade não é só difícil e focada em detalhes, mas também exige paciência e delicadeza, atividades pouco associadas a um homem grande e com explosão física alucinante. Como o ex-técnico Phil Jackson disse em seu livro “Onze Anéis”, ao contrário de Michael Jordan, Kobe sempre colocou mais foco no jogo de pernas, na técnica, na capacidade de superar tecnicamente e mentalmente o adversário.

A delicadeza dos dedos grossos moldando navios frágeis em garrafas de vidro ganha o contraste da infinidade de destroços no chão. Como alguém com pavor de errar, sinto um incômodo indescritível de ver como o Kobe da ilustração segue com seu semblante sério e compenetrado enquanto cacos mortais estão escancarados lá no chão, gritando seus erros, desastres, decisões desastradas e indicando o que o trabalho atual pode se tornar em questão de segundos. Para ele, porém, tudo é parte do processo em busca da perfeição.

Foi assim que Kobe levou a sua carreira dentro das quadras e a vida fora delas. Muitos erros e nenhuma vergonha disso. Não por inconsequência, mas por entender que essa é a única maneira de seguir em frente. Ainda com 17 anos ele chegou na NBA cheio de arrogância e sofreu por isso: não se integrou com o resto do elenco do Lakers, ficou no banco de reservas e em sua primeira chance de brilhar nos Playoffs tentou emular Jordan e acabou com três arremessos seguidos que nem tocaram o aro, marcando uma eliminação melancólica diante do Utah Jazz. Lição de humildade? Nenhuma, era só treinar mais que da próxima vez tudo iria dar certo. Uma garrafa quebrada significa que ele está mais perto de não quebrar a próxima. E era assim até dentro de cada jogo, com arremessos errados ou desperdícios de bola sendo deixados para trás como parte de um processo, não como uma mancha. O vidro no chão não é sinônimo de imperfeição. Talvez só James Harden hoje seja capaz de nos mostrar (e às vezes nos enfurecer) essa mentalidade de que todos os arremessos passados não importam, que o que vale é o próximo.

A carreira de Kobe Bryant é uma coleção de erros, vidros despedaçados e correções. Ele brigou com Shaquille O’Neal e Phil Jackson, maiores responsáveis pelo seu sucesso inicial, e demorou anos para fazer as pazes com os dois, em tempo ao menos de ser treinado e conquistar títulos de novo com o técnico. Fez inimigos ao tentar ser líder no LA Lakers, tratou mal companheiros até se tornar, só depois de mais velho, alguém capaz de tirar o melhor mesmo de jogadores limitados ao seu redor. Foram anos sempre querendo dar o arremesso final até entender, no fim de um Jogo 7 nervosíssimo, que era possível passar a bola para o lado mesmo que o companheiro não tivesse treinado tanto quanto ele ao longo da vida. Foi só no fim da carreira que ele percebeu, talvez com a ajuda da nova geração, que os rivais não eram ameaças fora da quadra e que era possível elogiar, ser elogiado e não perder a competitividade das partidas.

Kobe-2001

Muito se discutia nos últimos tempos sobre uma possível jornada de redenção de Kobe Bryant. Desde sua aposentadoria em 2016, ele deixou a NBA um pouco de lado e passou a se dedicar à família, às filhas, à promoção do basquete feminino e ao que ele chamava de “storytelling“, contar histórias para inspirar pessoas e especialmente outros atletas, com um serviço que misturava o de um tutor com o de um treinador individual.

O seu sucesso nessa nova etapa da carreira é comparável ao que teve dentro das quadras. Horas após a sua morte no trágico acidente de helicóptero deste domingo, choveram homenagens e depoimentos de jogadores de diversas modalidades que relembraram momentos dos últimos anos em que foram ajudados ou inspirados por Kobe. Sua contação de histórias rendeu um curta-metragem, “Dear Basketball”, que até ganhou um Oscar. O time de basquete feminino da sua filha Gianna era um sucesso, ela era um talento promissor e Kobe inspirava agora também mulheres, como declarou Sabrina Ionescu, o absurdo fenômeno universitário que virou amiga pessoal do jogador e que dedicou ontem toda sua temporada a ele: “tudo o que eu faço, é para ele”.

Embora bem sucedida, a jornada era vista por alguns como parte de uma jogada de marketing para limpar sua imagem depois de uma carreira de 20 anos de altos, baixos e controvérsias, sendo a maior delas uma acusação de estupro em 2003. Não foram poucos textos com desabafos feministas nos últimos anos alertando para o fato de que um homem que abusou de uma mulher era hoje um dos rostos e porta-vozes do basquete feminino nos EUA. O caso de Kobe foi encerrado em um acordo com a acusadora e uma declaração lida pelo jogador onde ele diz acreditar que havia feito sexo consensual mas que entendia, depois de ouvi-la, como a mulher não via o ato da mesma forma.

Existe toda uma linha de livros, filmes, séries e histórias em geral sobre essa questão básica da natureza humana: somos capazes de mudar? São casos de heróis que falharam no passado e que buscam redenção ou de personagens que andam em círculo até descobrirem que jamais poderão abrir mão de uma certa essência inescapável. No mundo de Kobe Bryant, porém, há sempre a chance de arrumar as coisas. Os vidros desse caso causaram uma vítima e um trauma, mas nunca existe um fim. É sintoma de uma sociedade machista que um homem precise passar por uma acusação séria, pelo desabafo da vítima, pela tentativa de reatar com a esposa e pelo nascimento de quatro filhas, todas mulheres, para entender o outro lado da moeda? Mas a mudança é menos verdadeira por isso?

Na aposentadoria de Kobe Bryant, em 2016, escrevi sobre a aventura que foi tê-lo como ídolo ao longo daqueles 20 anos. Tudo começou como uma mera admiração inexplicável de um adolescente por um cara marrento que nunca foi como eu era e nem como gostaria de ser, mas que era hipnotizante de acompanhar, seguir e torcer. Fomos crescendo em paralelo e com valores muitas vezes díspares: eu acho que o mundo deve ser menos competitivo, que trabalhar demais faz mal e racionalmente queria me tornar mais um fã de Steve Nash ou LeBron James, passadores que unem equipes, do que do Macho Alfa que lidera seu bando com mão de ferro. Mas jamais consegui mudar de ídolo maior. No calor do jogo tudo o que eu queria era a bola na mão de Kobe Bryant e nada me dava mais prazer do que vê-lo tentar dominar jogos sem qualquer medo de errar.

Era estranho querer defendê-lo mesmo sem concordar com ele, sem querer ser como ele era. Como eu poderia me sentir tão inspirado por alguém com quem compartilhava tão pouco? O cara virou quase um coach/palestrante depois de parar de jogar enquanto eu estava aqui dizendo que discurso motivacional é uma praga dos nossos tempos. Mas estava aqui vendo seus vídeos, usando sua camisa, me emocionando com seu curta-metragem e gritando “Kobe!” enquanto atirava papéis em lata de lixo ou bolas invisíveis em cestas imaginárias no meio da sala em uma madrugada de trabalho ou insônia.

Kobe2010

Em agosto do ano passado descobri que vou ser pai de uma menina. E não foram poucas as vezes em que me peguei inspirado por Kobe levando sua filha Gianna Bryant a tiracolo para todos os lugares, explicando para ela o basquete e dando a ela tudo o que um filho mais lembra de seus pais quando chega na vida adulta: carinho e atenção. Se um cara que há alguns anos era o sinônimo de egoísmo é capaz disso, acho que posso chegar lá. E sempre adepto de me isolar de tudo, também passei a admirar o quanto Kobe estava dedicando seu tempo a outros jogadores nessa sua fase de aposentadoria. A parte “oficial” da tal Mamba Mentality não me pega, acho que sou pessimista demais para discursos motivacionais, mas o trabalho dele nos bastidores era outra coisa: mensagens privadas para diversos jogadores, treinos, dicas e, de novo, carinho e atenção. Não é coincidência que tantos jogadores ficavam lisonjeados ao serem pauta do seu programa Detail, na ESPN. Era um dos maiores estudiosos do basquete dedicando tempo e atenção a um cara. Sentar na beira de um jogo da WNBA parece nada de mais também, mas é tempo e atenção e isso sempre vai valer muito, especialmente de alguém admirado e que não precisaria daquilo pra viver.

Alguns veículos estão falando que Kobe tem um legado “complicado”, mas não enxergo dessa forma. Talvez seja difícil para quem quer eleger heróis e vilões, para quem quer homenagear e tem medo de canonizar. Pode ser complicado para quem tem medo de parecer que esqueceu o caso de estupro ao mesmo tempo que não quer definir uma vida inteira por um erro. Ninguém quer ser insensível enquanto o mundo inteiro chora a morte de um cara que fez milhões de pessoas pegarem uma bola de basquete e ir para a quadra. Ele é complicado para quem acha que a morte é a hora de uma grande conclusão, de um juízo final.

Como pessoa de poucos ídolos, fico feliz que o maior deles seja Kobe. É alguém que tantas vezes eu não gostei, discordei e até lamentei. Ele é ao mesmo tempo um dos esportistas mais humanos, com defeitos exagerados e escancarados, e um cara capaz de ter um lado sobre-humano que tanto buscamos ao nos refugiar no esporte. Ele é o cara que erra até dizer chega, mas também o cara que vai além do que achávamos possível para uma pessoa, que inspira nos momentos mais difíceis e que parece que é um conhecido nosso quando vai embora.

Os golpes foram duros. Eu sou um dos milhões de jovens que só foram abraçar o basquete como modo de vida depois de ver Kobe  em quadra. E, por deus, como ele me fez pensar sobre basquete, valores, a vida, juventude, amadurecimento, machismo, motivação, competitividade e paternidade. Parece que quebramos juntos tantos daqueles vidros, que eu pisei nuns cacos e gritei com ele por despedaçar tantos deles. Mas estávamos juntos o tempo todo.


Receber a notícia da morte de sua filha Gianna e de outros tantos pais e jovens jogadoras deixou a pancada ainda mais dura. Gigi não teve essa jornada. Dói pensar em tudo o que ela não teve tempo de fazer, no talento absurdo que tinha no basquete e que não vai poder mostrar ao mundo, na sua ausência devastadora para a mãe Vanessa e para as irmãs Natalia, Bianca e Capri. No TrueHoop, Henry Abott fala do pavor de todo pai de viver algo assim.

A relação mais intensa de Kobe nos últimos anos foi justamente Gigi, de 13 anos. Em entrevista recente, Kobe diz como foi perceber que não era necessário nascer nenhum filho homem para que seu tal “legado” fosse carregado para frente. A própria Gigi era o resultado incrível que a soma de DNA e convivência pode produzir: Gianna era focada, curiosa e, para a surpresa de Kobe, tinha sempre perguntas específicas sobre detalhes mínimos de posicionamento mesmo quando jogando ou assistindo os momentos mais tensos e emotivos do basquete. Como ele -e com suas caras e bocas e mordidas de camisa- ela era obcecada por estudar, treinar e melhorar. Ter ao seu lado uma aspirante a jogadora da WNBA fez Kobe olhar para o mundo do basquete feminino e usar sua imagem, idolatria, dinheiro e capacidade sobrenatural de motivar atletas para promover a modalidade.

“Eu tenho uma vida e uma rotina em casa”, disse Kobe Bryant ao Los Angeles Times em outubro de 2019. “Não é que eu não queira ir a mais jogos do LA Lakers, mas eu prefiro dar banho nas meninas e cantar músicas do Barney pra elas. Joguei 20 anos e perdi esses momentos antes. Ir até o Staples Center significa perder uma noite com as minhas crianças e sei como o tempo passa voando. Prefiro estar com elas a fazer qualquer outra coisa”. E ele realmente ia pouco a jogos e, quando ia, levava Gigi para ver seus jogadores favoritos. Ele assistiu a dois jogos de Trae Young, jogador favorito dela, nesta temporada e em outro foi assistir ao Dallas Mavericks de Luka Doncic, com quem interagiu depois do jogo para pedir uma foto dele com a pequena.


KOBE BRYANT NO BOLA PRESA

Sempre me envergonho dos textos mais antigos do Bola Presa e quero reescrever todos. Não só para corrigir a formatação, perdida ou esculhambada após diversas mudanças de plataformas e servidores, mas pela qualidade da escrita e às vezes até pelas opiniões que não tenho mais. Mas deixo lá, é um retrato de quem éramos e do que pensamos. Nestes 12 anos de blog já escrevemos sobre os altos e baixos de ter Kobe Bryant como ídolo nos últimos 20 anos, de como deveríamos aproveitá-lo enquanto era tempo ao invés de ficar comparando com outros jogadores e até de como ele é uma versão atlética e competitiva da vingança dos nerds. Falamos dele evoluindo taticamente pra jogar mais perto da cesta, de como sua lesão no tendão de aquiles era um anúncio da sua aposentadoria e até de como os números diziam que ele errar arremessos nem era tão ruim assim.

Torcedor do Lakers e defensor de 87,4% das estatísticas.

Como funcionam as assinaturas do Bola Presa?

Como são os planos?

São dois tipos de planos MENSAIS para você assinar o Bola Presa:

R$ 14

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

R$ 20

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo: Textos, Filtro Bola Presa, Podcast BTPH, Podcast Especial, Podcast Clube do Livro, FilmRoom e Prancheta.

Acesso ao nosso conteúdo exclusivo + Grupo no Facebook + Pelada mensal em SP + Sorteios e Bolões.

Como funciona o pagamento?

As assinaturas são feitas no Sparkle, da Hotmart, e todo o conteúdo fica disponível imediatamente lá mesmo na plataforma.