Na última edição da nossa série sobre as mudanças táticas da NBA ao longo das décadas falamos sobre o basquete dos anos 1990 dominado por Michael Jordan e uma das melhores gerações de pivôs já vistas no basquete. Inspirados pelo sucesso do Detroit Pistons no fim da década anterior, o mundo do basquete estava em busca das grandes defesas. Junte a isso a ascensão do preparo físico no esporte mundial e o completo domínio do pensamento de que “esporte é coisa de homem” e temos o estilo mais físico e pesado de todos os tempos. O que disso foi levado ao século 21?
A história tática da NBA – Anos 1950 e 1960
A história tática da NBA – Anos 1970
A história tática da NBA – Anos 1980
A história tática da NBA – Anos 1990
Alguns dos vídeos da série foram excluídos pelo Streamable, iremos em breve corrigir todos os textos
No começo dos anos 2000 o basquete era ainda uma continuação da década anterior. Os times ou tinham grandes jogadores de garrafão ou buscavam desesperadamente por um. Enquanto Shaquille O’Neal mandava no mundo e ganhava três títulos seguidos usando o mesmo esquema tático dos triângulos que consagrou Michael Jordan e o Chicago Bulls, a maioria dos outros pivôs que reinaram nos anos 1990 já estava se aposentando. Curiosamente, porém, foi nessa hora que uma safra de alas-pivôs salvou o jogo de garrafão ao mesmo tempo que já indicava uma possível mudança na liga.
Como falamos no texto anterior, os jogadores da posição 4 costumavam naquela época atuar um pouco mais longe da cesta e arremessavam mais de meia distância que pivôs, mas ainda eram jogadores que atuavam próximos do garrafão e jogavam no bom e velho post-up. Nessa mistura, Tim Duncan, Kevin Garnett, Chris Webber, Dirk Nowitzki, Rasheed Wallace e tantos outros eram a bola de segurança próxima da cesta de seus times mas também mostravam ao mundo que conseguiam fazer a diferença com passes, controle de bola, infiltrações, dribles e até arremessos de longa distância. Olhando hoje, com a História do nosso lado, vemos com Rasheed Wallace e Dirk Nowitzki abriram caminho para os stretch-fours dos anos 2010 e como Chris Webber e Kevin Garnett mostraram desde cedo como jogadores gigantes poderiam ter tranquilamente a bola na mão para criar jogadas longe da cesta. Mas embora o sucesso dessas estrelas tenha feito muita gente repensar a versatilidade dos grandões, as mudanças nas estruturas táticas da NBA aconteceram bem aos poucos.
A não-mudança tática das primeiras temporadas dos anos 2000 acabou não sendo boa para a NBA. O jogo físico, pegado e focado na defesa perdeu um pouco do seu apelo quando a liga passou por uma entressafra de ídolos: sem Michael Jordan, aposentado, e com uma nova ótima geração ainda muito em começo de carreira, a audiência caiu e de repente aqueles placares baixos e jogos brigados não pareciam tão apelativos ao público. A péssima e apressada temporada 1998-99, encurtada por causa de uma paralisação trabalhista dos jogadores, não ajudou, claro. Com isso a liga resolveu mudar as regras e criar uma pequena revolução: o fim da defesa por zona. Replico abaixo os parágrafos de um texto desta temporada sobre esse momento histórico.
A defesa por zona é aquela em que um jogador é responsável por marcar uma área do seu campo de defesa, não necessariamente um jogador específico. Às vezes ele pode até ficar mais próximo de um rival, simulando uma defesa individual, quando um determinado jogador está dentro da sua área, mas este deixa de ser sua responsabilidade quando muda de posição. Embora comum em qualquer lugar do mundo, desde o basquete universitário dos EUA até qualquer liga europeia ou sul-americana, na NBA a defesa por zona foi PROIBIDA até a temporada 2001-02.
Não há uma história oficial da proibição, mas o consenso geral da velha guarda americana era a de que a defesa por zona seria um artifício para compensar a falta de talento, de esconder uma incapacidade de defender alguém no mano-a-mano e de punir jogadores mais talentosos que receberiam sempre marcações duplas ou triplas antes mesmo de receber a bola na mão. A obrigação de defesa individual na NBA fez com que o basquete profissional americano ganhasse um rosto mais personalista onde os atletas mais talentosos tinham um incentivo enorme para só colocar a bola debaixo do braço e decidir jogos. A marcação dupla era até permitida, mas um segundo jogador só podia partir para a ajuda quando o alvo já estivesse com a bola na mão. Nos anos 1990, era comum times darem a bola na mão de sua principal estrela enquanto todos os outros jogadores praticamente se escondiam do outro lado da quadra, fazendo com que a possível dobra demorasse tempo demais para chegar. Nunca que hoje dariam tanto espaço para Hakeem Olajuwon receber a bola:
No basquete de hoje até vemos lances parecidos, mas agora é a defesa que escolhe agir assim. Se hoje o espaçamento da quadra é alcançado por bons arremessadores que forçam o marcador a nunca oferecer espaço demais, naquele tempo o espaçamento para a estrela era alcançado na base da LEI. Você é OBRIGADO a marcar um pivô na linha dos três pontos mesmo que ele nunca tenha dado um arremesso de longe em toda sua vida. Não à toa o basquete dos anos 1990, embora empolgante da sua maneira e abençoado com uma das gerações mais talentosas a pisar em quadras de basquete, não era exatamente um primor de criatividade tática e variações ofensivas.
Com um jogo lento e pouco criativo, com placares baixos e defesa física demais, a NBA resolveu finalmente adotar novas regras e se juntar ao resto do mundo na liberação de defesa por zona. Na época o Melchiades Filho, solitário colunista de basquete (entre outras funções mais nobres) na Folha de S. Paulo, escreveu sobre o que ele chamou de “a mudança de regra mais revolucionária desde que o torneio adotou o limite de 24 segundos para a posse de bola, em 1954”:
“É o fim do mundo que o torcedor da NBA conheceu. A liga anunciou que vai abandonar a principal regra que distinguiu o basquete profissional norte-americano -idolatrado pelas acrobacias, criatividade e velocidade- do praticado no resto do planeta. A partir do próximo campeonato, que começa em outubro, a defesa individual, homem a homem, não será mais obrigatória. Em uma análise simplificadora, pode-se dizer que um jogo da liga não se resume ao duelo entre equipes. Há, sim, cinco duelos individuais simultâneos, os chamados “matchups”. Os times se movem para explorar esses confrontos pessoais, para minimizar suas fraquezas e aproveitar as do rival. A quadra torna-se o habitat perfeito para um jogador talentoso, criativo e atlético -não à toa, Michael Jordan explodiu nesse ambiente. A marcação por zona, por sua vez, permite que se mascarem as deficiências. Se um jogador é falho na defesa, a equipe sai em seu socorre, congestionando o setor”.
É verdade que a NBA não saiu fazendo defesa por zona desde o primeiro dia, muitos técnicos e jogadores sequer achavam que ela daria certo nesse nível, mas o fato de poder dobrar a marcação ou simplesmente fazer uma sombra em um grande jogador adversário com um segundo defensor sem ter medo de apitarem “defesa ilegal” criou um leque maior de variedade para os treinadores brincarem. Mas embora o jogo tenha ficado com mais variação, ela acabou só deixando o trabalho mais fácil para a defesa enquanto os ataques não acharam soluções para a dificuldade extra. De 1998-99 a 2003-04 a NBA viu suas seis piores temporadas em termos de rating ofensivo (pontos marcados a cada 100 posses de bola) desde o fim dos anos 1970.
Foi nesse período que times como o Detroit Pistons, o San Antonio Spurs e o Indiana Pacers brilharam ao saber se aproveitar dessas novas regras defensivas. É simbólica a Final do Leste de 2004 entre Pistons e Pacers, um festival de jogos onde time sofriam para chegar perto dos 80 pontos. No Jogo 6, vencido pelo Pistons, o time VENCEDOR marcou 69 pontos. O Jogo 2, um bizarro 72 a 67, marcou o recorde de TOCOS num jogo de Playoff na história da NBA: 26. Marcar pontos era impossível.
Logo depois dessa temporada a NBA decidiu então mudar outra regra e deu fim ao hand-check. O hand-check era a permissão dada aos defensores de manter uma de suas mãos encostadas no atacante o tempo todo, era algo que deixava o jogo mais físico (qual a diferença entre uma mão no corpo e um empurrão, no calor do jogo?) e que prejudicava em especial os jogadores de perímetro, que tinham mais dificuldade de driblar e de abrir espaço frente a seu marcador por causa dessa mão grudada nele.
“O jogo mudou demais”, disse Jason Kidd em 2010 sobre a mudança. “Antes você podia colocar a mão e segurar o armador um pouco, você podia ser mais físico com quem estava com a bola. Agora se você toca em alguém é falta, definitivamente dá mais vantagem aos jogadores mais velozes”. A mudança de regra até ajudou a acabar com um movimento comum de armadores dos anos 80 e 90 de virar de costas, como se fossem pivôs, quando chegam ao campo de ataque. Era um jeito de proteger a bola enquanto chamavam jogadas e esperavam o posicionamento dos companheiros, depois disso os armadores não precisavam mais tanto se preocupar com alguém colado neles. No vídeo abaixo, em uma transmissão da TNT de alguns anos atrás, Kenny Smith explica no estúdio a diferença de driblar com e sem o hand-check. Cortei a parte em que ele diz, como bom saudosista que é, que os jogadores dos anos 1990 marcariam um bilhão de pontos nos dias de hoje:
A mudança de regras casou com o mesmo ano em que o Dallas Mavericks tomou uma decisão voltada ao passado: decidiu não renovar com o armador Steve Nash para poder oferecer um contrato pesado para o pivô Erick Dampier, já que a análise interna deles era que faltava um grandalhão no garrafão para encarar Shaquille O’Neal e Tim Duncan. Sorte do Phoenix Suns, que contratou Nash e trouxe também o técnico Mike D’Antoni e todas suas ideias de como fazer um novo tipo de ataque na NBA. Foi a revolução.
A primeira mudança foi em relação à velocidade. D’Antoni acreditava que as melhores oportunidades de ataque se apresentavam nos primeiros SETE SEGUNDOS de posse de bola, antes que a defesa conseguisse se posicionar. Depois veio a ideia de espaço na quadra, com o time sempre tentando posicionar bons arremessadores de longa distância nos cantos da quadra para obrigar a defesa a se esticar até lá para marcá-los. Por fim o time usava Amar’e Stoudemire como pivô, um cara muito mais baixo e ágil que o padrão da posição. A ideia não era dar a bola pra ele de costas para a cesta, mas tirá-lo do garrafão para fazer pick-and-rolls com Steve Nash, abrindo assim a chance dele receber a bola de frente para a cesta e usar sua explosão ou para deixar Nash atacar o garrafão, onde poderia fazer bandejas ou dar passes para qualquer arremessador do time. Esse sistema, chamado spread pick-and-roll se tornou eventualmente o padrão da NBA, com a maioria dos times o utilizando em ao menos em alguns períodos dos jogos.
O vídeo abaixo é focado no time de 2010, que ainda funcionava sob os mesmos princípios daquele de 2005, mas com elenco um pouco diferente e já Alvin Gentry como treinador. Mas são algumas jogadas básicas que se consolidaram no livro de jogadas de todo treinador na segunda metade dos anos 2000:
A parte mais importante é perceber como o time abre espaço no garrafão com Amar’e Stoudemire saindo de lá para fazer os bloqueios e como em nenhum momento o time procura qualquer tipo de post-up ou jogada de mano-a-mano. E qualquer resposta da defesa para conter Amar’e ou Nash, um dos melhores arremessadores da sua geração, acabavam deixando ao menos um arremessador livre na linha dos 3 pontos.
O que faltou para a revolução ser mais rápida do que o que vimos foi um TÍTULO. O time viu temporadas mágicas acabarem seguidas vezes nas mãos do San Antonio Spurs, que mesmo mais moderno e com maior protagonismo de Tony Parker e Manu Ginóbili nas infiltrações, ainda tinha muito do jogo de garrafão de Tim Duncan como ponto de partida e alguma lentidão na maneira de abordar o ataque. Já a defesa física (apesar e no limite das novas regras) do Boston Celtics campeão em 2008 fez muita gente pensar que a EXPERIÊNCIA COMPLETA do Suns não devesse ser adotada. A vitória do time de Doc Rivers, Paul Pierce, Ray Allen e Kevin Garnett reforçou a ideia de que defesas vencem campeonatos e todos, por algum motivo, achavam que era impossível jogar como o Suns no atque e ao mesmo tempo ser uma defesa eficiente. Influente em sua construção e no jeito de encarar a reunião de diversos All-Stars sob o mesmo teto, o Celtics plantou também uma sementinha nas mudanças táticas. Na defesa, claro. A maneira de congestionar a quadra e marcar os tais pick-and-rolls chamaram a atenção, mas só virariam padrão na liga nos anos 2010, quando o então assistente Tom Thibodeau virou técnico principal do Chicago Bulls. Tema para o próximo texto.
Mas isso não impediu a NBA de perceber o valor da velocidade, das bolas de 3 pontos, de abrir espaço para infiltrações e especialmente do ataque em volta do pick-and-roll no meio da quadra. Mesmo o Los Angeles Lakers, bi-campeão em 2009 e 2010 usando o velho sistema de triângulos dos anos 1990, apelava para o pick-and-roll no meio da quadra com Kobe Bryant e Pau Gasol especialmente no final das partidas, apenas com a diferença no posicionamento de Lamar Odom, que ficava como alívio da dobra de marcação ao invés de ficar na linha dos 3 pontos.
Já que falamos do Phoenix Suns é importante sempre lembrar que nem sempre os pioneiros são os que fazem a diferença nas revoluções táticas da NBA. No meio do processo que deixou o basquete mais lento no começo dos anos 1990, o Golden State Warriors que ficou conhecido como “Run TMC” jogava num ritmo de jogo absurdo de veloz. Era legal, fez sucesso relativo, mas ninguém imitou, ficou por isso mesmo. Em 2002 o Boston Celtics jogava com time baixo, usava quintetos sem pivô e arremessava 23 bolas de 3 pontos por jogo, DEZ a mais que a média da liga na época e número que só foi virar média na NBA lá por 2015. Só que ninguém na época viu isso como um dos segredos que fez aquele time bem limitado ir mais longe do que deveria nos Playoffs, então não foi copiado e a história morreu por aí. O Suns, mesmo que aos trancos e barrancos e com algum receio do resto da liga, ficou na mente de todo mundo e eventualmente fez todos mudarem.
O final da década, aliás, foi marcado justamente pela adoção, aos poucos, dessas mudanças táticas. A média de arremessos de 3 pontos tentados por time a cada partida subiu de 13 para 19 ao longo dos anos 2000, um crescimento significativo, mas que chamam ainda mais a atenção pelo número de “aberrações” que, juntas, faziam a mudança parecer mais normal. O Orlando Magic de Stan Van Gundy, que reuniu quatro arremessadores e nenhum outro jogador de garrafão ao redor de Dwight Howard chutava VINTE E SETE bolas de 3 por partida em 2010, um pouco na frente do NY Knicks do próprio Mike D’Antoni, que levou sua revolução para Nova York. Indiana Pacers, Houston Rockets, Milwaukee Bucks, Golden State Warriors e o próprio Phoenix Suns já eram outros times que tinham superado a barreira simbólica das 20 bolas de 3 tentadas por jogo. A média subiu significativamente ao longo da década, mas se não fosse o grupinho dos cabeças-duras poderia ter crescido ainda mais, já não eram mais um ou outro time vendo o benefício da bola de longa distância.
E é depois de uma bela TABELA DE EXCEL que vamos falar na última grande mudança dos anos 2000: os números. O sucesso do ataque do Suns não serviu apenas para encantar nossos olhos e mostrar como o público gosta de jogos com muitos pontos marcados, mas também como experimento e prova do poder dos arremessos de longa distância no basquete. No começo dos anos 2000 as tais “analytics” chacoalharam primeiro o mundo do beisebol, na história hoje famosa contada no livro Moneyball, de Michael Lewis, e depois tomaram conta de todos os outros esportes. Tanto como no beisebol como no basquete, já tinha gente pesquisando os números do esporte há algum tempo, mas a barreira até a entrada deles nos times profissionais foi difícil de derrubar.
No caso do basquete o principal inovador foi Dean Oliver, que criou em 1996 o Basketball Digest, uma compilação online de estudos acadêmicos sobre a modalidade. Anos depois ele escreveu o livro Basketball on Paper, com resultados dos seus anos de pesquisa e que trouxe conceitos como o “Four Factors” que até hoje são utilizados em páginas de estatísticas e por times da NBA. Ele também foi responsável pelo fórum APBRmetrics, ponto de encontro de todos os interessados no assunto, leigos ou especialistas, durante os anos 2000. De lá saíram não só boas ideias, mas pessoas que eventualmente acabaram sendo contratadas por times da NBA para integrar os novíssimos departamentos de “analytics”. Quando voltarmos para falar dos anos 2010 iremos mergulhar de vez nos resultados da influência desses baixinhos de terno, calculadora e notebook no mundo do basquete profissional.