Para que a temporada da NBA seja retomada no dia 30 de julho em meio a uma pandemia ainda sem cura, a opção foi estabelecer uma “bolha”. Bolhas são, basicamente, fronteiras que separam completamente dois ambientes que nunca se tocam, a não ser que a bolha “estoure”. Realizar essa empreitada, entretanto, é uma tarefa hercúlea: envolve isolar uma área dentro do Walt Disney World, a ESPN Wide World of Sports Complex, seguir 113 páginas de regras de segurança e de saúde, realizar centenas de testes diários com jogadores e funcionários, controlar entrada e saída de todos os membros, e garantir serviços essenciais (e alguns nem tão essenciais assim) para todos os envolvidos. Por mais que o comissário da NBA, Adam Silver, insista que não se trata de fato de uma “bolha”, preferindo o termo “campus” (que remete à ideia de estruturas e serviços próximos uns aos outros, mas sem uma divisão com o resto do mundo), as imagens que temos dos jogadores já presentes no Walt Disney World remetem a uma outra realidade, a um mundo que para nós é hoje pura fantasia: são pessoas jogando ping-pong, golfe, pescando, cortando o cabelo, treinando basquete. Essas atividades, mesmo as banais, ainda são inviáveis em grande parte do mundo aqui fora, o que reforça o caráter de exceção dessa “bolha”. Se por um lado podemos dizer que os jogadores estão sendo expostos a uma situação desagradável, dada a necessidade de distanciamento de suas famílias e a obrigação de jogar em meio ao perigo e à adversidade da epidemia, por outro lado podemos ver a “bolha” como um lugar de privilégio: lá as interações sociais são possíveis, o risco de contaminação é muito pequeno e todas as necessidades são supridas sem que eles tenham que sequer se locomover.
É sob esse viés do privilégio que pode soar meio ofensivo ver jogadores como Rajon Rondo tirando sarro da qualidade dos quartos de hotel, vários jogadores reclamando da comida servida dentro desses hotéis e o caso bizarro de Richaun Holmes, que acabou saindo brevemente da bolha (e tendo que entrar novamente em quarentena) para buscar um delivery de uma comida que ele aparentemente NÃO PODIA DEIXAR DE COMER. A ideia de que os jogadores são mimados ou desconectados da realidade num momento em que a realidade passa por uma crise inédita (tanto na pandemia quanto nas manifestações sociais nos Estados Unidos) não soa nada bem para as intenções da NBA e dos pŕoprios jogadores, que querem mostrar que SE IMPORTAM e que a volta do basquete cumpre alguma função social.
Andre Iguodala, por exemplo, fez questão de tentar desmontar essa ideia dos jogadores como privilegiados ao afirmar que a maioria dos atletas da NBA vem de famílias pobres ou de classe média, e que todos já enfrentaram situações muito piores do que as atuais.
Iggy with a different perspective. pic.twitter.com/VagKZChcVy
— Bleacher Report (@BleacherReport) July 14, 2020
Steven Adams foi ainda mais longe ao rechaçar a ideia de que estar na bolha seria um “sacrifício”. Segundo ele, “isso não é a Síria, não é tão difícil, estamos vivendo num resort. Todo mundo tem suas preferências, suas reclamações, mas não é nada sério, é só uma comida seca aqui ou ali, ficar entediado de vez em quando, mas está tudo bem. Na verdade é até bem legal, porque é possível interagir com os jogadores dos outros times.”
Birthday boy Steven Adams, on life inside the Orlando bubble: "Let's be clear, mate. This is not Syria, mate. It's not that hard…We're living in a bloody resort." pic.twitter.com/THgZZOOIaO
— Luke Slabaugh (@LukeSlabaugh) July 20, 2020
Ninguém nega que estar na bolha da NBA tem suas dificuldades e exige algumas recusas — estar dentro de qualquer coisa exige imediatamente a recusa, mesmo que momentânea, do que está fora, e é perfeitamente compreensível que nem todos os jogadores queiram ou possam fazer essas recusas. Mas jogar, brincar, rir ou até trabalhar no meio de uma tragédia sempre corre o risco de parecer algo ALIENADO, insensível ou até mesmo irresponsável. Num momento em que a pandemia impede pessoas de pagarem aluguel e que o acesso aos testes não é universal, a NBA pagar fortunas em hotel e testes em massa pode parecer até mesmo imoral, especialmente se os jogadores estão reclamando porque a comida é meio seca.
O que temos diante de nós, portanto, é um dilema complicado que conversa com nosso conceito mais básico de esporte e do seu papel social. A NBA está prestes a estabelecer um mundo à parte, que jogará basquete enquanto todo o resto ainda pega fogo, o que remete à impressão comum de que o universo do esporte é avulso, independente do mundo normal, e que não deveria se abalar com questões sociais, políticas ou mesmo epidemias de escala mundial.
É por isso que o desafio da NBA, ao retomar a temporada, é duplo: por um lado, estabelecer a bolha para que o basquete possa acontecer; mas por outro, tentar nos convencer de que o esporte não é independente, de que eles não estão num mundo fantasioso com o Mickey Mouse, de que ainda estão inseridos na nossa realidade e de que o esporte é importante. Basicamente, a NBA terá que mostrar que pode jogar basquete ao mesmo tempo em que ela conversa, altera e se importa com o mundo aqui fora.
De alguma forma, todo esporte é uma espécie de bolha. As atividades físicas, os objetivos e as regras presentes nos esportes não existem em nenhum lugar fora deles. Na vida comum, quicar uma bola não faz nenhum sentido; lançá-la para dentro de um aro não tem nenhum efeito, não conquista coisa alguma. As coisas que fazemos e almejamos fazer nos esportes só fazem sentido nos esportes, um ambiente à parte em que combinamos socialmente que esses esforços completamente malucos são incríveis. Não é à toa que tentamos diminuir o tempo todo a importância e o efeito de algumas atividades dizendo “é só uma brincadeirinha”, “é só um jogo”, etc. O que queremos dizer com isso é que no mundo real nenhum dos objetivos dos jogos ou dos esportes faz sentido nem tem qualquer relevância.
É com base nisso que muita gente imagina um esporte completamente afastado da realidade — como se fosse mesmo uma fuga total do mundo. A pessoa está exausta do mundo real, esse lugar em que as coisas têm consequências, em que os erros causam danos, em que os problemas muitas vezes não tem solução e em que os objetivos da vida não são muito claros, e aí ela dá uma “escapadinha” rápida praticando ou assistindo esportes. Por um par de horas, essa pessoa pode levar o esporte super a sério e se importar com coisas que não tem nenhuma ligação com a sua vida habitual, sabendo que os erros e os acertos não vão ter consequências DE VERDADE, e mais preocupada em saber se uma bola entrou ou não num aro do que com os problemas reais do mundo. É a ideia do ESPORTE COMO ESCAPISMO. E existem momentos em que a gente precisa escapar mesmo: da dor, de uma crise, de uma situação social, de mais uma maldita live no Instagram ou até de nós mesmos.
Nesses momentos em que a gente quer escapar, toda vez que o esporte aponta para alguma coisa do “mundo real” a gente corre o risco de ser lembrado de algo que não queria lembrar. Pode ser uma propaganda na lateral da quadra que te lembra de pagar as contas, uma frase de um comentarista ou jogador que remete a algo que está acontecendo no mundo, ou até algum acontecimento específico do jogo — um arremesso de último segundo traumático, por exemplo — que aponta para alguma memória de outra vez que isso aconteceu, e que talvez associemos com situações pessoais desagradáveis. Para manter o plano do ESCAPISMO TOTAL, portanto, a “bolha” tem que ser perfeita: nada sai do esporte que não seja esporte, nada entra no esporte que não seja esporte. Só assim seria possível esquecer de TODO O RESTO e ter aquele respiro que tanto se deseja. Mas para os defensores desse respiro completo aí, trago más notícias: não funciona. Não tem como.
O problema dessa ideia da “bolha perfeita” é que bolhas, por definição, indicam que há um espaço dentro e um espaço fora. Isso significa que é impossível a gente se fascinar com o que está dentro, com como é especial e mágico e lindo tudo que está ali, sem lembrar TAMBÉM que existe um lado de fora. A gente só se encanta porque consegue fazer uma COMPARAÇÃO. Parece confuso, mas o cara que assiste basquete para esquecer da sua vida difícil só encontra prazer no basquete quando ele COMPARA o basquete com a sua vida difícil — ou seja, quando ele se lembra que a vida tá uma droga. Sei que é bizarro, mas pra esquecer de uma coisa momentaneamente e se distrair com outra, a gente meio que precisa lembrar do que quer esquecer. Todo esporte só é legal porque SUA VIDA NORMAL NÃO É ASSIM, é praticamente um valor por oposição. Se a gente passasse o tempo todo arremessando bolas em aros, o basquete ia ser totalmente banal e a gente ia adorar o incrível esporte olímpico de sentar num escritório, preencher tabelas e bater carimbo.
Mesmo quando a gente tá super entretido com um jogo de basquete, se empolga, sofre, vibra, chora, a gente sabe perfeitamente que aquilo é um jogo — o que significa necessariamente que a gente lembra que existe um mundo fora dele, em que nada daquilo acontece, e é por isso que a gente fica empolgado e agradecido com a existência dessa invenção em que essas coisas tão incríveis podem acontecer. Isso significa, na prática, que o esporte NUNCA consegue ser totalmente alienado. A gente está, querendo ou não, sabendo ou não, sempre comparando ele com o resto da vida — e dessa comparação surgem muitas perguntas interessantes. Basta pensar na NBA dos anos 50 e 60, em que atletas brancos e negros conviviam dentro das quadras e passaram a se perguntar os motivos dessa convivência não ser possível fora, por exemplo. A gente vê coisas tão interessantes no esporte — justiça, objetivo, coletividade, individualidade, superação, conquista, progresso, etc — que começa a dar aquela curiosidade de saber onde estão essas coisas no nosso mundo aqui fora. O esporte não é um mundo à parte, alienado; ele é um mundo POSSÍVEL, um dos muitos mundos que a gente criou e inventou, e que só pode existir porque a gente quis que fosse assim. O que faz a gente se perguntar: o que mais a gente pode querer?
O esporte não tem, de largada, uma função. A gente não criou o basquete pra ficar saudável e saradão. A gente basicamente inventou e joga basquete por motivos de É LEGAL. Mas depois que o basquete está inventando, ele passa a significar coisas e ter impactos: ele mostra coisas que a gente não conhecia antes, possibilidades que a gente nem tinha imaginado. Ele cria vínculos e propósitos: a gente descobre que dá pra se unir aos outros em volta desse interesse em comum, aprende que dá pra se dedicar a uma coisa e ficar encontrando sempre novas coisas fascinantes nela.
Voltar a ver basquete num momento como o nosso tem alguma função escapista, claro; é um jeito de usar o nosso tempo sem estar debruçado em notícias medonhas em todos os lugares. Mas existe muito, muito mais que não tem nada de escapismo: o basquete nos relembra que as invenções humanas continuam mesmo durante as adversidades, que as nossas criações resistem aos piores momentos, e que a gente pode se dedicar às possibilidades inventadas não importa o que esteja acontecendo ao nosso redor. Não é escapar da realidade, pelo contrário; é muitas vezes perceber que a música, a poesia, a dança, o esporte, as brincadeiras, os laços afetivos e nossa capacidade de inventar e se dedicar são MUITO MAIS REAIS do que os horrores que chovem em nossas cabeças. É por isso que os esportes são praticados em meio às guerras, em meio à pobreza, ou nos campos de refugiados: é um jeito de relembrar que existem coisas que sobrevivem, que mesmo nas mais duras realidades a gente ainda pode inventar um conjunto de possibilidades em que é possível ser feliz, apaixonado, engajado, vitorioso. E se a gente consegue manter essa IMAGINAÇÃO viva juntos, e comparar essa imaginação com as durezas do mundo ao nosso redor, a gente sempre vai ver novas possibilidades para como as coisas PODEM SER.
Para que a “bolha” não seja uma situação que exclui os jogadores do que está acontecendo socialmente no mundo — especialmente porque vários jogadores estavam participando ativamente dos protestos por igualdade racial nos Estados Unidos — a NBA permitiu que jogadores colocassem frases políticas em suas camisetas e a própria quadra trará os dizeres “Vidas Negras Importam”. Isso mostra que os jogadores e a NBA estão vendo o que se passa no mundo, e que entendem que é impossível ficar calado diante dessas questões. Mas o retorno da NBA nos diz muito mais do que essas frases: fala sobre esperança, resiliência e sobre a possibilidade de imaginar um mundo de igualdade, propósito e cooperação independentemente das adversidades. Nos lembra que há algo maior na humanidade do que a tristeza, o racismo, a segregação e nossa incapacidade momentânea de protegermos uns aos outros num momento de crise sistêmica.
Vejo um pouco o retorno da NBA como foi a chegada do Homem à Lua: custou uma fortuna, deu um trabalho absurdo e parecia um objetivo completamente ridículo num momento de comoção social. Mas depois que dá certo, a gente pode olhar pra Lua e se encantar com a capacidade humana, com a imaginação humana, com essas coisas que são passos pequenos para um homem mas passos gigantescos para a Humanidade. Tommy Sheppard, General Manager do Wizards, um time que não tem QUALQUER CHANCE na volta da NBA e vai participar mesmo assim, afirmou que o retorno da NBA era “uma oportunidade única de observar a condição humana”. Se essa volta funcionar, vai ser uma vitória da imaginação, e vai ser maior do que eu, você, o Wizards, o LeBron ou o time campeão. Vai ser um lembrete de que parte da condição humana é imaginar e resistir, e de que existem coisas que continuam mesmo quando parece que tudo vai implodir.