🔒A queda do Warriors

Que manter um time campeão intacto por muitos anos na NBA é difícil, todo mundo sabe. O que não faltam são histórias sobre as dificuldades de manter os times motivados, os problemas para manter a forma, a pressão, o declínio físico, as brigas que surgem nos vestiários, os duelos de ego comuns a times que vencem demais. Esses fatores psicológicos ou físicos de equipes campeãs acabam ofuscando, no entanto, o principal motivo para que vejamos raríssimos casos de times dominando títulos por muitos anos: as regras salariais da NBA. Ao contrário do que muitos imaginam, as regras financeiras da NBA não são apenas um teste para ver qual equipe consegue se organizar melhor rumo ao título; elas são também ferramentas para IMPEDIR que as equipes que chegaram ao topo se mantenham lá por muito tempo. Pela igualdade de oportunidades e pela saúde da liga, não somente os piores colocados possuem mais chances de receber um talento no draft como também as melhores equipes passam a ter dificuldade de manter seus talentos. Eventualmente, frente às dificuldades, toda grande equipe cai.

A ideia da NBA é simples: todos os times possuem um limite, um teto, de gastos salariais com os jogadores. Isso por si só significa que jogadores campeões começam a ser cobiçados por outras equipes, aumentam seu valor no mercado e, portanto, as equipes em que foram campeões precisam desembolsar mais dinheiro para mantê-los, até o limite do teto salarial. A rigidez do teto, entretanto, prejudica mais os times medíocres do que os campeões, já que muitas vezes um time ruim pode ser incapaz de “segurar” um dos seus talentos, cobiçado por outras equipes, sem ultrapassar esse limite – e no caso de um time ruim, o jogador costuma desejar sair, sem fazer maiores concessões. Para lidar com isso, a NBA adotou o modelo de “soft cap”, o famoso TETO MACIO. Se for para manter um jogador que você JÁ POSSUI, o limite de gastos pode ser extrapolado, mas se ele extrapolar DEMAIS o time passa a ser obrigado a pagar taxas progressivas. É por isso que a NBA tem dois números importantes com relação aos salários: o teto salarial indica o máximo que um time pode gastar de dinheiro com contratações (o “cap”, em inglês), enquanto o teto taxável indica um máximo que o time pode gastar, acima do limite anterior, para manter seus jogadores (o “luxury tax”, a taxa de luxo). Acima disso tudo, o LEÃO corre solto cobrando taxas enormes de modo a desencorajar as equipes.

Na temporada atual, a 2019-20, por exemplo, o teto salarial está em 109 milhões de dólares, mas as equipes podem gastar 23 milhões a mais (chegando a 132 milhões) para segurar jogadores que já estejam no elenco. Quem gastar mais do que isso paga multas: ultrapassou em 5 milhões, paga 1,75 em multas para cada dólar gasto acima do limite; ultrapassou em 10 milhões, paga 2,50 para cada dólar gasto; ultrapassou em 15 milhões, são 3,25 para cada dólar gasto, e assim sucessivamente. A partir de 2014 a situação ficou ainda mais dura para quem passa o limite: equipes que pagarem taxas em 3 dos últimos 4 anos pagam um dólar A MAIS de multa adicional para cada dólar gasto. Na prática a intenção é tornar financeiramente inviável pagar salários máximos para todos os jogadores que um time quiser manter por já tê-los no elenco porque os preços seriam exorbitantes.

Com isso em mente, vale a pena analisarmos a situação do Golden State Warriors dos últimos anos, como eles contornaram essas questões salariais, por que demorou tanto tempo para eles sofrerem os efeitos dessa política da NBA, e como foi que eles enfim tombaram nessa temporada.


Quando essa geração do Warriors foi campeã pela primeira vez na temporada 2014-15, a situação era COMPLETAMENTE diferente daquela que costumamos ver em equipes vencedoras. Na época o teto era de 63 milhões e a “luxury tax” era de 77, com o Warriors gastando “apenas” 73 milhões – era apenas a décima quarta maior folha salarial da NBA, e a maior parte da grana ia para jogadores de menor impacto na campanha da equipe, como David Lee, Andrew Bogut e Andre Iguodala. Isso aconteceu porque Draymond Green ganhava menos de 1 milhão (o salário mínimo de um jogador escolhido na segunda rodada do draft), Klay Thompson e Harrison Barnes ganhavam 3 milhões cada (o salário pré-definido de jogadores escolhidos na primeira rodada do draft) e Stephen Curry, já com um contrato novo (ou seja, já tendo assinado um contrato assim que o seu de novato se encerrou) ganhava módicos 10 milhões de dólares, já que na época em que negociou o valor vinha de lesões frequentes no tornozelo e ainda havia dúvidas sobre seu valor. Ou seja, o salário de Curry era completamente incompatível com seu prêmio de MVP e o de Klay Thompson incompatível com sua vaga no All-Star Game – e isso sem falar de Green e Barnes, com contribuições centrais e salários mínimos. Em geral, equipes montadas para vencer títulos já pagam para seus jogadores salários de estrelas, mas o Warriors chegou no topo cedo demais, antes que seus jogadores estivessem plenamente estabelecidos e recendo salários equivalentes às suas produções em quadra.

Pra temporada seguinte, aquela da campanha histórica de 73 vitórias e o vice-campeonato, foi necessário renovar os contratos de Klay Thompson e Draymond Green, que saíram por 15 e 14 milhões, respectivamente. Curry passou a ter um salário muito menor do que os colegas, ainda ganhando muito menos do que deveria, e ainda assim a folha salarial do Warriors saltou para a quarta maior da NBA: com um teto em 70 milhões e a “luxury tax” em 85 milhões, o Warriors passou a gastar 93 – oficialmente acima do limite e tendo que desembolsar fortunas para pagar todas as multas.

Na temporada posterior, a 2016-17, o Warriors quis compensar o vice-campeonato com o acréscimo de outra estrela, e aí teve que cortar os gastos. Trocou Andrew Bogut por absolutamente nada, deixou os contratos dos veteranos terminarem, e sentiu na pele o que acontece com equipes campeãs: até os jogadores mais secundários de uma campanha vencedora passam a ser cobiçados por outras equipes e fica inviável mantê-los se você quer segurar os grandes nomes. Harrison Barnes, que era um coadjuvante importante para o Warriors, foi para o Mavs ganhar obscenos 23 milhões de dólares – como comparação, o Warriors assinou com Kevin Durant por 26, uma diferença bem pequena. Além dele, Festus Ezeli, um pivô com contribuição moderada de 7 pontos e 5 rebotes, foi ganhar 7 milhões no Blazers, e até Leandrinho, importante vindo do banco na pós-temporada, recebeu uma oferta nada-a-ver de 4 milhões no Suns – se você somasse os contratos de Ezeli e Leandrinho oferecidos por essas outras equipes, aliás, chegaria ao valor que Stephen Curry ganhava no Warriors naquela temporada. Abrindo mão desses jogadores, o Warriors conseguiu adicionar Durant e ainda assim pagar apenas 101 milhões de dólares em salários – abaixo dos 94 milhões do teto e dos 113 da “luxury tax”, dando um respiro financeiro para a equipe. Mas isso significa – e muita gente não percebe ou não dá o devido valor – que o Warriors precisou apostar nuns carinhas ZÉ NINGUÉM pra tapar os buracos no elenco: gente como um desacreditado e ostracisado JaVale McGee e os pirralhos Kevon Looney, Damian Jones, Ian Clark e Patrick McCaw. Na época, muita gente achava que não seria o bastante para aguentar 5 minutos sem as estrelas, mas todos se tornaram reservas – e eventualmente titulares – importantes na campanha que conquistou o título daquela temporada.

Acontece que na temporada seguinte, a 2017-18, chegou a hora do Warriors renovar o contrato de Stephen Curry e, claro, lhe pagar finalmente um salário compatível com um MVP. O novo valor foi de 34 milhões de dólares, somados aos 25 de Kevin Durant, os 18 de Klay Thompson, os 16 de Draymond Green e os 15 de Iguodala, reserva que o Warriors não queria abrir mão. Segurar Curry criou uma bola de neve: não apenas catapultou a equipe muito acima do limite (foram 137 milhões gastos com salário, a segunda maior folha salarial da liga, quando o teto era 99 e a “luxury tax” era 119) como também tornou os contratos de Klay Thompson e Draymond Green muito defasados, algo que teria que ser abordado na próxima renovação de ambos. Os gastos, ao menos, permitiram que o time fosse campeão. Na temporada passada, a 2019-20, a situação salarial se manteve, novamente com a segunda maior folha salarial: 37 milhões para Curry, 30 para Durant, 19 para Klay Thompson, 17 para Draymond Green, 146 milhões em gastos salariais e um teto de 102 com “luxury tax” de 124.  Além de amargar um vice-campeonato, o Warriors também ultrapassou a “luxury tax” pela terceira vez em 4 anos, tendo que pagar o dólar adicional às multas. Financeiramente o time atingiu seu limite – e isso sem lidar com a renovação de Klay Thompson e Draymond Green, e já sofrendo com seu pior banco de reservas em muito tempo. Segurar todo mundo seria muito difícil.

Mas agora vem a parte bizarra da coisa: se Kevin Durant simplesmente fosse embora, levando consigo seus 30 milhões de dólares, o time não poderia simplesmente contratar outro jogador, talvez um pouco mais barato, para facilitar a situação. Na temporada atual, o teto está em 109 milhões, com a “luxury tax” em 132. Sem Durant, o Warriors ficaria abaixo da “luxury tax”, evitando as multas terríveis, mas ainda assim acima do teto salarial – e quem está acima do teto não pode gastar com novas contratações, só pode gastar acima disso para manter os jogadores que já tem. Foi por isso que o Warriors usou a possibilidade de ultrapassar o teto para manter Durant e aí trocá-lo para o Nets, recebendo D’Angelo Russell e seu salário ligeiramente menor, 27 milhões. Mas como também era necessário renovar Klay Thompson (que foi para 33 milhões de salário nessa temporada), mais uma vez o Warriors teve que abrir mão do elenco de apoio que já era escasso: Iguodala teve que ser trocado por ganhar 17 milhões, Quin Cook foi ganhar 3 milhões no Lakers e até o Jordan Bell eles perderam para o Wolves. No fim das contas, o Warriors começou essa temporada gastando 139 milhões – outra vez acima da “luxury tax”, outra vez pagando o dólar adicional – e mesmo assim seríamos totalmente incapazes de reconhecer o elenco de apoio se eles estivessem comprando pão na padaria. É muita gente desconhecida recebendo salário mínimo ou de novato, e mesmo assim fica difícil ficar abaixo do limite das multas. Em dois anos, o time sequer vai ser capaz de segurar Kevon Looney – se teve gente correndo atrás de Festus Ezeli, JaVale McGee e até do Leandrinho no final do final do final da carreira, só pra trazer alguém com a “aura” do Warriors, e se teve doidinho dando contrato máximo para Harrison Barnes porque jogar no Warriors faz todo mundo parecer melhor do que é, então começa a ficar difícil manter qualquer jogador que você desenvolva minimamente bem no seu elenco sem desembolsar uma grana desproporcional.

A situação do Warriors piora ainda mais na temporada que vem, a 2020-21, quando começa a valer o novo contrato do Draymond Green, que vai saltar de 18 para 22 – e isso porque o jogador topou uma extensão NA CAMARADAGEM. Se ele esperasse o contrato terminar antes de negociar, outras regras salariais entrariam em vigor e ele poderia ter pedido 35 milhões por ano, um total de 50 milhões de dólares de diferença ao longo dos 4 anos de contrato. Foi tudo para tentar manter o Warriors vivo e competitivo por mais uns anos, sem implodir financeiramente de maneira irremediável.

O único motivo pelo qual o Warriors conseguiu segurar tantos jogadores bons por tanto tempo foi que eles foram desenvolvidos DENTRO do Warriors, não fora. Ou seja, vieram do draft ou ganhavam salários mínimos, foram campeões cedo enquanto ninguém ainda recebia toda a grana que poderia, e por já estarem na equipe o Warriors teve a possibilidade de estourar os limites salariais para mantê-los – contratá-los todos de outras equipes, já estabelecidos como estrelas, seria simplesmente impossível. Além disso, o ambiente de respeito do Warriors com seus jogadores criou um clima de BRODERAGEM suficiente para os jogadores facilitarem as transações: a renovação de Draymond Green abrindo mão de dezenas de milhões de dólares é o exemplo maior, mas Kevin Durant topando o sign-and-trade (ser assinado e trocado para o lugar de sua escolha) também. É claro que Durant ganha algo com isso – no caso, um salário maior – mas ele poderia ter feito tudo por sua própria conta e privado o Warriors de conseguir um jogador como D’Angelo Russell. Não que Russell seja um gênio, até porque nesse ponto sequer podemos cravar qual o impacto ou a função que ele terá nessa equipe, mas se Russell não viesse – ou fosse embora – o engessamento salarial do Warriors não permitiria colocar absolutamente ninguém no lugar.

Para a temporada que vem, a estimativa é de um teto de 116 milhões com “luxury tax” de 141 milhões. Só a junção dos salários de Curry, Klay, Green e Russell daria 129, acima do teto e impossibilitando quaisquer contratações. Sem Russell (e sem nenhum outro jogador no elenco), seria até possível contratar alguém novo – desde que ganhasse um pouco menos da metade do que Russell receberá ano que vem. A isso chamamos de “time engessado”: mesmo em caso de insatisfação com alguma peça, é melhor mantê-la do que ter que contratar alguém ainda pior. É claro que o Warriors está satisfeito com suas outras peças centrais, mas terá que encontrar uma maneira de extrair o melhor de Russell e do elenco de apoio cheirando a fralda de bebê – gente como Marquese Chriss, Eric Paschall e Jordan Poole precisam se tornar peças importantes do elenco de apoio. E, caso se tornem peças importantes DEMAIS, os outros times estarão babando para adicioná-los por preços fora da realidade, e o Warriors terá que começar de novo sua busca por peças baratas em contratos mínimos.

O problema não acomete só o Warriors, claro, e já ocorreu com muitos campeões e “dinastias” ao longo dos anos. Mas uma das melhores maneiras de contornar as dificuldades de se tornar um time cobiçado e salarialmente engessado é encontrar veteranos muito bons que topem jogar ganhando salários mínimos só porque lá terão chances de serem campeões – já aconteceu com o Bulls de Jordan, com o Celtics de Paul Pierce, com o Heat de LeBron e até com esse Warriors, que recebeu de Leandrinho a DeMarcus Cousins ao longo dos anos. Na NBA atual, no entanto, é difícil imaginar essa tática funcionando tão bem para o Warriors: o cenário é tão aberto que os veteranos podem considerar muitas franquias diferentes para se jogar, não há uma decisão óbvia e, atolado em lesões e com novatos desconhecidos que parecem desfuncionais em quadra (especialmente na defesa) o Warriors não é mais um cenário muito convidativo aos veteranos-de-aluguel. Eventualmente as finanças, as contas e o próprio cenário da NBA derrubam as dinastias para que surjam outras, e o Warriors terá que fazer muitos malabarismos para contrariar essa dinâmica. O primeiro passo, claro, é jogar momentaneamente a toalha: para um time precisando de jogadores baratos com algum potencial, o draft é a saída mais óbvia, mais imediata e mais confiável, especialmente para uma equipe com um histórico tão feliz na escolha de jovens jogadores nos últimos anos. A dinastia ainda pode se esticar um pouco se as bolinhas forem sorteadas de maneira favorável, mas tudo o resto – inclusive as regras da NBA – lutarão contra. Para quem dominou por muito tempo, é sempre difícil ficar.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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