Quando a temporada 2019-20 começou, a impressão era de que a NBA, de alguma maneira, estava “começando de novo”. Isso não significa que a NBA estava rompendo com sua história, buscando uma nova identidade ou executando um plano de reconstrução, apenas que muitos times acabaram mudando muito rápido, causando uma sensação de que as conclusões anteriores sobre a liga deixaram de ser válidas. Momentos assim são excelentes portas de entrada para novos fãs, porque os conhecimentos anteriores precisam ser repensados e torcedores novos e antigos acabam indo parar em patamares semelhantes, basicamente tendo que aprender muitas coisas do zero.
É claro que a NBA ainda é a mesma, que as regras ainda são as mesmas, e que a capacidade de análise e de compreensão conquistadas por um fã veterano continua em vigor. No entanto, os novos torcedores estão preocupados com questões mais básicas: quem são os principais times, os principais atletas, os time favoritos ao título e a maneira de jogar de cada um deles. Nesse sentido, a NBA foi de certa forma “resetada”: o título do Toronto Raptors pegou a maior parte dos analistas veteranos de surpresa enquanto o eixo mais sólido da liga – a dominância do Golden State Warriors – finalmente terminou sob o peso de contratos caros demais, lesões e a saída de Kevin Durant. Sem favoritos óbvios, o talento começou a se dispersar pela NBA rumo a times antes marginalizados, como o Brooklyn Nets, o amaldiçoado Los Angeles Clippers e até mesmo o Los Angeles Lakers, depois de anos de péssimos resultados e planejamento desastroso. Começamos a temporada 2019-20 sem sermos capazes de estabelecer favoritos evidentes ao título, sem imaginar como seria a classificação em ambas as Conferências e sem imaginar como vários times, drasticamente remodelados, renderiam em quadra. Sequer conseguíamos apontar se alguns times estavam em reconstrução completa ou brigando pelos Playoffs. A temporada de incerteza trouxe novos ânimos para quem achava que a liga estava monótona ou previsível e igualou o campo de ignorância para que novos torcedores pudessem descobrir, junto com os mais experientes, a nova configuração da liga. Inúmeras vezes reafirmamos como essa era a temporada “mais aberta” que acompanhamos, marco simbólico de um novo momento para a NBA. O problema com esses marcos, entretanto, é que nos apaixonamos por eles e muitas vezes queremos que as coisas se ADEQUEM a eles ao invés do contrário. Queríamos que essa temporada fosse um início imediato de um novo tempo, só faltou combinar com as lesões, a China, as tragédias e, bem, uma certa pandemia.
Quando a temporada começou, a liga estava tomada por perguntas ao invés de respostas. Foi isso que tornou a temporada fresca, nova, emocionante. No entanto, uma série de respostas nunca vieram – e sequer podiam vir, na verdade. Com Stephen Curry e Klay Thompson lesionados, nunca conseguimos ver o “novo Golden State Warriors”, com seu ginásio novo, novo elenco e supostamente a mesma sede por títulos; com Kevin Durant fora por toda a temporada e Kyrie Irving fora por uma enormidade de jogos, não conseguimos ver o resultado das estrelas mais cobiçadas da temporada terem adotado o Brooklyn Nets; com a lesão de Zion Williamson, demoramos uma eternidade até ver o novo New Orleans Pelicans; com Kawhi Leonard e Paul George alternando descansos e lesões, nunca conseguimos ver de fato o que é o Los Angeles Clippers PRA VALER, mais imaginando o time em nossas mentes do que analisando suas partidas; com o desastre das contratações do New York Knicks, o time contratou um pessoal ALEATÓRIO só para tapar buraco até a temporada que vem. E enquanto a temporada acontecia, ao invés de respostas fomos coletando mais perguntas: o Warriors, por exemplo, se tornou ainda mais incompreensível depois das trocas que trouxeram Andrew Wiggins, que por sua vez tornaram o Wolves também uma nova incógnita – cujas respostas foram atrapalhadas pela lesão de Karl Anthony-Towns e o começo medíocre da equipe. O Clippers, que já era um time difícil de julgar dada à inconsistência da rotação, adicionou ainda mais peças que não conseguimos analisar como funcionam juntas. Mesmo times ainda em formação deram passos drásticos, como o Atlanta Hawks com a troca por Clint Capela, que não pudemos analisar porque a lesão do pivô ainda não lhe permitiu entrar em quadra.
A temporada, já recheada de incógnitas, recebeu ainda uma dose extra de polêmicas, tragédias e incertezas que aprofundaram a bagunça. A crise com a China, causada pelo apoio de Daryl Morey a Hong Kong que causou um escândalo político, acabou interrompendo contratos de patrocínio e de transmissão que impactarão o teto salarial da NBA na temporada que vem de uma maneira que analistas ainda não são capazes de prever. A pandemia de coronavírus, que levou a NBA a suspender nessa semana a temporada por um período mínimo de 30 dias, apenas extrapolou, em níveis épicos, o que já era uma situação difícil: estima-se uma perda de 500 milhões de dólares apenas em ingressos para os jogos suspensos, sem contar todo o impacto nos patrocínios e nos acordos com os canais de televisão. O teto salarial da NBA pode mudar drasticamente na próxima temporada porque o limite de gastos dos times depende do montante de dinheiro arrecadado na temporada anterior – montante que vinha em ascensão, de modo que as equipes estavam se planejando para aumentar seus gastos, não diminuí-los. Trata-se, portanto, de uma incógnita econômica naquilo que já era uma temporada cheia de incógnitas técnicas, táticas e de desempenho. Aquele começo que nos foi prometido com o desmantelamento do Warriors e o título do Raptors acabou se mostrando apenas um grande suspiro, um intervalo, que antecede o recomeço real que veremos nos próximos anos.
De certo modo, a tragédia que levou Kobe Bryant conversa bastante com essa situação. Quando nossos ídolos morrem, podemos marcar simbolicamente um momento de mudança, de recomeço: as grandes estrelas do passado se vão enquanto as novas estão chegando. Mas queremos, claro, esses ídolos vivos e saudáveis nas cadeiras grudadas à quadra pelo máximo de tempo possível, acompanhando de perto o desenrolar da história e esses momentos de transição. Kobe, no entanto, foi cedo demais: não viu a transição. Deixou em quadra jogadores que chegaram a enfrentá-lo, que ainda o usavam de modelo, que eram seus parceiros de treino ou de vida. Nos puxou a todos, via fórceps, para um mundo sem ele, em que outros ídolos precisam assumir a liga sobre os ombros antes que todos nós estivéssemos preparados. No fundo, essa temporada seguiu o mesmo rumo: o começo veio súbito demais, antes que os times estivessem prontos de verdade.
Gostamos de estabelecer a história através de marcos, de datas, de símbolos que nos permitam organizar as coisas. A NBA era uma coisa antes e depois de Kobe; antes e depois de LeBron James; antes e depois do Warriors. Usamos esses marcos na vida o tempo todo: somos “adultos” aos 18 anos, maduros quando temos um filho, mudamos de vida quando sofremos um acidente, fazemos dieta depois do ano novo. São recortes que nos ajudam a organizar o mundo e a nós mesmos, que nos permitem entender, explicar e controlar. No entanto, esses marcos são apenas isso, SÍMBOLOS. Funcionam como facilitadores de processos que já haviam começado muito, muito antes. Vários historiadores questionam as distinções entre Idade Média e Renascimento, por exemplo, sob o pretexto de que a História não faz cortes, não tem soluços, não muda de repente por conta de um único acontecimento ou simplesmente porque um ano virou. Essas “divisões” são apenas para fins de organização e estudo, não são necessariamente eventos no mundo.
Da mesma maneira que ninguém estava pronto para perder Kobe, ou para o coronavírus, a NBA não estava pronta – com todas as respostas dadas, os times estabelecidos, as estrelas engrenadas e saudáveis e no auge – quando a tal dinastia do Warriors acabou. O que temos é um processo, uma história mais longa, em que essa temporada não é exatamente um começo, nem exatamente um fim: as perguntas estão se apresentando, se consolidando, e algumas respostas estão ameaçando surgir em tempo real, diante dos nossos olhos, com engasgos, demissões de técnico, gente de terno no banco de reservas, confusões, polêmicas e até uma suspensão inteira de temporada – que deixará várias das nossas perguntas ainda mais tempo no ar.
Como em qualquer momento da NBA, existem times que tem pressa – LeBron está sempre em sua fascinante e poética luta contra o tempo, tentando coletar títulos enquanto seu corpo resiste às regras da vida; o próprio Clippers, uma das grandes incógnitas da temporada, não pode se dar ao luxo de demorar demais para encontrar respostas porque tem contratos curtos e já comprometeu seu futuro com a promessa de vencer em breve. Mas ao redor desses times, a maior parte das equipes está tateando no escuro pacientemente enquanto tenta encontrar a chave da porta. Alguns casos envolvem uma dose de decisão e outra de espera, como o Houston Rockets que resolveu, no meio da temporada, que não terá mais um pivô, ciente de que as consequências disso só serão inteiramente compreensíveis no futuro. Outros casos, no entanto, envolvem apenas espera: Hawks aguardando Capela voltar, Nets esperando Durant e Irving, Pistons precisando saber o futuro de Blake Griffin, Warriors com Curry e Klay Thompson (e agora uma futura escolha de draft, que a gente nem sabe quem será já que o basquete universitário está cancelado nos Estados Unidos graças ao coronavírus), Wolves que ainda não conseguiu unir Karl Anthony-Towns e D’Angello Russell, Sixers com mil dúvidas enquanto Ben Simmons sofre com uma lesão nas costas, Kings que mesmo em boa fase não tem Marvin Bagley com uma torção séria de tornozelo, Spurs que não sabe se luta ou reconstrói enquanto perdeu Dejounte Murray para a fase final da temporada e até o Wizards que depende do retorno de John Wall e seu tendão de Aquiles rompido para poder decidir os próximos passos. É gente demais em espera, times demais sem saber quais são suas reais chances, e isso ANTES MESMO de todos sermos arremessados nessa ESPERA ABSOLUTA causada pela suspensão da temporada inteira.
Apesar do marco de “recomeço” que atraiu tantos novos fãs para a NBA, grande parte da liga mergulhou em dúvidas tão profundas que acabou simplesmente escolhendo esperar – justamente numa temporada em que, a partir de agora, estaremos todos em espera, sem sequer saber se os jogos continuarão ou se teremos uma temporada encurtada. Foi um banho de água fria para quem chegou agora, um tapa da realidade em nossos marcos históricos, e mais uma longa espera em times que já sofriam com ter que esperar demais.
Ainda assim, há uma história que acontece na espera – afinal, se a história não se importa nem um pouco com nossos marcos históricos, por que se importaria com nossas pausas forçadas? Cada dia sem a NBA aproxima mais alguns desses jogadores de voltar às quadras (John Wall, contra tudo e contra todos, já participou de treinos de 5 contra 5, por exemplo), aumenta a tensão dessas perguntas e nos faz especular mais sobre o futuro desses times que definirão os rumos da NBA pela próxima década. A temporada que pausou não é de fato um intervalo, mas um preâmbulo, uma introdução que levanta as perguntas e cria TENSÕES ao ponto da ebulição, apenas para que a resposta delas seja ainda mais catártica e satisfatória quando esses eventos se desenrolarem daqui um mês, ou dois, ou uma temporada inteira no futuro.
Nem sempre o novo começa imediatamente; às vezes ele chega cedo demais, num momento de adversidade e de tensão e de tragédia, e é preciso respirar fundo e pautar todas as questões e indícios que se resolverão a partir dali. A temporada pausada está apenas CRIANDO SUSPENSE, acomodando os novos fãs num terreno em que há tempo de se perguntar o que é que pode ou não pode acontecer com cada time. Nesse momento, nenhum de nós sabe. Mas aquilo que acontecer em 5 anos terá começado agora, com uma simples espera e gente de terno no banco de reservas e uma pandemia impensável. Às vezes, começos não são glamourosos, são só confusos mesmo, recheados de dúvidas, dor e bagunça. Ainda assim, é bom existir neles: o futuro faz sempre mais sentido quando estávamos lá para acompanhar seu processo de nascimento.