A volta dos pontos no garrafão

Desde o surgimento da linha de três pontos na temporada 1980-81, o número de bolas de três pontos convertidas por jogo não para de crescer. Com a revolução estatística, que se consolidou com o título de campeão para o Golden State Warriors na temporada 2014-15, mais e mais times perceberam a vantagem matemática de arremessar tantas bolas de três pontos quanto forem possíveis. A temporada atual tem tudo para estabelecer o novo recorde de bolas tentadas e convertidas no perímetro, e o teto para esse crescimento parece ainda distante, com as equipes encontrando novas maneiras de bater esse recorde ano após ano. Para muitos críticos as bolas de três pontos são um estilo de jogo inescapável, o único atualmente viável para qualquer equipe que tenha pretensões de título. No entanto, a revolução estatística que tornou essa profusão de arremessos possível é também a chave para uma OPOSIÇÃO a esse estilo de jogo – e essa oposição já está acontecendo, ano após ano, sem que muitos de nós a tenham percebido.

Arremessar bolas de três pontos é importante no basquete atual não apenas porque o arremesso vale mais, mas principalmente por conta do aproveitamento desses arremessos. Bolas de meia distância tendem a ser contestadas, sofrer forte marcação, e ainda valem míseros dois pontos; bolas do perímetro tendem a ter menor oposição por conta do espaçamento da quadra, que afasta os defensores uns dos outros. Mas a chave da conversa aqui é a “eficiência”, ou seja, em que situações você consegue o melhor aproveitamento possível para gerar a maior quantidade possível de pontos. Se os arremessos de meia distância foram praticamente BANIDOS do basquete, com poucos times se arriscando a tentá-los com alguma frequência, isso não significa que todos os arremessos de dois pontos foram malignizados: bandejas, enterradas e arremessos ao redor do aro ainda mantém altíssimo aproveitamento e, portanto, devem ser valorizadas. O próprio Houston Rockets, o time que tentou mais bolas de três pontos do que bolas de dois na temporada passada, mantém uma filosofia de “bolas de três, bandejas e lances livres”, ou seja, os três arremessos mais simples de se converter no basquete.

Vários times tem levado isso em mente e por isso, ao mesmo tempo em que crescem os pontos vindos de arremessos de longa distância, crescem também os pontos marcados DENTRO DO GARRAFÃO. Durante décadas esses pontos eram associados a pivôs e jogadores que trabalhavam de costas para a cesta, de modo que a migração de muitos pivôs para o perímetro – onde podem ajudar a criar mais espaço nas quadras – supostamente deveria ter diminuído a frequência dos pontos próximos ao aro. No entanto, não é isso que mostram os números; desde que o Warriors foi campeão em 2015, os pontos no garrafão só crescem na NBA. Vale notar que, ao contrário da pontuação geral que tem sido inflada por conta das bolas de três (que valem mais e estão sendo mais tentadas) e dos lances livres (aumentados através das novas políticas de arbitragem da NBA), o aumento nos pontos de garrafão indica apenas que os times estão se focando mais em arremessos próximos ao aro – e que as bolas de três pontos, como discutiremos depois, ajudam a gerar o seu “oposto”.

Para mostrar essa tendência, separei alguns números a partir da temporada 2014-15, em que o “discurso estatístico” se consolidou. Na época, os times marcavam em média 42 pontos no garrafão por partida, com 22% de todos os arremessos sendo bandejas. O Memphis Grizzlies, líder em pontos no garrafão em 2014-15, marcava 46.6 pontos por jogo na área pintada.

A temporada seguinte, 2015-16, já mostra um aumento: os times tiveram uma média de 42.6 pontos no garrafão por jogo, com 25% de todos os arremessos vindo de bandejas. O líder nesse quesito, o Milwaukee Bucks, fazia 50.5 pontos no garrafão por partida. Na temporada 2016-17 tivemos uma pequena queda na tendência: 42.1 pontos no garrafão por jogo, com os mesmos 25% do total de arremessos sendo bandejas. Mas na temporada seguinte já retomamos o crescimento em ritmo ainda mais acelerado: 43.5 pontos no garrafão por jogo, 27% dos arremessos vindo de bandejas e três equipes acima dos 50 pontos no garrafão por partida, Pelicans com 52.6, Clippers com 52.2 e Lakers com 51.9.

Agora chegamos à temporada atual, que mantém o crescimento mas dá um SALTO assustador: são 48.3 pontos no garrafão por jogo, mais de 28% dos arremessos totais são bandejas, e OITO times fazem mais de 50 pontos no garrafão por jogo, incluindo dois times acima dos 60 pontos: Lakers e Pelicans, ambos com 64.

Para resumir, basta ver de onde saímos em 2014-15 e onde chegamos em 2018-19: pontos no garrafão por jogo saltaram de 42 para 48.3; bandejas saltaram de 22% para 28%; o time líder em pontos no garrafão faz agora 18 pontos a mais na área pintada do que o líder da época, que hoje estaria apenas no meio da tabela.

Mesmo se olharmos para as performances individuais o salto é evidente: em 2014-15 o jogador que mais pontuava no garrafão era DeMarcus Cousins, com 12.5 pontos por jogo; apenas 14 jogadores eram capazes de marcar pelo menos 10 pontos por jogo tão próximos ao aro. Na temporada atual, 2018-19, o líder em pontos no garrafão é Giannis Antetokounmpo (aquele que, como explicamos em um post anterior, está arremessando mais bolas de três pontos do que nunca) com incríveis 18.5 pontos por jogo na área pintada; com ele, são TRINTA E DOIS os jogadores com ao menos 10 pontos por jogo no garrafão. Para se ter uma comparação, Shaquille O’Neal em sua temporada de MVP marcava 22.5 no garrafão por jogo, um dos únicos 10 atletas a marcar pelo menos 10 pontos por jogo na área pintada naquele ano.

O que temos aqui parece contra-intuitivo: mais jogadores pontuando no garrafão hoje do que os grandes pivôs do fim dos anos 90, e um jogador como Antetokounmpo, incentivado a arremessar do perímetro, não ficando tão atrás em pontos no garrafão dos melhores dias de um dos pivôs ofensivamente mais dominantes de todos os tempos. Todo o discurso (e o pânico) que as bolas de três pontos estão causando acabam servindo de cortina de fumaça para o que está acontecendo nos garrafões. Blake Griffin, que está acertando quase metade das suas bolas de três (e tentando incríveis 6 desses arremessos por jogo, coisa de arremessador especialista), também faz mais de 13 pontos por jogo no garrafão, mais do que Clint Capela ou Joel Embiid, por exemplo. Enquanto falamos das bolas de três e enquanto as defesas se concentram em bloquear o perímetro, mais os jogadores estão infiltrando, abrindo mão de arremessos de média distância em nome de atacar a cesta.

O espaçamento necessário para as bolas de três pontos, atraindo as defesas para longe do aro, é o mesmo espaçamento que os jogadores usam para conseguir infiltrar no garrafão com mais facilidade. Quanto mais bolas de três pontos um time arremessa, mais espaço existirá para infiltrar; quanto mais um time infiltrar, mais espaço terá para as bolas de três pontos.

O incentivo para o jogo no garrafão vem, até mesmo, das novas diretrizes para a arbitragem que supostamente deveriam ajudar os arremessadores. Todos os anos a NBA divulga os “points of education”, uma série de pontos a que os árbitros darão mais ênfase ao longo da temporada e que precisam ser informados com antecedência para que os jogadores ajustem seu jogo de acordo. Nessa temporada o foco é em respeitar a “liberdade de movimento” dos atletas, ou seja, serão marcadas mais faltas contra defensores que tentam impedir seus adversários de se movimentar. Nos exemplos que a NBA divulgou no vídeo oficial temos vários defensores tentando parar arremessadores correndo no perímetro através de puxões ou “ganchos” com os braços ao redor da cintura, de modo que será ainda mais difícil parar aqueles atletas que se movimentam sem a bola na linha de três pontos. Mas o mesmo vídeo mostra também jogadores sendo impedidos de estabelecer posição dentro do garrafão, proibindo o “gancho” que é muito mais comum contra jogadores próximos ao aro do que nas corridas de perímetro. Vejam com seus próprios olhos no vídeo abaixo, mas me parece que as diretrizes para “turbinar os arremessadores” ajudam ainda mais os jogadores de garrafão, o que pode explicar parcialmente o aumento de 5 pontos por jogo para cada time na área pintada quando comparamos a temporada passada com a atual:

É inegável que o jogo de garrafão sofreu um baque nos últimos anos por conta das defesas por zona e dos novos desenhos táticos que permitem que múltiplos jogadores se amontoem próximos ao aro, como uma “sanfona” que se comprime fechando o caminho para a cesta e depois se expande para marcar a linha de três pontos. Jogar de costas para a cesta embaixo do aro talvez nunca tenha sido tão difícil quanto é hoje, em toda a história da NBA. Mas o que temos visto é um retorno do jogo de garrafão com uma outra cara: infiltrações dos armadores, jogadores de garrafão que se movimentam constantemente sem a bola, pivôs recebendo pontes aéreas que começam de fora do garrafão, jogadas de costas para a cesta mais afastadas do aro e mais próximas da zona morta, “floaters” por cima dos adversários dentro do garrafão ao invés de arremessos de média distância, etc, etc. É um jogo de garrafão mais dinâmico, em que não é mais possível estabelecer posição de maneira fixa embaixo da cesta e esperar um passe certeiro, mas é um jogo de garrafão de qualquer maneira e que está pontuando cada vez mais.

O que os números nos indicam é que o auge das bolas de três pontos vem, de mãos dadas, com um auge nos pontos de garrafão também, mesmo que eles aconteçam de maneira pouco convencional, e que não os percebamos porque os pivôs estão CAMUFLANDO ISSO ao arremessar do perímetro. Me parece aqui que o mais importante para um time não é arremessar mil bolas de três pontos, e muito menos converter muitas bolas de três pontos, mas sim SER CAPAZ de dar e converter esses arremessos a qualquer momento. Com esse risco estabelecido para as defesas, um time pode tranquilamente abrir mão desses arremessos e usar o espaço gerado pela ameaça para infiltrar e contabilizar seus pontos no garrafão. Caso as defesas fechem o aro e “paguem pra ver”, o time atacante precisa ser capaz de punir o adversário e acertar as bolas de longe, mas hoje em dia cada vez menos equipes “pagam para ver” porque sabem que os arremessadores estão em todos os lugares, em todas as posições. Se esses mesmos arremessadores souberem atacar a cesta e usarem bem os espaços para isso, talvez vejamos cada vez mais times em que o mote da “eficiência” leve a mais bandejas e menos bolas de fora. Já temos vários times na temporada atual indo por esse caminho, de modo que manteremos neles nosso olhar atento para analisar o sucesso dessas empreitadas.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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