O New Orleans Pelicans era pra ser uma das maiores atrações da “bolha” da NBA. A união de calendário tranquilo, boa fase (o time ganhou 11 dos últimos 18 jogos antes da parada) e Zion Williamson tornaram o Pelicans um dos grandes favoritos para se classificar para os Playoffs – ou ao menos para a nona colocação, que permite o “Torneio Colher de Chá” contra o oitavo colocado – apesar de outras equipes terem entrado na “bolha” com mais vitórias na temporada. As expectativas e a animação, entretanto, duraram pouco: o Pelicans perdeu logo na estreia contra um Utah Jazz todo desconjuntado e levantou uma série de questões sobre a saúde, o físico e o condicionamento de Zion Williamson. Por que seus minutos foram limitados a 15 no primeiro jogo dentro da “bolha”, apesar de não existir nenhuma lesão? Por que Zion parecia tão lento se os relatos eram de que ele estava treinando em casa sem parar e, supostamente, “na melhor fase de sua vida”?
Desde a estreia, o cenário do Pelicans só piorou: são 3 derrotas em 4 jogos, com a única vitória sendo contra o Memphis Grizzlies, o SACO DE PANCADAS oficial do retorno da NBA. Diante desses resultados a classificação para os Playoffs parece praticamente impossível, mas a MANEIRA como o Pelicans perdeu esses jogos mostra que há mais com o que se preocupar do que uma classificação momentânea. O time tem motivos de sobra para se preocupar com o futuro – não apenas da franquia, mas também de Zion Williamson e de seu lugar na NBA.
Em seu primeiro jogo na “bolha”, contra o Utah Jazz, Zion jogou apenas 15 minutos e marcou 13 pontos. Foram 6 arremessos convertidos em 8 tentativas, todos da maneira que já nos acostumamos a ver: batendo pra cesta, trombando com defensores, encontrando ou criando espaços improváveis dentro do garrafão. No entanto, sua lentidão na transição ofensiva e defensiva, falta de mobilidade lateral e momentos de apatia após jogadas de explosão dedaram imediatamente dois cenários possíveis: ou Zion está fora de forma, longe dos momentos de domínio físico que vimos durante sua carreira universitária e até nos seus primeiros jogos na NBA antes da parada; ou falta ao Zion “comprometimento”, “vontade”, “garra”, essas palavras genéricas que usamos quando um jogador parece não estar atingindo todo seu potencial porque não se importa, porque não se esforça.
Quando o técnico Alvin Gentry afirmou ao fim da partida contra o Jazz que Zion estava com uma restrição médica de 15 minutos por jogo, bateu algum alívio. Não se tratava de desinteresse, mas de alguma restrição. No entanto, a equipe médica disse que não havia nenhuma lesão e o próprio Zion, em entrevista após o jogo, disse que sua limitação de minutos era frustrante, porém necessária para que sua falta de ritmo não atrapalhasse seus companheiros. Se a questão é de ritmo e de condicionamento, fica então o mistério: o que aconteceu com aquele físico que o Zion mostrou estar cultivando durante a parada da temporada que de tão SOBRE-HUMANO rendeu até mesmo comparações com o Bane, vilão do Batman?
Olheiros da NBA chegaram a comentar, após o primeiro jogo, que Zion provavelmente não deveria ter sequer entrado em quadra, que era evidente como ele não estava em condição física de jogo e que corria o risco de se lesionar. Brian Sutterer, médico esportivo famoso por suas análises no YouTube, foi além: afirmou que Zion está na pior forma física de sua carreira, incluindo aí sua breve carreira universitária.
Os números de Zion em quadra parecem reforçar essa percepção. Na partida contra o Jazz, apesar dos 13 pontos em 15 minutos, Zion saiu com um saldo negativo de 16 pontos – ou seja, seu time sofreu 16 pontos a mais do que converteu enquanto ele esteve em quadra. Apesar de sempre encontrar um modo de pontuar, sua forma física impacta de maneira mais explícita seu jogo defensivo, o que faz com que o Pelicans tome mais pontos do que consegue marcar com ele em quadra mesmo que ele seja uma MÁQUINA de encontrar a cesta. Para termos ideia, durante seus minutos jogando contra o Jazz, o Pelicans tomou 164.3 pontos a cada 100 posses de bola; como comparação, a pior defesa da temporada (oi, Washington Wizards, tudo bem?) sofre 115.6 pontos a cada 100 posses de bola. Com Zion, o Pelicans é muito, muito, muitíssimo pior do que a pior defesa que existe.
Na derrota para o Kings, a terceira após o retorno, Zion conseguiu números ainda mais extremos no ataque: foram 24 pontos marcados em apenas 21 minutos de jogo (e poderiam ter sido 27, um número obsceno, se ele tivesse convertido todos os seus lances livres). E ainda assim, o Pelicans tomou 12 pontos a mais do que converteu com ele em quadra. Não importa o quanto ele pontue, o saldo é negativo se ele não tem mobilidade lateral e velocidade suficiente para voltar para a defesa e manter seu corpo entre os oponentes e a cesta.
O que assusta nesse cenário não é exatamente a dificuldade de Zion na defesa, mas o fato de que isso está visivelmente atrelado aos seus problemas de condicionamento físico. Na universidade, em grande forma, Zion era famoso por ser atlético o suficiente para se manter à frente de qualquer oponente, o que possibilitava que seu time fizesse trocas defensivas e o deixasse marcando qualquer adversário, armadores, alas ou pivôs:
Working through Zion Williamson's NBA Draft scouting video. Really impressed with his ability to switch onto the perimeter at 285 pounds. Great feet for his body type. Still has a lot of work to do in terms of defensive discipline but a ton of potential on that end. pic.twitter.com/BATlVzqMjK
— Mike Schmitz (@Mike_Schmitz) April 22, 2019
Não é à toa que os olheiros, embora admitissem que faltava “disciplina defensiva” (basicamente saber se manter na posição correta, sem arriscar tanto), estavam apaixonados pelo potencial defensivo de Zion Williamson na época do draft. Além de ter pés rápidos e boa velocidade lateral, sua capacidade de IGNORAR A GRAVIDADE ainda permitia que ele fosse um excepcional defensor de aro nas coberturas, dando tocos quando seus oponentes menos esperavam:
Não foram poucos os relatórios de olheiros que diziam que Zion tinha potencial para vencer, em algum momento da sua carreira, o prêmio de Melhor Defensor do Ano. Uma comparação frequente com um jogador na ativa apontava para Draymond Green, dada sua versatilidade defensiva (podendo marcar todas as posições), boa leitura de jogo e capacidade de defender um garrafão mesmo sendo muito, muito mais baixo do que os oponentes.
Se acostumar com a defesa da NBA, no entanto, é um caminho árduo e longo, e é evidente que Zion aprendeu o caminho da cesta muito antes de saber se situar na defesa do Pelicans. Após as dificuldades evidentes das suas primeiras partidas na temporada – lembrando que Zion perdeu os primeiros 44 jogos por lesão e não teve muitas oportunidades de se acostumar e se adequar à defesa do time – o técnico Alvin Gentry decidiu que era melhor ter Zion trocando a marcação e defendendo o perímetro do que tentar defender o garrafão contra adversários já em movimento. Foi um ajuste para, supostamente, não expor tanto Zion defensivamente e colocá-lo numa situação melhor; numa das partidas da temporada regular, antes da pausa, Zion até fez um bom trabalho nessa função, marcando no mano-a-mano Anthony Davis, ao invés de ficar perdido tentando proteger o aro numa NBA muito mais veloz do que o basquete universitário.
Mas agora, depois de tanto treinar com o Pelicans nos últimos meses, de criar músculos, e de passar por um trabalho severo de condicionamento que ensinou Zion até mesmo a CORRER diferente para preservar seu corpo, o que temos é um jogador que não é mais capaz de marcar ninguém no mano-a-mano – e que continua sem saber onde se posicionar se é forçado a proteger o garrafão. De alguma maneira estranha, o jogo defensivo de Zion INVOLUIU junto com seu condicionamento físico.
O corpo de Zion sempre foi uma questão que desafia os rigores da FÍSICA MODERNA. Para o draft, Zion foi medido com 1,98m de altura e surreais 129 quilos. Para comparação, o único jogador mais pesado do que ele na NBA atual é Boban Marjanovic, com 132 quilos – porém distribuídos em 2,24m de altura e 2,40m de envergadura. Zion é DESPROPORCIONALMENTE pesado, e ainda assim corre, pula, enterra e tem velocidade lateral condizentes com um jogador de metade do seu peso. Esse é o fascínio que ele traz para as quadras: peso significa conseguir trombar com os defensores, cavar espaço no garrafão e empurrar adversários, mas sua capacidade atlética significa que ele não precisa abrir mão de mobilidade e das jogadas de efeito para isso.
No entanto, esse corpo EXISTIR tem um preço: as lesões. Zion se machucou no basquete universitário quando seu tênis IMPLODIU tentando sustentar seu peso – ou seja, a gente consegue fazer NAVE ESPACIAL que sobrevive aos rigores do espaço sideral, mas não consegue fazer um tênis que sobreviva ao corpo de Zion Williamson. Na NBA, Zion durou incríveis NOVE MINUTOS na Summer League, a liga de aquecimento para a temporada regular, até se contundir e perder os seus primeiros 44 jogos como profissional. Até o mais otimista dos torcedores não pode deixar de ver um padrão acontecendo, o que justifica o Pelicans tratar seu atleta como se fosse de vidro. Zion teve mais jogos na temporada com restrição de minutos do que jogos com liberdade de tempo; somando isso ao cuidado de reensinar Zion até a correr, temos um cenário em que só falta embrulhar o jogador em plástico bolha (e olha que seria uma quantidade GRANDE de plástico bolha, que o cara é LARGO).
A preocupação do Pelicans com seu jogador é perfeitamente compreensível. Ainda que seja uma reconstrução acelerada, o Pelicans está sem sombra de dúvidas começando de novo, dando adeus aos tempos de Anthony Davis e iniciando um novo momento na franquia. Para um time que nunca foi exatamente capaz de encantar a própria torcida – o pessoal de New Orleans não é muito empolgado com a franquia e prefere o futebol americano – é uma chance de vender um novo início, criar engajamento e oferecer EMOÇÃO: a emoção de ver Zion quebrando as leis da física e dando enterradas memoráveis. Para times como o Pelicans, ter um jogador empolgante às vezes é mais importante do que ser campeão, porque atrai público e vai construindo interesse. E Zion é justamente essa pessoa que gera interesse – a gente quer saber como essa criatura existe, como ele se alimenta, qual cadeira dá conta dele se sentar, como as marés reagem quando ele se vira na cama – e que não dá pra desgrudar os olhos quando ele está em quadra.
Garantir esse interesse por Zion e a possibilidade de que toda uma cidade possa acompanhar esse ser mitológico do zero é prioridade total em New Orleans. Estourar o atleta na primeira temporada seria irresponsável, e o Pelicans já está traumatizado de ter uma estrela que vive lesionada. O plano, claro, é cuidar de Zion e construir algo duradouro, a longo prazo.
A dificuldade para esse modelo é que o Pelicans é um time interessante AGORA, com jogadores jovens e muito potencial, mas que está comprometido a existir ao redor de Zion. É até natural que um time novo assim, empolgado assim com o talento geracional que tem em mãos, fique totalmente refém de sua estrela. Só que quando essa estrela tem sempre restrição de minutos, lesões e um físico que parece REGREDIR a cada dia, a situação vai ficando muito perigosa.
O diagnóstico do médico esportivo Brian Sutterer, ainda que à distância, é bem negativo: para ele, o físico de Zion está piorando progressivamente diante dos nossos olhos. Segundo ele, Zion era consideravelmente mais veloz, atlético e ágil na universidade, e que com as lesões (e a retirada de um pedaço do menisco) vem tendo mais e mais dificuldade de entrar em forma, o que vai piorando seu rendimento e aumentando suas chances de novas lesões. Para o médico, é evidente que o Pelicans está ciente disso e por isso limita minutos e tenta “reeducar” a relação de Zion com seu corpo, numa tentativa de evitar o pior. Mas para Sutterer, Zion está “perdendo a corrida contra o próprio corpo” e com isso está “regredindo” como jogador.
Se ele estiver certo, os problemas defensivos de Zion não são ajustáveis com mais entendimento de jogo ou mudanças táticas; ele precisaria estar numa forma física que já vimos antes, que rendeu as previsões de um possível prêmio de “Melhor Defensor do Ano”, mas que parece cada vez mais distante. Impedir que ele regrida e devolvê-lo ao menos à sua forma física universitária passa agora a ser uma questão fundamental para o Pelicans, muito mais do que esses Playoffs. A “bolha” não é nada perto da bolha que o Pelicans tenta, aos trancos e barrancos, construir para proteger seu principal jogador.
O problema é que, no caso de Zion, a solução parece não ser proteger, mas sim confrontá-lo com a realidade e forçá-lo a mudar. É uma situação bastante comum com novatos, embora mais rara com novatos estrelas: descobrir que algo no arremesso, no físico, no posicionamento, na postura não funcionam e aí TRANSFORMAR o jogador naquilo que o time precisa que ele seja. Kawhi Leonard, draftado com a décima quinta escolha em 2011, não tinha muita moral para impor seu estilo de jogo; no Spurs, foi aos poucos transformado naquilo que o time precisava, tendo que se especializar em arremessos da zona morta. Calhou que o Kawhi era UM GÊNIO e virou um dos melhores jogadores do planeta, mas mesmo gente talentosa como ele, quando chega pouco badalado na NBA, é tratado como uma peça da engrenagem e precisa se adaptar às necessidades do time. São só os novatos estrelas que geram um efeito contrário, em que o time se adapta àquilo que o jogador já faz. Quando um time se “constrói ao redor de um jogador”, isso significa deixar que o jogador faça aquilo que ele já faz, e adaptar técnico, elenco e até estilo de jogo a isso.
Zion foi a primeira escolha do draft e, portanto, é um desses jogadores que faz todo o resto se moldar a ele e ao seu estilo – especialmente quando se trata de um estilo tão VISTOSO, que atrai multidões. Mas o que fazer quando descobrimos que esse estilo – e seu físico, e seu peso, e seu jeito de correr – são AUTODESTRUTIVOS? Zion agora é um risco para Zion; deixá-lo sozinho, como peça central da franquia sem ser mudado, alterado, adaptado, pode ser condená-lo a uma carreira curta, recheada de falhas defensivas graves demais.
A situação do Pelicans é muito ingrata. Por um lado, o time precisa agradar Zion, mostrar como ele é importante, como será respeitado, como ele é a peça central do time, como ele é lindo e perfeito e cheiroso; por outro, precisa mudá-lo, torná-lo um jogador levemente diferente, convencê-lo a perder peso e arcar com todas as consequências que essa mudança física possa trazer, incluindo uma possível necessidade de mudar seu estilo de jogo, as posições que pode defender em quadra e muito do que julgávamos conhecer sobre ele.
Zion não é apenas um corpo inédito, mas também um caso inédito na NBA. O jogador foi a primeira escolha do draft porque qualquer time queria AQUILO LÁ que vimos, ainda que brevemente, em sua carreira universitária, mas AQUILO LÁ está se degradando tão rápido, mas tão rápido, que a temporada nem acabou e a gente já não encontra mais elementos importantes, como velocidade lateral e agilidade. Para impedir que ele continue se degradando, é necessário mudá-lo, mas isso também significa mudar AQUILO LÁ que fez tantos times se encantarem com ele. Para o Pelicans, é tudo loteria: manter o jogador como ele é hoje seria uma aposta, que pode acabar com lesões graves ou condicionamento físico inexistente; mudar o jogador para que seja mais leve é também uma aposta, porque a gente não faz IDEIA do tipo de jogador que surgirá disso, dado que o físico é o que existe de mais único em Zion e pode ser parte importante mesmo das outras coisas geniais que ele faz em quadra.
Não há caminho seguro para o Pelicans e nem para Zion. Talvez nunca tenhamos visto, na NBA, um jogador tão único, tão estranho, tão fora dos padrões, e é natural que ninguém saiba o que fazer com ele. Deveríamos aceitar sua diferença, talvez arriscando seu futuro, ou mudá-lo – também arriscando seu futuro, já que o jogador resultante certamente será menos único e, por isso, menos especial em quadra? Não há escolha óbvia, precedentes ou caminhos já trilhados – quando se trata de Zion, tudo é novidade.