Quando a NBA fez sua tradicional pausa no meio da temporada para que ocorresse o All-Star Game, representantes dos jogadores e dos árbitros se reuniram para discutir a conturbada relação entre eles. Esse encontro se fez necessário após meses de confrontos, que já relatamos num post anterior, envolvendo jogadores sendo expulsos, discussões em quadra, Shaun Livingston e um juiz trocando CABEÇADAS e muita, muita reclamação sobre arbitragem por parte dos jogadores na imprensa. Essa percepção de que a “arbitragem está piorando” tomou o imaginário de toda essa temporada e culminou com fãs indignados porque jogos importantes das Finais de Conferência e das Finais da NBA foram comprometidos por erros de apito. Mas essa discussão não é nova – na verdade, estamos assistindo aos efeitos de uma disputa que já tem, pelo menos, 8 anos de duração.
Foi em 2010 que a NBA estabeleceu um conjunto de regras intitulado de “Respeito pelo Jogo”. Sua intenção era, basicamente, proteger a arbitragem contra a frustração crescente dos atletas e as críticas públicas de técnicos e comissões técnicas. A NBA acreditava, na época, que árbitros estavam sendo “colocados em risco” graças ao replay nos ginásios e à postura dos jogadores, que lançavam a ira do público na direção dos juízes. A partir daquele momento, portanto, qualquer reclamação explícita à arbitragem nos meios de comunicação passou a ser severamente multada pela Liga, assim como reações “exageradamente contrárias à arbitragem” passaram a receber faltas técnicas ainda em quadra. Árbitros rapidamente se tornaram intocáveis e a repressão à frustração dos jogadores, como ocorre com qualquer repressão, acabou causando uma resposta histérica. Aos poucos, jogadores começaram a “explodir” e técnicos começaram a simplesmente arcar com o peso das multas para falar aquilo que realmente sentiam.
Ao invés de proteger os árbitros, a política de “Respeito ao Jogo” acabou apenas criando uma imagem de que os árbitros eram autoritários e que não estavam dispostos a ouvir críticas, repensar suas decisões e melhorar suas práticas. Em 2015, em mais uma tentativa de restaurar a imagem dos árbitros – e, consequentemente, a confiança pública em suas funções – a NBA passou a emitir o famigerado “Relatório dos dois últimos minutos“, uma análise minuciosa da arbitragem em todos os jogos que chegassem aos seus dois minutos finais com uma diferença de dois pontos ou menos no placar. Nesses relatórios, cada jogada desses minutos decisivos é analisada para determinar se os árbitros acertaram suas marcações em quadra. A intenção era ao mesmo tempo mostrar que a NBA “se importa”, que ela está de olho na qualidade dos árbitros e que eles estão sob julgamento da entidade, e também mostrar para o público que os erros são poucos e raros, e que em geral as equipes de arbitragem mais acertam do que erram. Não deu certo: árbitros passaram a se sentir humilhados, tendo seus erros expostos de maneira institucionalizada, e jogadores, técnicos e torcedores passaram a usar os erros admitidos pela NBA nos relatórios para justificar derrotas e um sem-número de teorias conspiratórias. Com os erros de arbitragem expostos, jogadores passaram a se sentir legitimados para questionar toda e qualquer marcação; sob crítica constante, árbitros passaram a se sentir perseguidos e endureceram as expulsões e faltas técnicas, tentando impedir as críticas constantes a todo momento do jogo.
O que a NBA tem em mãos agora não é uma crise de qualidade de arbitragem – são incontáveis os cursos de preparação, formação e reciclagem dos juízes da Liga, que estão entre os melhores do mundo na sua tarefa – mas sim uma enorme crise de credibilidade. Com os “Relatórios dos dois últimos minutos”, telões gigantes nos ginásios mostrando o replay das jogadas no meio das partidas e infinitos ângulos em câmera lenta chegando às nossas casas via imagens em altíssima definição, é impossível não achar que os árbitros erram em todas as posses de bola, de uma maneira ou de outra, e que são ativamente responsáveis pelos resultados dos jogos. Hoje em dia, cada erro é explícito e existe pouca margem para interpretação – basta um zoom adequado para encerrar quaisquer discussões e rebaixar a arbitragem a uma função fadada ao fracasso.
Essa crise de credibilidade da arbitragem não se encontra apenas na NBA, no entanto. Basta acompanhar minimamente a Copa do Mundo de Futebol para perceber que as reclamações com a arbitragem estão no centro de todas as discussões, incluindo reclamações formais de diversas entidades – a Confederação Brasileira de Futebol inclusa – contra erros de apito que influenciaram resultados. A Copa do Mundo até mesmo oficializou o “árbitro de vídeo”, tentando arrancar da mão dos árbitros as decisões importantes que eles não se encontram qualificados para tomar por não terem telas eletrônicas diante de seus olhos, e mesmo assim as reclamações continuam – se é que não foram ampliadas. Parece que, quando se trata de arbitragem, não estamos dispostos a lidar com os erros humanos, queremos que todas as decisões sejam tomadas com a mesma precisão que a tecnologia nos permite ter em nossas casas. Por que, então, não abrimos mão dos árbitros humanos e adotamos de vez uma arbitragem inteiramente feita através de vídeos e replays?
A maior preocupação de todos os esportes que envolvem arbitragem é permitir que os jogos tenham RITMO, fluidez, continuidade. Essa é uma questão mais importante do que nos parece à primeira vista. Quando assistimos a uma partida esportiva, nossa prioridade não é a exatidão do cumprimento de todas as regras, mas sim que o esporte ACONTEÇA, que ele gere acontecimentos, que a gente possa ver momentos incríveis se desencadeando um após o outro.
Isso significa que parar uma partida a qualquer sinal de dúvida tornaria a experiência IMPRESTÁVEL, veríamos pequenos momentos de esporte entrecortados por longas e constantes pausas para que os vídeos fossem analisados. Mesmo esportes que já possuem pausas naturais, dentro das regras (tênis, vôlei e até futebol americano) temem que a checagem de todos os lances torne as pausas ainda mais frequentes e o jogo se torne travado, chato, enfadonho. É comum que esses esportes limitem o número de checagens, criando o estranho conceito de um número pré-determinado de “contestações de marcação” que os atletas podem usar. Mas os esportes com poucas pausas “naturais” possuem um problema adicional: muitas vezes é necessário checar uma marcação enquanto o jogo ainda está andando e pará-lo cria uma série questão sobre o que está valendo e o que não está enquanto um jogo acontece.
Pensemos num exemplo: um jogador tenta fazer uma bandeja no basquete e um outro jogador a contesta, conseguindo um toco. Esse toco gera imediatamente um contra-ataque, que pode gerar um outro contra-ataque e assim por diante. Quando o jogo finalmente parar, a arbitragem poderá checar o lance do toco e chegar à conclusão de que se tratou de um goaltending, ou seja, a bola estava na descendente e ao invés de um toco deveria ter sido marcada a cesta. Se eles arrumarem a marcação, o que fazer com tudo que aconteceu DEPOIS DELA? Os contra-ataques, as jogadas, todos os eventos que se desencadearam? Simplesmente apagamos do jogo e das nossas mentes, fazendo com que os jogadores joguem minutos inteiros que NÃO VALERAM? Ou então os árbitros param a jogada assim que surge a dúvida e, se descobrirem que na verdade tratava-se mesmo de um toco, descobrem também que destruíram o contra-ataque da equipe com a parada para checar o lance?
Pior: como fazer em caso de faltas? Para-se em todas as possíveis marcação para analisar o replay, tornando as pausas do basquete ainda maiores e o tempo dedicado aos lances livres ainda mais insuportável? Teremos pausas a cada contato entre os jogadores, mais uma vez impedindo que as defesas puxem contra-ataques porque o jogo precisa parar, com os árbitros marcando faltas “por via das dúvidas” para poder checar depois? Se um árbitro para o jogo apenas quando tem dúvidas, como lidaremos com às vezes em que ele ACREDITA ESTAR CERTO mas está cometendo um erro, como tem sido o caso durante a atual Copa do Mundo?
Embora exista uma vontade dos esportes de manterem a “justiça” entre os times e apelar para a tecnologia favoreça essa intenção, ela está longe de ser a prioridade máxima: a vontade de justiça não pode impedir que o jogo OCORRA. Qualquer regra ou tentativa de manter a regra que torne o jogo inviável deve ser abandonada; é melhor arcar com as consequências dos erros humanos do que descobrir que alguns esportes são impossíveis quando dependem de pausas constantes para que a tecnologia faça sua parte. É importante lembrar que a esmagadora maioria dos esportes não foi CRIADA pensando no uso da tecnologia de vídeo; suas regras foram desenhadas do zero para que fossem decididas por árbitros. Por isso, alguns esquemas de regras não dão conta dessas mudanças que tanto desejamos, ficando mais fácil inventar outros esportes novos que já contem com o auxílio do vídeo desde o nascimento do que tentar “remendar” os esportes que já conhecemos.
No caso específico do basquete e da NBA, a tecnologia do replay só pode acontecer pelas beiradas para não atrapalhar de maneira irremediável o fluxo do jogo. Abaixo, listo todas as ocasiões principais em que a checagem pode acontecer e os motivos para essas checagens serem possíveis sem atrapalhar o andamento do esporte:
- checar se um arremesso foi de dois ou três pontos (para isso o jogo não precisa parar, basta ajustar o placar assim que o vídeo mostrar com certeza a natureza do arremesso)
- checar faltas que acontecem quando o tempo do quarto termina (já que não há jogo para acontecer depois, pode-se parar para analisar a jogada sem nenhuma dificuldade)
- se uma falta foi ou não flagrante (isso acontece porque a falta já foi marcada e não pode ser mudada, de modo que o jogo tem que necessariamente parar mesmo; com a pausa, os árbitros podem então analisar se a jogada foi desnecessariamente violenta, algo particularmente difícil de analisar em velocidade real na quadra, em que muitos contatos parecem mais fortes do que de fato foram)
- pancadaria entre os jogadores (porque o jogo precisa parar para impedir a quebradeira e os árbitros podem, com o vídeo, saber exatamente quem começou e quem participou da bagunça)
- quando o cronômetro DÁ PAU (já que o jogo precisa parar de qualquer maneira para arrumar o problema e o uso de vídeo garante que o cronômetro volte aos segundos exatos que deveria)
- se uma falta aconteceu num arremesso de dois ou três pontos (de novo, a falta já está marcada e não pode ser mudada, então a pausa já seria obrigatória e os árbitros podem aproveitar para garantir que o número correto de lances livres sejam cobrados)
- dúvidas sobre quem tocou numa bola que saiu da quadra (a bola sair da quadra já causa uma pausa, então os árbitros aproveitam para usar o replay; no entanto, como a dúvida é COMUM DEMAIS, convencionou-se usar o recurso apenas nos últimos 2 minutos dos jogos, o que seria o momento “decisivo” da partida)
- saber se uma cesta convertida foi arremessada antes do estouro do cronômetro (já que a cesta convertida causa uma parada natural no jogo)
- saber se um jogador que sofreu uma falta tinha ou não defensores entre ele e a cesta (outra vez a falta já foi marcada e não pode ser revista, de modo que a pausa é natural e pode ser aproveitada para decidir algo que os árbitros muitas vezes não conseguem ver com os próprios olhos por terem que seguir a bola)
- saber se uma falta marcada tinha o defensor dentro ou fora da área restrita (a sacada aqui está no fato de que de qualquer maneira será falta, então o jogo tem que parar; se o defensor estiver fora da área restrita, é falta de ataque, e se estiver dentro, é falta de defesa)
- se um toco foi dado numa bola na descendente (apenas nos últimos dois minutos de jogo, porque é uma dúvida frequente, e apenas se os árbitros marcaram a violação, não podem deixar a jogada rolar e voltar para checar depois)
Há um tema comum nas possibilidades de replay da NBA: árbitros não param o jogo para descobrir, no vídeo, se um lance foi ou não uma falta ou violação. As checagens só acontecem em pausas naturais (estouro de cronômetro ou faltas que já foram decididas) e tentam resolver coisas menores que são particularmente difíceis para as equipes de arbitragem. O maior TERROR da NBA é um árbitro parar tudo, pausar o jogo, checar no replay e descobrir que não foi nada, que não teve falta, que o jogo pode continuar. Porque depois que ele parou o jogo, NÃO DÁ MAIS PRA CONTINUAR, a pausa já está instaurada. Assim, replays não deixam que árbitros mudem de ideia sofre faltas, podem apenas decidir se elas foram para dois ou três lances livres, normais ou flagrantes, de ataque ou de defesa.
Apesar da tentação da novidade na Copa do Mundo, a FIFA também abomina a ideia de um árbitro que pare o jogo para analisar uma jogada lá na sua telinha e volte dizendo “segue o jogo, não foi nada”. Se tivéssemos um punhado de momentos desses nas partidas, rapidamente começaríamos a reclamar que estão “estragando o jogo”. Seria questão de tempo até dizerem, na NBA, que times foram prejudicados porque o árbitro parou para chegar num momento equivocado, e isso seria colocado na lista de ERROS DE ARBITRAGEM QUE MUDAM RESULTADOS da mesma maneira que todos os erros com os quais convivemos hoje em dia.
Isso não significa que o uso da tecnologia seja impossível e que deveríamos voltar à época da pedra polida, mas precisamos parar um segundo e pensar o que é que nos afinal QUEREMOS com uma arbitragem, o que esperamos dela. Não queremos um jogo que pare o tempo todo; com exceção de arremessos erroneamente creditados como sendo de dois ou de três pontos, é inviável no basquete voltar atrás e mudar a marcação de um lance porque a cabine de vídeo minutos depois percebeu um erro; uma pausa para chegar pode cortar contra-ataques, transições defensivas, esquemas táticos; confiar na percepção do árbitro para decidir quando ele precisa ou não de ajuda é confiar em uma percepção HUMANA que comete erros de julgamento naturalmente, nos levando de volta ao fato de que erros são humanos.
Se o que queremos é uma arbitragem que apenas ERRE MENOS, precisamos pensar em quais ferramentas são possíveis para que isso aconteça sem comprometer o que mais gostamos no esporte – não adianta consertar uma coisa e quebrar de maneira ainda pior outra. Pensem em como seria o basquete se árbitros pudessem voltar atrás nas marcações de falta a qualquer momento através do replay e analise se as consequências disso ainda permitiriam o esporte, resolvendo os problemas que conhecemos sem criar outros problemas inteiramente novos.
Nas Summer Leagues, as Ligas de Verão da NBA que antecedem a pré-temporada e permitem que times experimentem seus novos jogadores num torneio sem consequências, a Liga experimentará com a possibilidade de técnicos terem um número de “desafios de arbitragem”, parando o jogo para que os juízes possam rever o lance desafiado. Essa possibilidade já existe há algumas temporadas na Liga de Desenvolvimento da NBA, com bastante sucesso, mas é preciso pensar nas consequências que teria na Liga principal: será que técnicos farão o desafio apenas para quebrar contra-ataques? Parar o jogo? Conversar com a equipe como se fosse um “tempo técnico”? Quantos serão os desafios? Haverá consequências se o desafio for pedido injustamente?
É por dúvidas como essas que a NBA já vetou a possibilidade dos “desafios” fazerem parte na próxima temporada, precisando ainda de muitos testes – e, claro, conversas com donos, jogadores e árbitros a respeito dessa mudança nas regras. Assim como os “árbitros de vídeo” na Copa, trata-se de uma ferramenta muito nova e que terá que passar por sua cota de mal-entendidos e polêmicas antes de se estabelecer. A única certeza que nos cabe diante dela é que nunca ficaremos satisfeitos: ainda veremos seres humanos andando pelas quadras e campos com seus apitos, cometendo erros que agora são grosseiros apenas porque vemos, na televisão, melhor do que todos eles somados. Não há salvação para a arbitragem. Talvez fosse simplesmente melhor que a aceitássemos, como aceitamos o vento, o frio e aquelas bolas que giram e giram antes de cair para dentro do aro. Há um fator de acaso, de erro, de humano no esporte, por mais que tentemos escondê-lo por trás da tecnologia, das estatísticas e do nosso discurso de justiça e meritocracia.