Entraram na moda, uns anos atrás, livros que faziam comparações entre personagens de filmes ou séries e grandes filósofos ou correntes filosóficas. A intenção desses livros é, em geral, se aproveitar do apreço por esses personagens para popularizar alguns conceitos importantes da Filosofia e, claro, ganhar uns trocados no processo. Aviso, logo de cara, que não é essa minha intenção aqui: não pretendo fazer comparações entre o Golden State Warriors campeão e o Descartes; não consigo forçar a barra o bastante para uma aproximação entre LeBron James e Aristóteles. O que eu gostaria é de apontar o que vejo como uma semelhança entre o basquete (o esporte) e a minha visão do que é a Filosofia.
É comum me perguntarem se existe alguma relação possível entre minha profissão (o Bola Presa) e minha formação acadêmica (a Filosofia), como se as duas coisas fossem totalmente incompatíveis. Entendo que, à primeira vista, parecem coisas de ordens muito distintas, mas na minha cabeça nunca foram tão diferentes assim – chego a dizer que fazem parte, no fundo, de uma mesma maneira de encarar a vida e o mundo. Para explicar os motivos desse meu posicionamento, precisamos antes entrar num terreno bastante arenoso: a definição do que é Filosofia.
Primeiramente é importante estabelecer que não há consenso nessa questão, já que filósofos e correntes de pensamentos diferentes divergem a respeito. A visão mais comum, que você encontra em alguns livros didáticos (e no famoso “O Mundo de Sofia”, um romance de popularização da Filosofia para crianças e adolescentes), é que a Filosofia é o simples ato de questionar-se, fazer perguntas, olhar para mundo com uma curiosidade infantil e sempre renovada. A História da Filosofia seria, por esse ponto de vista, a história de todas as dúvidas e perguntas proferidas pela existência humana e as tentativas de solucionar essas questões. Pessoalmente, não gosto dessa definição; ela transforma absolutamente qualquer indagação em Filosofia, faz de crianças curiosas filósofas e faz com que a Filosofia sempre tenha existido muito antes de uma palavra ter sido estabelecida para denominá-la.
Prefiro, da minha parte, outra definição: a de que o alvo de estudo da Filosofia é a própria Filosofia. Ou seja, que a Filosofia é um modo muito específico de se pensar e que estuda justamente esse modo específico de pensar. Sei que parece estranho, mas é semelhante a afirmar que o basquete é sobre o basquete, em que desempenhamos, estudamos e vibramos com as coisas de basquete que acontecem no basquete. É praticamente um universo à parte.
Gosto da ideia de que a Filosofia não é composta exatamente de perguntas, mas de PROPOSTAS (mesmo que essas propostas possam ser perguntas, como veremos a seguir). Basicamente, vejo a Filosofia como uma espécie de jogo de faz-de-conta, um “como seria se”. Um filósofo propõe como seria se não pudéssemos, por exemplo, acreditar em nossos sentidos (o que, por sua vez, é também uma pergunta: “o que acontece se nossos sentidos não forem confiáveis?”). A partir disso, com o máximo de rigor, tentando o tempo inteiro seguir aquela proposta de regra original sem nenhuma contradição, continua-se a brincadeira: no que poderíamos confiar então, quais seriam as consequências, qual a relação dos sentidos com nossa compreensão de mundo, etc.
Naquele breve período em que lemos o texto de um filósofo, nós acreditamos inteiramente naquela proposta como acreditamos inteiramente nas regras do basquete, por exemplo, e aí nos abrimos para a incrível descoberta de suas consequências. Essa proposta pode vir com um “como seria se”, com uma pergunta, com uma nova definição (quais seriam as consequências da gente definir como “verdadeiro” apenas o que tem prova matemática, por exemplo?), com uma regra. E muitas vezes o filósofo não faz a menor ideia de quais vão ser as consequências de sua proposta (ou pergunta, ou definição, etc) inicial: quase sempre o texto descreve um processo de descobertas, uma depois da outra, e todos os impactos que essa proposta traria para a vida, o mundo ou a Filosofia.
Mas aí a gente se pergunta: essas descobertas são “reais”? Aquilo que um filósofo descobre serve para a nossa vida? Dá pra levar isso a sério? Então, essa é a parte divertida: as descobertas são válidas na vida comum CASO as propostas que deram origem a essas descobertas também sejam. Se você definir as coisas de um jeito específico, então Descartes está certo; se você definir de outro, então quem está certo é Espinosa; se definir de um terceiro modo, o correto é o Kant; e assim por diante. Mas na hora em que estamos com um filósofo, damos um salto de fé e agimos COMO SE as propostas dele fossem reais, e as consequências nos atingem como um trem. Aí a gente fecha o livro e percebe: “ah, as coisas propostas poderiam ser outras, né?”. E sempre podem.
Como professor de Filosofia, a coisa mais interessante sempre foi ver alunos se apaixonando por um filósofo, achando que ele tem todas as respostas do mundo, e aí começa outro bimestre e a gente muda de filósofo, mudando as propostas e portanto as conclusões, as descobertas e as consequências. Aí todo mundo se encanta com esse cara novo, apenas para no mês que vem se encantar pelo próximo. No fundo, o que interessa é que quando a gente se entrega inteiramente para uma proposta nova, descobre um monte de consequências novas que nos encantam e nos transformam. Parando pra pensar friamente, é só uma PROPOSTA, não tem nenhuma pretensão de ser a verdade única do mundo, mas a gente se dedica a essa proposta como se ela fosse a coisa mais importante do universo – só assim, com uma dedicação total, a gente consegue ir até o final do pensamento e descobrir todas as suas consequências.
E se as consequências dessa proposta forem ruins, tristes, nocivas, perigosas? A gente muda a proposta, ué. Essa é uma diferença interessante entre as Ciências e a Filosofia. Nas Ciências a gente não questiona a proposta, que é sempre a mesma, e como resultado cada novo cientista ajuda a descobrir novas consequências ou respostas apoiadas nas descobertas anteriores; um aluno na escola não precisa aprender toda a linha de descobertas que levaram à nossa visão atual de um micróbio, por exemplo, ele só precisa aprender a MAIS RECENTE – e seus filhos vão aprender outra mais recente ainda quando forem para a escola. Na Filosofia, um filósofo pode até se inspirar e se aproveitar das descobertas de outros filósofos anteriores, mas cada proposta é única e cria respostas únicas para ela. Isso significa que alunos não aprendem só o filósofo mais recente, mas todos os mais importantes, os mais famosos, desde 400 a.C. Porque cada um vai propor um cenário único, e a gente vai experimentando cada um pra descobrir onde eles levam. Se não gostar, não interessar, parecer uma proposta absurda demais, ou as consequências ruins demais, você tenta outro – enquanto se você não gostar das consequências de uma descoberta científica, só te resta aceitar, sentar e sofrer (ao invés de negar a Ciência no Twitter, por favor, né.)
É claro que alguns filósofos acabam sendo mais importantes do que outros porque suas propostas e descobertas acabaram sendo tão incríveis que foram levadas para a vida real, impactando modos de viver, governos, as Ciências, a Educação, as Artes – motivo pelo qual, de um jeito ou de outro, algumas propostas trazidas por filósofos são a origem de todas as outras áreas do conhecimento. Mas na maior parte do tempo as propostas dos filósofos são totalmente irrelevantes para a vida real, só que a gente se debruça sobre elas mesmo assim: a gente quer dar aquele salto de fé, se entregar, experimentar as consequências. E a partir do momento em que a gente faz isso, torna-se incrivelmente REAL nas nossas vidas; as consequências VAZAM para nosso dia-a-dia, mesmo sendo “de mentirinha”. É por isso que tem gente que dedica a vida todinha para analisar as consequências da proposta do Descartes; e é por isso que tem gente que dedica a vida todinha para analisar as consequências da gente impedir que pessoas usem os pés para acertar uma bola dentro de um aro exageradamente alto.
Levar muitíssimo a sério uma proposta “de mentirinha” é exatamente o que a gente faz nos esportes e, portanto, no nosso amado basquete. A partir de propostas simples e um conjunto de regras enxuto, começamos a ver consequências: descobre-se melhores modos de acertar a bola no aro, mecânicas de arremesso, gente começa a tentar enterrar, desenha-se jogadas, etc. Às vezes uma consequência não é agradável, tem um cara lá que dá infinitos tocos e está deixando tudo muito chato, então o que se faz? Assim como na Filosofia, basta MUDAR A PROPOSTA: altera-se uma regra, impede-se o toco em bolas na descendente, e aí mudam automaticamente as respostas e as consequências. Jogadores começam a mudar suas prioridades de treino, surgem arremessos para fugir dos tocos, defensores mais altos e atléticos, começa-se a buscar outros tipos de jogadores, e quando menos percebemos os impactos já estão bem longe das quadras, envolvendo ligas de base, treinamento de crianças, universidades, bolsas de estudo, ingressos, contratos e cifras milionárias.
A NBA certamente é um dos exemplos mais impressionantes e fascinantes de proposta levada às últimas consequências: atinge literalmente o mundo inteiro, muda vida de atletas, espectadores e blogueirinhos do outro hemisfério, movimenta bilhões de dólares e desperta sensações das mais diversas, da raiva à excitação, do ódio à empatia, da tristeza à euforia. Mas, dito isso, a NBA é de verdade? O que aqueles jogadores fazem, a nossa vibração, o dinheiro, fazem sentido? Fazem se as PROPOSTAS fizerem; pra quem não leva as propostas do basquete e da NBA a sério, tudo não passa de uma bobagem, uma alucinação. Para nós, que mergulhamos nessas propostas de corpo e mente, a NBA faz todo o sentido possível. Somos pessoas mais felizes por sermos possíveis de aceitar uma proposta fantasiosa como o basquete com tamanha intensidade.
Talvez essa seja a “habilidade” mais importante para a Filosofia e que todo fã de esporte tem, em algum grau: a capacidade de se entregar intensamente a uma proposta qualquer desde que ela seja bem apresentada, coerente e seja feita com rigor (ou seja, sem conter propostas contraditórias, sem ter consequências que contrariam as próprias propostas, etc. Serve como lembrete: Filosofia ruim, mal feita, é exatamente igual a um esporte cujas regras se contradizem: não faz sentido e não há motivo algum para acompanhar).
A gente se entrega tanto pra NBA porque ela é perfeitamente estruturada, tudo faz total sentido dentro daquilo que ela propõe; torneios esportivos que não terminam, que as regras mudam no meio, que times desaparecem de uma temporada para a outra, são muito mais difíceis de acompanhar e de levar a sério, claro. E essa entrega não significa acreditar que aquela proposta seja a ÚNICA QUE EXISTE: a gente ama a NBA sabendo que existem outros esportes e outros campeonatos igualmente válidos e coerentes, e muitos de nós acompanham vários esportes simultaneamente mesmo que a gente saiba que não dá para MISTURÁ-LOS. Dá pra gostar de futebol e de basquete ao mesmo tempo, mas não dá para querer julgar um esporte pelas regras dos outros, misturar os atletas ou as estratégias. Na Filosofia é exatamente igual: dá pra gostar de vários filósofos diferentes, das mais diferentes épocas, mas não dá pra misturar um com o outro, pegar uma conclusão aleatória de um e enfiar no pensamento do outro. As descobertas de um filósofo (e as estratégias de um time de basquete, por exemplo) só fazem sentido dentro DAQUELA PROPOSTA, então é preciso entender que elas existem numa espécie de mundo à parte.
Do mesmo modo, dá pra não gostar de um filósofo (ou de um esporte), achar as consequências chatas ou as propostas meio ridículas, e mesmo assim achar que ele FAZ SENTIDO, que as consequências são coerentes com as propostas. Não dá pra gostar de todos os esportes, não dá nem tempo de se entregar e mergulhar tanto em tantas propostas, mas não é por isso que os outros esportes são “quebrados” ou imbecis – ouso dizer que quase todos são coerentes, a ponto de que tanta gente tenha, por tanto tempo, dedicado suas vidas a eles. Posso listar uma infinidade de filósofos que eu não suporto, e a maioria deles ainda assim é absolutamente genial, coerente e suas obras são bem estruturadas. Enquanto leio, é tudo lindo, aquele mundo de faz-de-conta que a gente acaba sugado pra dentro. Mas tem coisa que a gente simplesmente não quer ler de novo.
Sou incapaz de diferenciar do ponto de vista prático, na minha vida, NBA e Filosofia. Para mim são duas instâncias de propostas que levamos, por pura fé, até às últimas consequências sem perder a noção de que são “apenas” propostas. Sentar sobre o texto de um autor e descobrir até onde vai seu pensamento se levarmos aquilo a sério é praticamente idêntico a vermos dois times se enfrentando na NBA levando profundamente a sério uma série de regras esportivas e salariais – e descobrir, a cada jogo, que dessas regras surgem sempre novas soluções, novas possibilidades, novas estratégias, novos talentos.
Talvez essa seja a coisa mais encantadora: saber que, já que podemos criar sempre novas propostas, nunca nos faltarão novas respostas, novas conclusões, novas possibilidades. Criamos o basquete porque as regras da vida comum não são suficientes; pensamos em novas propostas de pensamento porque existir sempre nas mesmas ideias não nos basta. E quando vemos algo do tamanho da NBA, dá sempre aquela emoção de ver que levar uma proposta até o seu limite é algo gigantesco que pode alcançar o mundo inteiro. Jamais devemos subestimar o poder do faz-de-conta e o impacto que ele acaba tendo no mundo. Duvida? Tente ficar alguns meses sem basquete e descubra a falta que faz apenas uma das muitas possibilidades que inventamos para nós mesmos.