🔒Contra o legado

Quando a primeira enterrada aconteceu num jogo de basquete oficial nos anos 30, o mundo ficou horrorizado. Técnicos afirmavam que enterradas eram uma demonstração de altura, não de habilidade, e que não deveriam ser usadas no esporte. Quando Joe Fortenberry foi campeão olímpico de basquete em 1936 nas Olimpíadas de Berlim enterrando algumas bolas, a comunidade esportiva internacional entrou com um pedido para que a altura dos atletas fosse limitada a 1,90m de modo a impedir que o esporte fosse “estragado” por esse tipo de lance. Durante muito tempo, cogitou-se aumentar a altura das cestas de basquete apenas para evitar as enterradas. Quando Kareem Abdul-Jabar começou a dominar o basquete universitário usando enterradas como parte fundamental do seu repertório ofensivo, a NCAA achou que a solução mais simples era proibir o lance, banindo enterradas do basquete universitário por quase uma década.

Com isso em mente, podemos imaginar o que passava pela cabeça dos jogadores de basquete entre os anos 30 e 70: enterrar poderia até ser a melhor e mais garantida maneira de pontuar, mas usar esse recurso colocava em risco a maneira como o jogador seria PERCEBIDO no esporte. Muitos jogadores achavam a enterrada algo “desrespeitoso” e tentavam até contundir de propósito aqueles que tentavam o lance; técnicos julgavam os jogadores que enterravam como “pouco habilidosos” e muitas vezes até mesmo “burros”; torcedores achavam a enterrada “bruta”, “deselegante”, e temiam pelo fim da técnica e pela supremacia da pura força bruta. Quando um jogador enterrava, portanto, precisava enfrentar não apenas as represálias reais que sofreria em seu time mas também a maneira como os torcedores – e o futuro – lembrariam dele. Seria considerado “desleal”? Perderia a chance de fazer parte do “Hall da Fama” do basquete por que seria lembrado por contar com sua altura ao invés de contar com sua “habilidade”?

Durante os anos 70, no entanto, a reação do público às enterradas começou a mudar. Em 1976 a proibição no basquete universitário ao lance chegou ao fim e a ABA (a liga de basquete que mais tarde se juntaria à NBA) realizou um pequeno “campeonato de enterradas” no intervalo do seu All-Star Game apenas como brincadeira. Julius Erving venceu a disputa com enterradas nunca antes vistas:

A NBA só foi ter seu próprio campeonato oficial de enterradas 8 anos depois, em 1984. Naquele momento as enterradas já faziam parte plenamente do imaginário popular e Julius Erving, sob a alcunha de “Doctor J”, já era inspiração para os atletas jovens e atléticos. Disputou a final do campeonato de enterradas com Larry Nance, perdendo o troféu e dando lugar para uma nova geração de atletas dispostos a transformar enterradas em arte. Dois anos depois, Spud Webb venceu o campeonato de enterradas com apenas 1,70m mostrando que mesmo os menores atletas podiam sonhar com esse tipo de lance. Quando Michael Jordan venceu o campeonato de enterradas em 1986 e 1987, suas enterradas já eram vistas como parte essencial daquilo que lhe tornava especial. O “maior de todos os tempos” enterrava sempre que conseguia – como algum reles mortal se atreveria a questionar esse tipo de jogada?

A História, então, começou a fazer o caminho REVERSO: passamos a olhar para o passado procurando aqueles jogadores dos anos 30 que enterravam, tentando resgatar seus legados. Joe Fortenberry, o campeão olímpico cuja carreira esteve sob custódia, foi tido como herói – os outros jogadores “mais comportados” de sua década praticamente desapareceram da memória. As enterradas de Kareem Abdul-Jabar passaram a ser vistas como ferramentas de resistência; a proibição da NCAA às enterradas passou a ser entendida como mero racismo, uma tentativa de impedir o domínio físico dos atletas negros da época. Aquele campeonato de enterradas de 1976 se tornou um marco, uma referência obrigatória para os fãs de basquete – todo torcedor já viu a lendária enterrada de Julius Erving da linha do lance livre, por exemplo.

Alguns acontecimentos – e alguns indivíduos – são tão importantes que acabam reescrevendo a História que veio antes deles. Joe Fortenberry não causou Julius Erving, o processo é quase contrário: Julius Erving foi tão incrível, suas enterradas tão sensacionais, que ele nos força uma reinterpretação do passado, nos força a caçar seus antecessores, nos faz traçar linhas causais que muitas vezes sequer estão lá. Isso é muito comum na arte, quando um autor é totalmente esquecido pelo seu tempo mas é resgatado décadas depois, às vezes séculos. Basta um autor recente fazer algo visto como genial e então começamos a procurar aqueles que fizeram coisas similares no passado – esses autores esquecidos passam, de repente, a serem os precursores, os “originais”, mesmo que o autor atual responsável pela mudança histórica sequer tenha ouvido falar desses precursores que agora ganham a alcunha de “desbravadores”.

Isso nos mostra que é impossível saber como seremos percebidos pelo futuro. Alguma coisa pode acontecer, muito depois de termos sido esquecidos, que nos “resgate” para a memória e nos atribua uma função central num movimento que, à nossa época, ainda sequer existia. A percepção do público pode mudar de uma hora para a outra e os valores podem ser todos trocados ou invertidos, tornando os perdedores subitamente vencedores. Enterradas eram vexaminosas, até que de repente se tornaram altamente desejáveis. Poderiam ser um critério para impedir alguém de ser celebrado, agora fazem jogadores não serem mais esquecidos.

É por isso que quando falamos sobre o legado de um jogador de nosso tempo estamos apenas perdendo nosso tempo. Fazemos exercícios imaginativos sobre como jogadores que vimos jogar serão percebidos por um futuro que certamente não usará as mesmas regras de interpretação que utilizamos hoje. Podemos até tentar encontrar alguns padrões (ver, por exemplo, que tipo de jogadores são aceitos no “Hall da Fama”) até que algum jogador ou evento surja e mude todos esses padrões. Antes da internet e da massiva globalização, seria impensável imaginar que um jogador como Yao Ming – que não foi campeão, só jogou 7 temporadas, só conseguiu 3 vezes jogar pelo menos 80 jogos e não teve números espetaculares – estivesse no “Hall da Fama”. Mas em nossos tempos, popularizar o basquete e abrir portas para os estrangeiros é tão ou mais importante do que conquistar títulos em quadra; os valores mudaram, então os critérios de admissão na elite do basquete também se alteraram. Tudo pode ser transformado por conta de um pequeno discurso, uma grande entrevista, um jogador marcante, ou por mudanças SOCIAIS, fora das quadras de basquete. Conforme novas gerações chegam ao mundo e escolhem diferentes valores como marcas de personalidade (muitas vezes tentando não repetir os mesmos modelos daqueles que vieram antes de si), maiores são as chances de que as regras mudem em todos os lugares da sociedade – incluindo, claro, no esporte.

Já comentamos por aqui sobre como Michael Jordan passou, ainda em vida, por uma forte mudança na maneira como é percebido pelo público. Sua mentalidade ultra-competitiva, seu jogo agressivo, sua obsessão por vencer e seu gosto por arremessos decisivos se tornaram o modelo de um jogador “vencedor”, o caminho que todos os grandes atletas deveriam trilhar. Ser um bom atleta deixou de ser importante; Michael Jordan fez com que as conversas fossem sobre quem era o “melhor de todos os tempos” e portanto as expectativas de atletas e torcedores foram totalmente transformadas. Chegamos aos anos 2000 submersos num forte discurso de que ou você é o melhor de todos ou você não é NADA. A sociedade, no entanto, passou a rejeitar esse tipo de mentalidade nas últimas décadas: adolescentes e jovens adultos falam cada vez mais em “felicidade” ao invés de “sucesso”; falam em escolher seus próprios caminhos ao invés de trilhar os passos vitoriosos de seus pais. Se antes era comum passar uma vida inteira num mesmo emprego – e em muitas culturas ser demitido era uma incrível desonra – agora as novas gerações querem pular de emprego em emprego, muitas vezes trocando completamente suas áreas de atuação de uma hora para a outra apenas para experimentar novas oportunidades. Vemos gente abrindo mão de garantias, direitos e segurança em nome de uma estranha sensação de liberdade, de escolha, de maleabilidade. Isso se reflete em novos modelos econômicos – financiamentos coletivos, como o do Bola Presa que nos permite seguir nosso sonho de escrever como desejamos, ao invés de nos submeter aos modelos da grande mídia esportiva tradicional, mas também trabalhos precários, sucateados, em que nada é garantido para ninguém, numa sensação de eterna fragilidade. Nesse cenário, Michael Jordan e sua obsessão tornaram-se até mesmo alvo de chacota – pesquisas mostraram que Jordan é mais reconhecido pela sua marca de tênis (e pela sua face icônica chorando) do que por seus feitos.

A Netflix acaba de anunciar para 2019 uma série documental sobre Michael Jordan em parceria com a ESPN. No trailer, Jordan afirma que quer que sintamos “as lágrimas que ele sentiu quando ganhou seu primeiro título”, e admite que essas lágrimas se tornaram um “vício”.

O documentário certamente tentará resgatá-lo para as gerações atuais, mas para que isso aconteça é preciso reinterpretar sua carreira a partir dos parâmetros modernos: ao invés de pintá-lo como uma máquina de ganhar, como ocorreu nos anos 80 e 90, é preciso “humanizá-lo”, mostrar suas dores, sua “dependência”. É preciso torná-lo o antecessor daquilo com o que as novas gerações se identificam hoje, dando pra ele novos sentidos numa geração que não quer mais vencer sozinha, que muitas vezes abre mão do ego para jogar com os amigos. O documentário precisa mostrar sua relação com Scottie Pippen, com a fragilidade, com o tédio, com a dor. Os tempos mudaram.

Quando dizem que um jogador está “prejudicando seu legado” porque não foi campeão, ou porque mudou de time, ou porque passou demais a bola, ou porque passou a bola de menos; quando dizemos que um jogador será esquecido porque se juntou com os amigos, foi para um time já campeão ou forçou uma troca; tudo que estamos fazendo é destilar nossa prepotência, nossa arrogância, nosso desejo infantil de que o futuro julgue os fatos com as mesmas lentes que utilizamos para ver o mundo hoje.

Entendo que antes jogadores que passavam suas carreiras inteiras em apenas um time eram valorizados, considerados “leais”, mas isso muda muitíssimo rápido: os jogadores se importam cada vez menos com isso, escolhendo o que mais lhes agrada, e aos poucos os torcedores passam a entrar na mesma chave. Vejo cada vez mais gente sendo finalmente capaz de comparar a situação dos jogadores com seus próprios empregos normais, com a liberdade de escolher que eles próprios gostariam de ter, e em breve os valores de “lealdade esportiva” serão tão ultrapassados que teremos que rever todo o passado. Buscaremos os jogadores que lutaram pelo direito ao “passe livre”, de escolher onde jogar, e resgataremos suas histórias: é o caso de Tom Chambers, o primeiro jogador a poder escolher onde jogaria após o fim de seu contrato, em 1988. Antes disso jogadores não podiam tomar escolhas sobre suas carreiras e se algum time os deixasse ir, precisava receber dinheiro de volta como “compensação”. Três décadas depois essa ideia é totalmente absurda e Tom Chambers tornou-se um marco histórico. Se na época ele parecia “desleal”, agora já nos parece um grande pioneiro.

Mesmo aqueles jogadores que parecem conversar com o futuro – gente como Kobe Bryant e LeBron James, que fazem todo o possível para serem lembrados como grandes, e que se preocuparam com a maneira como serão percebidos pelos fãs e pela mídia – não possuem qualquer ideia sobre como a percepção sobre eles será no futuro. Kobe já foi herói e já foi vilão; foi modelo de basquete vencedor e acusado de estragar seus times por ser “fominha”. LeBron já foi acusado de passar a bola demais e de passar a bola de menos; foi acusado de jogador sozinho e não vencer e acusado de se juntar com outras estrelas para vencer. Mesmo as derrotas de LeBron, que agora parecem manchar seu currículo, podem ser interpretadas no futuro como emblemas de que ele continuava tentando mesmo quando parecia impossível, marca de um vencedor, de um guerreiro, de um alienígena ou seja lá o que.

O futuro reescreve o passado e irá reescrever todas as nossas definições, os nossos valores e os nossos critérios que hoje julgamos ser eternos e imutáveis. É por isso que precisamos parar de pensar em “legado”, da mesma maneira que aparentemente tantos jogadores estão deixando de pensar quando tomam as decisões que lhes parecem mais adequadas em cada momento. Talvez LeBron fique no Cavs, talvez mude de time e de cidade, e nenhuma dessas escolhas lhe garante um legado específico. Talvez Kawhi Leonard fique, ou talvez seja trocado, e sua memória não está cravada. Grandes jogadores reescrevem o passado, e então são reescritos por outros acontecimentos que ainda virão. O que nos cabe e o que nos resta é aproveitar a NBA no presente: as decisões desses jogadores criam o cenário a que assistimos todos os dias, e é por isso que suas decisões nos importam. A maneira como elas serão lembradas é completamente incontrolável. Precisamos abandonar totalmente a ideia de legado: nossa memória está e sempre estará em constante mutação enquanto o presente se “expande” para todo o passado, construindo seus precursores à força quando interpreta o que aconteceu. Como disse Bertot Brecht, só nos cabe esperar que aqueles que vierem depois “lembrem-se de nós com piedade”. Todo o mais é inútil.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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