🔒Dennis Rodman, gênio e louco

O documentário “The Last Dance”, sobre a temporada 1998-99 do Chicago Bulls, supostamente seria sobre o título final de Michael Jordan e, para oferecer contexto para o campeonato, a carreira inteira de Jordan até ali. No entanto, não era possível falar desse título sem abordar os outros jogadores que fizeram parte dele – não apenas porque vários deles foram centrais para os títulos do Bulls, mas também porque muitos são personagens fascinantes. Por conta disso, o que não falta ao documentário são momentos épicos, figuras interessantes e acontecimentos inusitados que parecem às vezes fantásticos demais para serem verdade. Mas dentre eles, ninguém rouba mais a cena do que Dennis Rodman, apresentando no seu tempo limitado de tela um comportamento caótico que pegou de surpresa toda uma geração que sequer imaginava que um jogador assim fosse possível.


As conquistas de Dennis Rodman são impressionantes: dois títulos pelo Pistons em 1989 e 1990, outros três títulos pelo Chicago Bulls entre 1996 e 1998, prêmio de Melhor Defensor por dois anos seguidos e líder em rebotes por 7 temporadas consecutivas  – apesar de ter apenas 2,01 m de altura numa época em que os pivôs dominavam os garrafões e as disputas por rebotes eram acirradíssimas. No entanto, o talento de Rodman vinha acompanhado de sua personalidade: combativo e confrontador, não faltavam lances polêmicos, faltas técnicas, expulsões, cabeçadas em árbitros, brigas com técnicos e sumiços repentinos. Uma das passagens mais absurdas de todo o “The Last Dance” trata do pedido de Dennis Rodman para seu técnico Phil Jackson, no meio da temporada 1998-99, implorando por uns dias de folga para que ele pudesse curtir Las Vegas. Segundo a lenda, Phil Jackson aceitou o pedido e liberou Rodman por 48 horas – que acabaram se tornando múltiplos dias, até que funcionários do Bulls se viram obrigados a ir caçar Rodman e levá-lo de volta ao time, onde ele retomou seu papel no elenco como se absolutamente nada tivesse acontecido.

A anedota sobre sua escapada consentida soma-se à aparência extrema para a época (as tatuagens, os brincos, os piercings, o cabelo multi-colorido), às noitadas famosas com drogas e celebridades, aos relacionamentos relâmpago (com Carmen Electra e a Madonna, principalmente) e às suas declarações polêmicas para compor um personagem que parecia descontrolado, caótico, impossível de lidar. Essa figura do “jogador incontrolável” ocupa um lugar muito confuso no imaginário esportivo: por um lado ela é associada ao GÊNIO, à criatividade, ao inesperado, ao jogador imparável que encontrará maneiras nunca antes pensadas de derrotar seus adversários; por outro lado, ela também é associada ao jogador com o qual não se pode contar, que eventualmente deixará seus companheiros na mão, que não consegue seguir ordens, que tomará decisões equivocadas nos momentos importantes e que sucumbirá à pressão. Se nos primeiros minutos de jogo um jogador imprevisível e emocional é celebrado por todos, nos minutos finais o que se deseja é um jogador “frio”, calculista, controlado, cerebral, capaz de encontrar a resposta mais segura ao invés de inventar uma solução mirabolante totalmente nova. Relações semelhantes existem fora do imaginário esportivo, em que artistas são igualmente louvados por suas obras inovadoras e criticados por serem imprevisíveis e até mesmo perigosos (principalmente para si mesmos, como a imagem de Vincent van Gogh cortando a própria orelha tanto nos relembra), mas no esporte coletivo há um componente adicional que dificulta esse imaginário: companheiros de equipe que precisam saber se podem contar com cada um dos atletas que compõe o elenco. A coletividade cria uma espécie de aversão ao aleatório, porque o momento de caos, de loucura ou de criatividade pode ser perigoso não apenas para quem o realiza mas também para todo o restante da coletividade envolvida. Não é por acaso que coletividades como o exército, em que grupos de pessoas precisam lutar juntas (colocando, em geral, suas próprias vidas em risco), buscam uma padronização – de comportamento, de uniforme, de gestos, de modos de andar, etc. Basta pensar num pelotão marchando para se ter uma ideia de como aquilo que se busca nesses casos é um uníssono. Essa padronização costuma aparecer na forma de obediência irrestrita, o que também envolve figuras de autoridade que possam impor uma padronização.

A comparação entre esporte coletivo e exército não é nova. Existe uma série de estudos sobre como práticas esportivas são uma maneira de “controlar” os conflitos bélicos entre tribos indígenas, por exemplo, e a etiqueta da guerra sempre inundou mesmo os esportes coletivos modernos. O lendário técnico da universidade de Duke, Mike Krzyzewski (o popular “Coach K”), e filmes como “Coach Carter”, de 2005, consolidaram a ideia de técnicos duros, agressivos, que impõe uma rigidez militar capaz de matar qualquer traço de aleatoriedade e, com isso, alcançar muitas vitórias. É claro que todo time de basquete quer ter um jogador genial no seu elenco, mas se essa genialidade envolver um grau muito alto de descontrole ou imprevisibilidade, essa genialidade simplesmente não é bem-vinda. No imaginário geral, é preferível ter controle sobre cada um dos membros de um time (o que na maior parte das vezes implica na obediência à autoridade do técnico) do que contar com a genialidade de um indivíduo que pode eventualmente tomar uma péssima decisão num momento importante – seja escolhendo uma jogada errada, seja não aparecendo para jogar porque fugiu para Las Vegas, seja brigando com um árbitro e sendo expulso de um jogo, deixando seus companheiros na mão.

Isso explica o motivo de um dos melhores jogadores defensivos de todos os tempos – com nada menos do que 5 títulos totais durante sua carreira na NBA – ter tido um caminho tão complicado até o estrelato. Por ser imprevisível e ter dificuldade com seguir ordens, Dennis Rodman acabou expulso de sua primeira universidade, o que fez o interesse da NBA por ele despencar. Foi escolhido no draft apenas na segunda rodada, levou 5 temporadas para se tornar titular, foi trocado por praticamente nada do Pistons mesmo depois de já ter ganho dois títulos por lá e em seguida foi novamente trocado pelo Spurs por quase nada mesmo tendo média de mais de 18 rebotes por jogo em San Antonio. Os títulos só aconteceram no Pistons enquanto o técnico que estava na equipe, Chuck Daly, aceitou as loucuras de Rodman e colocou o jogador sob sua tutela, e no Bulls enquanto o técnico Phil Jackson entendeu que Rodman era um jogador diferente e que precisava ser tratado como tal – o que implicava em soluções inesperadas como liberá-lo para ir a Las Vegas ao invés de forçá-lo a se adequar às restrições da equipe.

O que Chuck Daly e Phil Jackson entenderam é que muitas vezes vale a pena para uma equipe apostar na genialidade de um atleta mesmo que isso implique necessariamente em uma alta dose de descontrole e imprevisibilidade. Ambos os técnicos compreenderam que apesar do comportamento e da aparência rebeldes de Rodman parecerem “caprichos”, eram na verdade respostas quebradas de uma formação quebrada: Rodman foi abandonado pelo pai aos 3 anos e expulso de casa pela mãe ainda na adolescência, cresceu sem nenhum tipo de apoio ou estrutura e nunca se sentiu acolhido, amado ou querido. É impossível louvar o fato de que isso transformou Rodman num sobrevivente, em alguém que luta duro e encontra soluções inesperadas e criativas, sem também aceitar que isso o transformou em alguém incapaz de se encaixar, de pertencer, de se adequar, de obedecer. Jogadores são pessoas, o que implica no fato de que são PACOTES COMPLETOS: não dá pra aceitar apenas as partes boas e jogar fora as partes ruins. É como dizem: a gente nunca sabe qual das nossas dores e defeitos serve de estrutura para as nossas melhores qualidades; tente arrancar à força uma dessas características pouco desejadas e é possível que todo o resto da estrutura venha abaixo, com tudo de desejável e de bonito que havia acima dela. O jeito único de Dennis Rodman jogar era também o que fazia com que ele tivesse um jeito único de se vestir; sua dificuldade de aceitar autoridades era também o que lhe fazia incapaz de aceitar derrotas e lhe levava a dar um jeito de vencer; sua vontade de eventualmente fugir para Las Vegas era também o que lhe permitia abordar cada jogo como se fosse o último; sua imprevisibilidade para os companheiros, que não sabiam se podiam contar com ele, era também o que lhe tornava imprevisível para os adversários, que não sabiam em que lugar da quadra ele estaria para conquistar um rebote. Se ele conquistou títulos e foi um dos jogadores cruciais para o Bulls de Michael Jordan foi porque ele foi aceito, pelo técnico e pelos companheiros, dentro de suas particularidades – algumas delas boas, outras ruins, num pacote único chamado Dennis Rodman.


O sucesso indiscutível de Rodman acabou abrindo caminho para muitos outros atletas “incontroláveis”. Allen Iverson, por exemplo, talvez nunca tivesse encontrado espaço na NBA dos anos 80, com seu estilo de jogo imprevisível, arremessos contestados e sua tendência a faltar nos treinos, mas o técnico Larry Brown seguiu a cartilha de Phil Jackson e eventualmente aceitou que as dificuldades e as genialidades de Iverson caminhavam juntas, permitindo que Iverson tomasse suas próprias decisões e chegasse às Finais da NBA. O mesmo vale para diversos outros atletas, dos menos importantes (como JR Smith, que encontrou um lugar como sexto homem a partir do momento em que os técnicos passaram a entender que seu estilo de jogo incontrolável poderia ser útil vindo do banco) até os mais famosos, como Rasheed Wallace, eventualmente campeão pelo Pistons depois de ser o recordista da história da NBA em faltas técnicas, ou Ron Artest, parte importante do título do Lakers em 2010 que passou um tempo escanteado da NBA após diversas polêmicas – que incluem participar da famosa pancadaria com torcedores rivais em 2004 e pedir uns meses de folga no meio de uma temporada para poder divulgar seu álbum de música.

Ron Artest, entretanto, é um lembrete importante de que a linha ideal entre aceitar um jogador “como ele é” e tentar ajudá-lo (ou forçá-lo) a se transformar não é fácil de determinar. É claro que a abordagem única de Artest em quadra estava relacionada à sua abordagem única de ver o mundo, o que incluía uma clara dificuldade em se adequar e seguir ordens. No entanto, havia algo de autodestrutivo em Ron Artest que ao invés de ser parte importante de sua criatividade apenas servia para bloqueá-la, impedindo que ele se sentisse bem o bastante para produzir em quadra. Aceitar as particularidades de Artest não significa ignorar sua depressão, por exemplo; após o título de 2010, Ron Artest ficou famoso por, num dos seus clássicos discursos apaixonados, confusos e muito cativantes, ter agradecido sua psiquiatra. Segundo ele, foi a psiquiatra quem permitiu que ele fosse ele mesmo – não apagando suas particularidades, mas ajudando com um sofrimento que lhe era incapacitante.

Se por um lado o mundo dos esportes (e das guerras) tem medo da loucura e da imprevisibilidade, por outro lado corremos o risco em lugares como a arte, por exemplo, de exagerar e supervalorizar a loucura, como se todo gênio precisasse ser transtornado, atormentado e em eterno sofrimento. Não é possível desassociar a genialidade de Vincent van Gogh de algumas de suas particularidades e dificuldades, mas suas principais obras são dos momentos em que ele estava saudável, não dos momentos em que ele estava doente e sofrendo – sem momentos como os que levaram o pintor a cortar a própria orelha, muito provavelmente ele teria sido um pintor ainda mais prolífero, com mais tempo e recursos para exercer sua criatividade.

Aceitar as necessidades particulares de Dennis Rodman, dado seu histórico traumático, não significa fazer vista grossa para seus momentos de sofrimento. O melhor exemplo disso se deu em 1993, quando após a saída do técnico Chuck Daly de Detroit e um término de casamento, Rodman pegou uma arma, parou seu carro no estacionamento do ginásio do Pistons e decidiu que se mataria – por sorte acabou pegando no sono e foi contido pela polícia, que o encontrou no dia seguinte. O grande feito de Phil Jackson não foi apenas “aceitar Rodman”, como se ele fosse um bloco concreto, quebrado e imutável, mas ajudá-lo a ser um bloco capaz de melhorar sua vida, sentir-se parte de uma família, conhecer seu valor e, com isso, não cogitar o suicídio. A dificuldade está em fazer isso sem anular o jogador, sem esganar seu gênio criativo. Ser gênio não precisa estar associado a sofrimento, da mesma forma que participar de um time não precisa significar abrir mão da própria identidade, das próprias soluções e, por que não, das próprias dores e dificuldades.

O que para alguns pode parecer apenas um momento humorístico em “The Last Dance”, já que a presença de Dennis Rodman é tão exótica e fora da curva que acaba por provocar riso, é na verdade a busca por encontrar um equilíbrio entre o coletivo e o individual, entre a criatividade e a loucura, entre a própria identidade e o sofrimento, entre adequar-se e manter-se. A dupla Phil Jackson e Dennis Rodman, buscando esse difícil equilíbrio – num processo de erros e acertos, de exageros e de descuidos – acabou ganhando 3 títulos consecutivos e abrindo com isso as portas para muitos outros atletas. Times querem ganhar, e sabem que a melhor maneira de fazer isso é não anular atletas geniais que, com os cuidados corretos, podem transformar franquias inteiras ao invés de tornarem-se apenas meros coadjuvantes. Se o clima militar dos times está caindo em desuso, e se a NBA está tão preocupada em cuidar da saúde mental de seus jovens (e geniais) atletas, é apenas porque Dennis Rodman deu esses passos malucos, estabanados, exóticos, e foi aceito – ao menos em algum grau – por times que foram campeões.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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