🔒Desafiando a arbitragem

Após um ano de testes na G League, a liga de “desenvolvimento”, a NBA finalmente implantou para essa temporada um sistema em que os técnicos podem desafiar a arbitragem ao julgarem que alguma marcação foi incorreta. Esses desafios, no entanto, são limitados: para começar, cada técnico só pode desafiar a marcação da arbitragem uma vez por jogo e para isso precisa antes pedir um tempo técnico, ou seja, uma das pausas tradicionais que cada time tem direito. Isso garante que o desafio só aconteça quando o jogo já está parado pelo pedido de tempo, sem precisar de uma paralisação adicional, mas também impede que times sem tempos técnicos restantes possam fazer o desafio. Em caso de desafio bem-sucedido – ou seja, quando os árbitros mudam de ideia ao serem desafiados – o time recupera o tempo técnico que usou para interromper o jogo, então o modelo apenas pune os times que já usaram seus tempos, em geral nos momentos decisivos das partidas.

Mas não é apenas a quantidade; aquilo que os times podem desafiar também é extremamente limitado: apenas em marcações de falta, marcações de bola saindo da quadra ou jogador pisando para fora, e em bolas na descendente ou interferências no “cone imaginário”. A pegadinha, no entanto, está no fato de que os técnicos só podem desafiar aquilo que os árbitros marcarem, não aquilo que eles NÃO marcarem. Então se os árbitros dizem que um jogador cometeu uma falta, pisou para fora, tocou uma bola na descendente ou colocou pra dentro uma bola que estava pingando para dentro do aro, um dos times pode solicitar um tempo técnico e pedir para que os árbitros revisem a marcação. Se os árbitros não apitaram nada disso, um time não pode desafiá-los a rever o lance e cogitar se deveriam ter marcado algo que não fizeram. Aquilo que os árbitros não viram ou não perceberam continuará sendo não visto; o que eles perceberam errado e APITARAM pode ser contestado e, em caso de CLARA EVIDÊNCIA de erro, revertido.

Toda a ideia desse sistema é impedir que as contestações tenham poder de parar um jogo – elas só acontecem quando o jogo já está parado por um apito do árbitro que marcou alguma coisa e um tempo técnico dá ainda mais tempo para que os árbitros revisem a questão. A intenção é interromper pouco o jogo e acelerar ao máximo as decisões, a ponto de que os árbitros da quadra só revisam de fato no monitor os desafios que envolvem faltas, caso em que o árbitro principal da partida precisa tomar uma decisão. Nos outros desafios – bola fora da quadra, bola na descendente, etc – não há interpretação possível: o Centro de Replay encontra os ângulos adequados e emite uma posição oficial, que é apenas transmitida para os árbitros em quadra sem que eles sequer tenham que olhar para um monitor ou pensar no que raios aconteceu.

Essa preocupação com minimizar as interrupções e o tempo de análise já faziam parte da implementação na temporada passada das revisões de jogadas através do vídeo, principalmente nos últimos dois minutos de cada jogo e prorrogação. Num post do ano passado para assinantes, em que debato as dificuldades da arbitragem nessa “era do vídeo”, listei as ocasiões principais em que a checagem via replay pode acontecer e reproduzo aqui para relembrarmos:checar se um arremesso foi de dois ou três pontos (para isso o jogo não precisa parar, basta ajustar o placar assim que o vídeo mostrar com certeza a natureza do arremesso)

– checar faltas que acontecem quando o tempo do quarto termina (já que não há jogo para acontecer depois, pode-se parar para analisar a jogada sem nenhuma dificuldade)

– se uma falta foi ou não flagrante (isso acontece porque a falta já foi marcada e não pode ser mudada, de modo que o jogo tem que necessariamente parar mesmo; com a pausa, os árbitros podem então analisar se a jogada foi desnecessariamente violenta, algo particularmente difícil de analisar em velocidade real na quadra, em que muitos contatos parecem mais fortes do que de fato foram)

– pancadaria entre os jogadores (porque o jogo precisa parar para impedir a quebradeira e os árbitros podem, com o vídeo, saber exatamente quem começou e quem participou da bagunça)

– quando o cronômetro DÁ PAU (já que o jogo precisa parar de qualquer maneira para arrumar o problema e o uso de vídeo garante que o cronômetro volte aos segundos exatos que deveria)

– se uma falta aconteceu num arremesso de dois ou três pontos (de novo, a falta já está marcada e não pode ser mudada, então a pausa já seria obrigatória e os árbitros podem aproveitar para garantir que o número correto de lances livres sejam cobrados)

– dúvidas sobre quem tocou numa bola que saiu da quadra (a bola sair da quadra já causa uma pausa, então os árbitros aproveitam para usar o replay; no entanto, como a dúvida é COMUM DEMAIS, convencionou-se usar o recurso apenas nos últimos 2 minutos dos jogos, o que seria o momento “decisivo” da partida)

– saber se uma cesta convertida foi arremessada antes do estouro do cronômetro (já que a cesta convertida causa uma parada natural no jogo)

– saber se um jogador que sofreu uma falta tinha ou não defensores entre ele e a cesta (outra vez a falta já foi marcada e não pode ser revista, de modo que a pausa é natural e pode ser aproveitada para decidir algo que os árbitros muitas vezes não conseguem ver com os próprios olhos por terem que seguir a bola)

– saber se uma falta marcada tinha o defensor dentro ou fora da área restrita (a sacada aqui está no fato de que de qualquer maneira será falta, então o jogo tem que parar; se o defensor estiver fora da área restrita, é falta de ataque, e se estiver dentro, é falta de defesa)

– se um toco foi dado numa bola na descendente (apenas nos últimos dois minutos de jogo, porque é uma dúvida frequente, e apenas se os árbitros marcaram a violação, não podem deixar a jogada rolar e voltar para checar depois)

Podemos perceber que, assim como acontece com os desafios que os técnicos podem fazer uma vez por jogo, existe um tema comum: a possibilidade de revisar jogadas que já foram marcadas porque o jogo já parou mesmo, o cronômetro já está parado de qualquer maneira, então não deveria atrapalhar o ritmo do jogo fazer uma checagem rápida no monitor. A realidade, no entanto, mostrou-se muito diferente do planejado.


Assim que surgiu o aviso de que os desafios dos técnicos seriam liberados na NBA, antes mesmo da temporada começar, vários técnicos da NBA recorreram aos técnicos afiliados da G League – isso porque as equipes possuem “filiais” na liga de desenvolvimento e existe uma troca constante de experiências sobre uso tático, jogadores e, agora, implementação de novas regras. Steve Kerr, técnico do Warriors, e Doc Rivers, técnico do Clippers, estão entre os técnicos que admitiram pedir dicas e orientações para seus filiados na G League que, supostamente, já tinham uma temporada inteira nas costas para sentir quando deveriam ou não usar os desafios. A resposta que voltou para ambos os técnicos foi idêntica: guardar os desafios para o quarto período. Isso porque no quarto final as jogadas são mais decisivas, um erro de arbitragem pode ser mais fatal (já que há menos tempo para arrumar o estrago causado por ele) e os próprios árbitros estariam mais preocupados com o impacto de seus erros e, portanto, mais propensos a mudar de ideia caso desafiados. Esse conselho não está de acordo com as análises estatísticas, que dizem que os técnicos deveriam pedir um desafio sempre que tiverem CERTEZA de que estão corretos já que uma jogada não tem mais impacto numérico no quarto período do que as jogadas que acontecem no primeiro. No entanto, o impacto psicológico é algo a se considerar, os times sentem que os danos são maiores no quarto período, e muitos técnicos tem tentado segurar seus desafios até o final dos jogos – muitos deles, inclusive, terminando partidas sem ter tido a oportunidade de pedir um desafio.

Até agora nessa temporada, apenas 7 desafios foram realizados no primeiro quarto – 6 deles desafiando marcação de faltas, provavelmente para impedir que algum jogador importante tivesse que sair com sua segunda falta no período. No segundo período já tivemos 26 desafios, no terceiro foram 33 e no quarto período foram incríveis 61 desafios, quase o mesmo número que os outros quartos SOMADOS. Não restam dúvidas de que independentemente da instrução da equipe estatística, técnicos sentem-se mais confortáveis de desafiar os árbitros quando o jogo está se aproximando do fim.

Temos dois problemas com essa abordagem, no entanto. O primeiro é sua EFICÁCIA: a ideia de que árbitros tenham mais receio de errar no quarto período e portanto mudariam mais facilmente de ideia caso desafiados não parece se comprovar em termos práticos. Os desafios realizados no primeiro quarto são aceitos pelos árbitros 57% das vezes, ou seja, eles mudam de ideia mais da metade das vezes. No segundo quarto esse número cai para 50% e no terceiro quarto desaba para 39%. Quanto mais o jogo se aproxima de seu final, menor a chance de um desafio ser bem-sucedido. No quarto período, momento em que os técnicos mais usam seus desafios, a taxa de sucesso é de míseros 31%. Seja por birra, seja porque árbitros só apitam aquilo que possuem mais certeza ou seja porque os técnicos estão desafiando QUALQUER MERDA só pra não “desperdiçar” um desafio, o que vemos é que é muito difícil fazer com que os juízes mudem de ideia nos momentos cruciais de um jogo.

O segundo problema de manter os desafios para o final, além da parte prática, é que o jogo passa a beirar o INSUPORTÁVEL. Precisamos lembrar que nos dois minutos finais dos jogos os árbitros já podem parar para revisar qualquer coisa que estejam em dúvida – desde que o jogo esteja parado por um apito. Isso quer dizer que os juízes já acompanham no replay automaticamente as dúvidas em bolas que saem da quadra, bolas na descendente, estouro no cronômetro, bolas de dois ou de três pontos, faltas flagrantes e outras jogadas mais. Quando somamos essas checagens com os desafios – possivelmente dos dois times, que guardaram os desafios para o final e tem que usá-los em qualquer bobagem para não morrer com desafio na mão – o que temos são muitos, muitos, muitos momentos de pausa e de replay justamente no auge de uma partida, quando estamos ansiosos para ver os momentos decisivos e chegar logo em um resultado.

Se a ideia era não interromper o jogo, permitindo checagens só quando o jogo já está parado, a possibilidade de checar qualquer coisinha besta nos momentos derradeiros acaba interrompendo os jogos de qualquer maneira. Não é uma interrupção tradicional – ninguém pausa o jogo só para tirar uma dúvida – mas quebra de qualquer maneira o ritmo do jogo. Não é acaso que os jogos da NBA, depois de um período em que se tornaram bem mais curtos – graças a uma série de iniciativas da NBA que envolveram menos paradas para televisão e tempos mais dinâmicos – voltaram a crescer consideravelmente. Em média as partidas dessa temporada estão durando 4.6 minutos a mais do que as da temporada anterior – há 25 anos os jogos não eram tão longos!


O tamanho dos jogos e a quantidade de desafios e checagens tenta dar conta de um desejo antigo dentro do mundo do esporte: A JUSTIÇA. Queremos a sensação de que o esforço, o treinamento e o talento serão recompensados, e não que possam ser prejudicados por um simples erro humano ou, pior, por algum ato de má fé. O esporte é nosso bastião incansável de justiça, o lugar em que as regras permitem que todos tenham as mesmas chances e que uma ordem seja regida de maneira impecável – no fundo, o esporte é o nosso MODELO de justiça, o lugar que serve de base para o tipo de ordem e equilíbrio que gostaríamos de ver no mundo. O que não falta nas redes sociais são pessoas sentindo que seu espaço seguro de justiça, o esporte, foi “destruído” ou “arruinado” por alguns erros de arbitragem, incluindo aí uma quantidade surreal de teorias de conspiração que tentam dar um sentido, um motivo para os erros: árbitros que odeiam algumas equipes, árbitros envolvidos com apostas ou um esquema global que favorece times específicos por serem mercados maiores, ou times mais vendáveis, ou qualquer outra bobagem do tipo.

Ver um erro ser revertido, ou seja, ver a justiça sendo feito – ou REIMPLEMENTADA – é para muitos um momento orgasmático, uma restauração da ordem intrínseca aos esportes. O problema é o preço que acabamos pagando por uma justiça que nunca pode ser total ou absoluta e que, na ânsia por TENTAR ser, corre o risco de estragar a experiência de quem acompanha o jogo.

Um dos meus casos favoritos foi um “case de sucesso” do modelo de desafio dos técnicos – e que, mesmo assim, funciona igualmente como um “case de fracasso” que nos permite questionar PARA QUEM essa suposta justiça é direcionada e a quem ela agrada.

O caso em questão: com 9.4 segundos faltando para o término de Blazers e Mavericks, em Dallas, a equipe de Portland vencia por apenas um ponto. A posse de bola pertencia ao Mavs, Doncic errou um arremesso de três pontos, Finney-Smith pegou um rebote de ataque e, tentando uma cesta desesperada, sofreu uma falta de Damian Lillard. O armador do Blazers saiu correndo para o banco de reservas e avisou seu técnico, Terry Stotts, de que ele havia tocado exclusivamente na bola e que portanto seria possível desafiar a arbitragem. O problema é que esse era o último tempo do Blazers e caso o desafio não funcionasse, o time teria gastado seu tempo e não poderia usá-lo para avançar a bola nos segundos finais do jogo. Lillard foi emblemático, jurou que não tinha feito falta nenhuma e um Stotts meio incrédulo acabou pedindo o desafio. Pois bem, os árbitros revisaram a questão (por longos minutos) e chegaram à conclusão de que não havia sido falta mesmo.

 

Mas é aqui que começa a bagunça. Se não houve falta nenhuma, o que fazer com a paralisação que ocorreu? Na prática, seria como se no meio de uma jogada em que nada aconteceu um árbitro tivesse apitado – o que, aliás, pode acontecer se o árbitro for desastrado ou tiver SÉRIOS PROBLEMAS DE RESPIRAÇÃO. Nesses casos de apito aleatório, o jogo deve ser retomado com uma bola ao alto, que foi o que ocorreu. No ginásio, no entanto, ninguém entendeu BULHUFAS: vibraram com uma falta, aí de repente não tinha lances livres, tinha uma bola ao alto no meio da quadra. Ninguém entendeu se tinha sido falta ou não, por que havia uma bola ao alto e, se a falta tinha sido cancelada, ninguém sacou os MOTIVOS para isso. Ao fim do jogo, o dono do Mavs, Mark Cuban, correu para xingar muito no Twitter: alertou que se não houver uma explicação sobre as decisões da arbitragem, inclusive explicando as razões deles terem mudado de opinião, ninguém vai entender nada.

O desafio funcionou para entregar justiça a Damian Lillard e ao Blazers, mas alienou completamente a torcida, que não entendeu nada, não sabia o que estava acontecendo, e teve que esperar por uma longa pausa num jogo que já tinha passado por sua dose de pausas. Ao final, a torcida não estava insatisfeita por ter perdido o jogo; estava CANARINHO PISTOLA por ter tido uma experiência ruim, chata, monótona e confusa com o esporte. Perder um jogo por um erro de arbitragem faz absolutamente parte do esporte como o conhecemos: quando Damian Lillard tenta roubar uma bola dentro do garrafão a 9 segundos do final enfiando a mão inteira na bola sob posse do adversário, ele está profundamente ciente de que isso pode – e geralmente é – compreendido como uma falta, e precisa se adequar a isso, utilizando opções mais seguras se julgar que o risco não vale a pena. Tentar acabar com esses riscos, em busca de uma interpretação absolutamente LIMPA das regras, por sua vez, cobra um preço: jogos são mais longos, o ritmo é comprometido, os dois minutos finais de jogos importantes são um martírio e o público fica de fora, alienado, muitas vezes incapaz de entender o que está acontecendo – ou capaz, mas completamente desinteressado. Simplesmente não é DIVERTIDO ver árbitros interpretando se algo é falta ou não assistindo mil ângulos de câmera; o esporte é o basquete, não sua arbitragem. Caso contrário, veríamos campeonatos de arbitragem, dando medalhas para quem for capaz de arbitrar melhor lances polêmicos a olho nu.

O técnico Steve Kerr, um dos maiores críticos dessa “cultura do replay”, é categórico ao dizer que, para ele, revisões de lances nos monitores só deveriam acontecer no estouro do cronômetro ao fim de cada quarto, se necessário. Sua justificativa é simples: “nunca ganhamos ou perdemos por conta de árbitros, então para que essa busca pela perfeição? Estamos tentando algo impossível e acho o ritmo do jogo muito mais importante.”

A preferência pelo ritmo de jogo é, no fundo, um juízo estético. Alguns torcedores podem preferir um jogo mais “justo” porém mais lento, com mais pausas. Mas Steve Kerr tem um ponto que está além de debates: estamos tentando algo impossível. A justiça absoluta que nos falta na vida, no dia-a-dia, não virá a nós por meio do esporte. Mesmo com monitores e câmeras cada vez mais modernas, lances são subjetivos, difíceis de julgar e de interpretar; erros continuam sendo cometidos, interpretações continuam sendo polêmicas, seres humanos continuam sendo seres humanos. Mas insistimos em uma arbitragem ideal, sem perceber que essa busca cobra um preço maior do que o resultado que oferece. No quarto período, apenas 27% dos desafios de falta levam os árbitros a mudar de ideia, como ocorreu no caso de Lillard. É um número tão pequeno que talvez não justifique o tempo que perdemos com 73% das vezes em que os desafios não dão em nada. Se queremos melhorar o esporte, talvez não seja no campo da justiça; talvez seja a hora de pensarmos mais na experiência do público que está assistindo ao redor do planeta.

 

 

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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