Na temporada 2004-05 não havia assunto mais debatido e polêmico do que o Phoenix Suns. O time terminou com a melhor campanha da temporada (foram 62 vitórias) e, sob comando do armador Steve Nash, ostentava o melhor sistema ofensivo da liga. Para a gente ter ideia, o Suns não apenas era o líder isolado em pontos a cada 100 posses de bola (a melhor maneira de se medir a produtividade de um ataque) mas também estava QUINZE PONTOS à frente do último colocado. Como um ataque tão dominante poderia ser polêmico? Aí é que está a pegadinha: não é o que o Suns fazia, mas COMO o Suns fazia que gerava alguma discussão.
Naquela temporada, Mike D’Antoni já tinha estabelecido plenamente o princípio de “7 segundos ou menos”, a ideia de que os melhores arremessos de um time são dados nos primeiros 7 segundos de cada posse de bola. Isso contraria não apenas o senso comum mas também toda a história do basquete, em que se levava tanto tempo para criar jogadas e construir situações boas para se pontuar que foi até necessário criar um limite de 24 segundos para isso. Ignorar que você tem 24 segundos inteiros para achar uma jogada melhor (um número que é até maior no basquete universitário, onde supostamente os jovens atletas precisam de mais tempo para se organizar) é contrariar todo o modelo de basquete que foi construído por gerações.
É claro que Mike D’Antoni não foi o primeiro a colocar na mesa a importância de um jogo veloz: diversas equipes jogavam rápido nos anos 80, especialmente em contra-ataques, e o técnico Don Nelson tinha feito fama especialmente no começo dos anos 2000 comandando um Mavs – e posteriormente um Warriors – que tinham como pauta correria e liberdade ofensiva. Esses experimentos, no entanto, sempre foram periféricos ou vistos com ressalvas; correria nos anos 80 tinha hora e lugar, ou seja, em contra-ataques mas não em qualquer posse de bola, por exemplo. Já os times de Don Nelson, que aceleravam o jogo o tempo inteiro, sem nenhum critério de restrição, eram vistos como piadas, times sem disciplina que remetiam às equipes de rua, não ao jogo sério e organizado da NBA. Vale ressaltar que em 2003 e em 2005 o Spurs foi campeão com um jogo lentissimo, super cadenciado, e uma defesa de elite, enquanto em 2004 o campeão foi o Detroit Pistons e sua lendária defesa, uma das melhores de todos os tempos. Podemos dizer com tranquilidade que esse período entre 2003 e 2005 foi o auge do apreço por defesas na NBA, o que curiosamente levou a audiência a despencar e fez com que o comissário David Stern fizesse mudanças nas regras para ajudar o ataque – algo que é assunto para outra hora.
É justamente nesse período em que a defesa era associada com times vencedores que o Suns de Steve Nash e Mike D’Antoni existiu, dando total ênfase para o ataque e querendo bolas arremessadas, se possível, nos primeiros 7 segundos do cronômetro. Enquanto isso, o Dallas Mavericks tentava na temporada 2004-05 se livrar da imagem risível trazida pelo técnico Don Nelson, substituindo sua mentalidade ofensiva pelo trabalho defensivo de Avery Johnson. O Mavs ainda se manteve entre os 4 melhores ataques daquela temporada, mas saltou para a nona melhor defesa. O mundo ainda desconfiava das chances reais de título daquele Mavs, levado demais pelo seu ataque e comandado por um Dirk Nowitzki longe de ser consagrado – na época, era criticado demais por suas limitações defensivas – mas parecia ter feito as concessões necessárias para acalmar o público. O time pelo menos tentava defender e tinha um ataque mais lento e organizado do que nos tempos de Don Nelson, ou seja, parecia estar tentando se adequar às tendências da época. O Suns, por sua vez, não estava tentando se adequar a coisa nenhuma: com a décima sétima melhor defesa e um ataque que cuspia na tradição, é fácil de entender o motivo do time ser divisivo: ou você amava a ousadia, ou achava aquilo inconsequente e incapaz de conseguir resultados reais.
Nas semi-finais dos Playoffs de 2005, eis que os dois times se enfrentaram: Phoenix Suns de um lado, com mando de quadra, e Dallas Mavericks do outro. Eram dois ataques incríveis, Steve Nash e Dirk Nowitzki (antes companheiros em Dallas) se degladiando, e uma questão de modelo a se resolver na faquinha: vale a pena fazer concessões ou é melhor mergulhar de cabeça, radicalmente, naquilo que um time faz de melhor? A resposta foi enfática, com o Suns fechando a série em 4 a 2 e seguindo para as Finais da Conferência Oeste. Quando escolhemos o Jogo 5 entre as duas equipes para comentar em nosso FilmRoom, nossa ideia foi mostrar como essa resposta se deu – e como ela iria influenciar toda a NBA, ainda que com muitos anos de atraso.
Talvez a jogada mais emblemática para mostrar a diferença entre os ataques das duas equipes seja essa aqui, que destaquei abaixo:
Aqui vemos Jerry Stackhouse, um dos principais pontuadores do Mavs, contornar um corta-luz, receber a bola de frente para a cesta no perímetro, receber um corta-luz, recusá-lo, e aí acertar um arremesso difícil, girando e contestado. Esse aí é o arremesso que toda estrela estava acostumada a dar, mesmo com jogadas elaboradas: a ideia era colocar a bola na mão de alguém que sabe decidir e construir algum espaço para ele se movimentar contra a marcação. Mas assim que ele converte a cesta, Steve Nash já pede a bola (reparem como ele está afoito, porque já viu o espaço para a jogada que irá executar), consegue um passe de quadra inteira para Shawn Marion nas costas da defesa e o Suns conquista uma cesta que levou exatos TRÊS SEGUNDOS no relógio de arremessos.
Se a bola voltasse lentamente para o ataque, Shawn Marion nunca estaria livre, porque a defesa estava se restabelecendo após a cesta. Ao acelerar o jogo, o Suns conseguiu uma cesta muito mais fácil, e até aquele momento algo impensável – contra-ataques deveriam vir de roubos e desperdícios de bola, não de cestas convertidas pelo adversário. A partir desse ponto no jogo, a defesa do Mavs passa a se desesperar para voltar cedo para o próprio garrafão, o que destrói qualquer possibilidade de rebotes de ataque e mesmo assim não é o bastante para enfrentar o ataque do Suns – voltar correndo e desesperado é um excelente modo de se atrapalhar e errar o lugar em que você deveria estar.
O ataque do Suns que vemos nesse jogo – que marcou 114 pontos nessa partida de pós-temporada contra uma defesa Top-10 e iria marcar 130 no próximo jogo, o que fechou a série – não está correndo apenas por correr, não é um princípio inabalável como eram os times de Don Nelson. O princípio básico está em dar bons arremessos em que a defesa esteja atrapalhada, e isso pode ser conquistado de maneiras bem simples ao invés de jogadas muito trabalhadas. Às vezes isso significa correr, mas nem sempre.
Ao contrário do que se imaginava na época, coisas muito simples acabam fazendo o Mavs se atrapalhar inteiro e geram cestas fáceis para o Suns mesmo sem ser em contra-ataques. Um dos meus exemplos favoritos é essa jogada que eu destaco aqui:
O que temos é um corta-luz muito simples que permite a Steve Nash infiltrar, mesmo que ele não tenha espaço real para tentar uma bandeja. Nash poderia, na ausência desse espaço, tentar acionar o jogador que fez o corta-luz, Amar’e Stoudemire, o que seria um pick-and-roll, mas esse passe está bem marcado. O que Nash faz, então, é soltar a bola para alguém no perímetro que não está livre e aí – olha que mágico – Nash continua se movendo. Como a participação dele na jogada parece que terminou e seu defensor está lá dentro do garrafão, Nash consegue chegar no perímetro livre, receber a bola e dar um arremesso sem contestação. Vejam se não é EXATAMENTE o que Stephen Curry ficou famoso por fazer nos últimos anos vitoriosos do Golden State Warriors. Bastou uma infiltração, um passe pra fora e movimento contínuo e a defesa do Mavs virou poeira.
Selecionei outra jogada simples e também incrivelmente atual abaixo:
Ainda no meio da quadra, em cima do logo, Steve Nash recebe um corta-luz de Shawn Marion. Pra que isso, já que tão longe da cesta Nash não é um perigo real (numa época em que, pasmem, não se arremessava de tão longe)? O corta-luz inofensivo é o suficiente para em 4 segundos de posse de bola Nash estar sendo marcado por Dirk Nowitzki, não apenas o pior defensor adversário mas também alguém que está marcando um oponente menor e mais rápido do que deveria. Isso aí já era uma chance de cesta, mas Nash prefere receber um corta-luz de Amar’e e, se aproveitando das dificuldades de Nowitzki, acionar seu jogador de garrafão. A jogada não dá certo, mas Nowitzki fica tão fora de posição com essa bagunça que o Suns consegue pegar um rebote ofensivo, devolve para Nash e, marcado OUTRA VEZ por Nowitzki, o armador do Suns só arremessa de três pontos na cara dele mesmo.
Toda a parte do pick-and-roll com Amar’e é obviamente desnecessária, porque um arremesso do Nash na cara de Nowitzki já é o melhor arremesso que se pode conseguir numa quadra de basquete. O Suns de Nash ainda tinha receios de forçar arremessos demais, coisa que já não existe mais: quantas vezes você já viu jogadores receberem um corta-luz simples no meio da quadra, serem marcados pelo adversário errado e aí só darem um arremesso de três para se aproveitar dessa troca de marcação? Se essa jogada for proibida, acabou a carreira de James Harden, por exemplo.
Percebam com isso que a jogada inteira pode acontecer sem que a bola tenha que sair das mãos do armador, ou seja, sem que a bola rode de um lado para o outro na quadra em busca de espaços – o espaço é criado na hora, na lata, sem enrolação, com um único corta-luz. E se não estiver funcionando, que tal usar DOIS? Vejam isso aqui:
Nash recebe dois corta-luzes, um de Shawn Marion e outro de Amar’e, e aí não tem jeito, é MUITO ESPAÇO entre ele e seu marcador, outra vez o coitado do Dirk Nowitzki. Como pessoa sensata, Dirk sabe que só resta a ele tentar impedir uma bandeja, e aí Nash faz o arremesso de meia distância mais fácil do mundo.
A jogada é tão simples e tão eficiente que nesse quarto período, a menos de 5 minutos do final e com o Mavs ameaçando encostar no placar, o Suns faz essa jogada QUATRO VEZES SEGUIDAS. A primeira é a que vimos acima; a segunda é praticamente idêntica, com Nash acertando um arremesso igualzinho da mesma distância. Na terceira vez, aí Dirk sabe que tão fazendo ele de OTÁRIO e resolve que precisa grudar em Nash antes da coisa toda acontecer. Vejam o resultado:
Nowitzki grudou em Nash? Então Amar’e está livre dentro do garrafão ou sendo marcado por alguém muito menor, que só consegue no máximo cometer uma falta. Na quarta vez, Nash se empolga e tenta um passe mais rápido pro Amar’e, que é desviado, mas nesse momento os 6 pontos seguidos numa jogada tão simples já tinham praticamente encerrado o jogo e acabado com o cérebro do Nowitzki. Na jogada abaixo, dá pra ver que ele tenta proteger o garrafão depois do corta-luz, abandona o perímetro por completo e aí o Suns passa a bola até achar alguém livre na zona morta:
A jogada acima é muito interessante porque mostra como jogadas simples e rápidas vão minando a força mental do adversário. O defensor precisa o tempo todo prever a jogada, antecipar o que vai acontecer e fazer ajustes, mas quando você faz algo assim está dando uma cesta ou um passe simples em outro lugar, basta que o time atacante consiga ver.
O ataque elaborado do Mavs teve que suar para fazer cestas nessa série, enquanto o Suns faz coisa fácil atrás de coisa fácil. Foi só nas Finais da Conferência Oeste, quando o Suns foi enfrentar a melhor defesa disparada daquela temporada, o San Antonio Spurs, que esse ataque passou a sofrer e foi derrotado por 4 a 1 na série. Foi a pá de cal final na ideia de que um ataque como o do Suns poderia ser bem-sucedido na NBA, e mais um momento de glória para as grandes defesas. O Suns eventualmente virou uma piada junto com D’Antoni, símbolos de um ataque incapaz de ganhar títulos.
O problema é que aquele Spurs era especial, um dos melhores times de todos os tempos, uma defesa impecável e um ataque eficiente, então não era necessariamente uma questão do estilo ou da filosofia do Suns, mas sim da qualidade do adversário. Como podemos ver nesse jogo e nos vídeos que separei acima, toda as ideias ofensivas do Suns foram resgatadas eventualmente, e levadas a extremos ainda mais drásticos, simplesmente porque eles faziam sentido. O que era a aberração dos anos 2000 é, agora, o padrão da imensa maioria das equipes da NBA, a ponto de que esse Suns de 2005 teria que suar, na temporada 2019-20, para manter o posto de melhor ataque – nesse momento, pelo menos duas equipes fazem mais pontos a cada 100 posses de bola, com algumas outras ameaçando chegar lá também. Hoje, a essa mentalidade do ataque do Suns somou-se o foco nas bolas de três pontos e a falta de receio em arremessos no mano-a-mano que teriam levado aquele time de Nash a outro patamar. De todo modo, o que interessa é que o Suns não ganhou nenhum título nos anos 2000, mas influenciou o basquete como se tivesse ganhado – só demorou um pouquinho mais para a NBA perceber o que havia ali de aproveitável após o auge das defesas eventualmente perder seu encanto.