Quando a temporada da NBA foi paralisada pela pandemia do novo coronavÃrus, Markelle Fultz correu para a internet. Com o basquete parado bem no meio de sua melhor fase na carreira, o armador do Orlando Magic não quis perder o tão buscado embalo e tentou manter a boa forma com uma tabela de basquete que encontrou no Walmart. “Montar foi o mais difÃcil”, disse. “Nunca imaginei que montar uma cesta fosse tão difÃcil. Percebi que depois daquilo as coisas só poderiam melhorar”.
O território não era novo para Fultz. Ficar meses longe do basquete, treinar sozinho e passar por dificuldades bizarras parece ter sido o padrão da sua carreira desde que foi o primeiro selecionado no Draft de 2017. Já falamos muito sobre ele no passado, mas para quem não lembra ele é o cara que esqueceu como arremessa. O cara que tinha uma lesão que nunca conseguiam encontrar ou curar. E o cara que o Philadelphia 76ers mandou para o Orlando Magic para não precisar mais lidar com o problema. Depois de dois anos muito confusos e com mais dúvidas que respostas, onde vÃdeos secretos dele arremessando um lance-livre eram meticulosamente analisados internet afora, essa temporada era para ser um recomeço. Sem dores, em um lugar novo, com pouca expectativa e um time disposto a dar tempo de quadra pra ele, era como se Fultz fosse um NOVATO em seu terceiro ano de NBA.
Não podemos chamar a temporada 2019-20 de normal para ninguém, mas para Fultz foi o mais próximo disso que ele já experimentou. Ele jogou 64 dos 65 jogos do Magic e sua única ausência não foi por lesão, mas por uma pontual dor de barriga. Depois de começar como reserva, foi promovido ao time titular no seu sexto jogo e de lá não saiu mais. Com média de 29 minutos por jogo, finalmente pudemos ver e analisar um novato normal, com qualidades, defeitos, momentos empolgantes e muito a melhorar. Como ainda tem 21 anos de idade, será que conseguimos ignorar as duas temporadas traumáticas e a empolgação do Draft e só analisar um jovem jogador começando a ter mais chance e protagonismo entre gente grande? Vamos tentar.
Começamos com os arremessos, o grande drama dos últimos anos para o armador. Ao analisarmos seu mapa de chutes vemos que ele segue bem longe da linha dos 3 pontos, onde tenta pouco e erra quase tudo. Apenas 13% dos seus chutes são de longa distância, quase um dos últimos entre todos os jogadores de sua posição na temporada. A maioria das suas tentativas são atacando a cesta, próximos ao aro, onde tem aproveitamento próximo da média da NBA.
Mas ao analisarmos mais de perto essas bandejas de Fultz vemos que elas são mais difÃceis do que deveriam ser. A culpa muitas vezes é da falta de poder de fogo do Magic, especialmente na linha dos 3 pontos. O time é embolado e as defesas não respeitam muitos de seus arremessadores, fazendo o garrafão ficar lotado o obrigando qualquer um que entrar lá a fazer malabarismo para finalizar. Às vezes ele consegue, mas claramente não é o ideal. No lance abaixo contra o Cleveland Cavaliers vemos defensores formando um paredão no garrafão enquanto deixa arremessadores livres. Um tratamento digno de Giannis Antetokounmpo, mas Fultz não é o MVP da NBA e não tem os arremessadores do Milwaukee Bucks para passar a bola:
O lance acaba com Fultz dando um arremesso da cabeça do garrafão, a opção que sobrou. Mas não é como se ele pudesse reclamar muito, já que no mesmo jogo ele também foi o responsável por encurtar o campo para seus companheiros. Veja como o Cavs o ignora na linha dos três pontos, fecha a porta para os atacantes do Magic e deixa Fultz livre para TIJOLAR uns arremessos de 3 pontos. Se Aaron Gordon não ajuda Fultz, o contrário também é verdade:
Com dificuldade para atacar a cesta e sem bola de 3 pontos, Fultz aposta demais também nos arremessos de meia distância. Em uma jogada usada a exaustão, o técnico Steve Clifford coloca Gordon e Nikola Vucevic na cabeça do garrafão (fazendo o famoso “chifre”) e deixa Fultz escolher um lado para um arremesso da altura do lance-livre, geralmente sem qualquer marcação. Outra opção é um handoff com Vucevic na diagonal da cesta, uma opção que à s vezes até vira infiltração se houver espaço. É claro que Daryl Morey ficaria enojado de ver, mas o armador parece confortável nos chutes dessa distância. Bem ou mal, faz parte de seu repertório:
Mas onde Fultz realmente brilha é na transição. Seu controle de bola é muito acima da média e ele parece ter muito mais facilidade para finalizar suas bandejas quando chega no garrafão em velocidade, sem contar que o espaço para isso é muito maior do que quando o Magic executa seu enferrujado ataque de meia quadra. E se o time pulou da VIGÉSIMA QUINTA posição em pontos por posse de bola na temporada para ter o MELHOR ATAQUE nos últimos 12 jogos antes da parada, muito disso tem a ver justamente com a velocidade do time e o jogo de transição.
Ao longo da temporada o Magic disputou em média 98,2 posses de bola por 48 minutos, o terceiro time mais lento de toda a NBA. Nessa fase de melhor ataque da liga o time subiu para 101,8 posses por jogo, 12ª posição no ranking das equipes. Para acelerar o jogo não tem muito segredo: deixar menos gente brigando pelos rebotes defensivos, mandar alguém sair correndo nas alas e entregar a bola na mão de alguém que seja criativo e veloz o bastante para botar fogo no jogo. E é aà que Fultz entra: a adaptação deu mais protagonismo a Fultz, que subiu sua média de pontos de 12 para 16 por partida nessa boa fase. Não à toa ele fez ótimas partidas contra Minnesota Timberwolves e Houston Rockets, dois times com problemas na transição defensiva. Ele deitou e rolou:
Por mais animador que tenha sido o fim de temporada de Fultz no setor ofensivo, seus problemas seguem os mesmos. É legal que o Magic tenha encontrado mais maneiras de colocá-lo em posição de pontuar, mas para saltar para os 18 ou 20 pontos por jogo dignos de alguém que realmente é o rosto de um ataque, é preciso que ele seja irrepreensÃvel nos arremessos de meia distância, algo no nÃvel Khris Middleton, ou que desenvolva mais seu chute de longa distância ou que ao menos vire uma máquina de bater lances-livres. Ele não só não é muito de cavar faltas como à s vezes até as evita. Tal como Lonzo Ball, muitas vezes o armador foge do contato para não precisar ir lá mostrar que só acerta 73% dos tiros livres, marca bem fraca especialmente para um jogador de perÃmetro. Mas aqui vale olhar com otimismo, na temporada passada ele acertou shaquillionÃsticos 53% de seus lances-livres. Há uma enorme evolução em andamento! E sua visão de jogo está aà para todo mundo ver, ele sabe enxergar a quadra e dar passes mesmo que seja alguém mais focado em pontuar do que criar. Se acabar se tornando um grande pontuador e se tiver melhores arremessadores no seu entorno deve crescer também nas assistências. Vimos isso especialmente no jogo contra o LA Lakers, seu melhor na temporada: 21 pontos, 11 rebotes, 10 assistências com bônus de bandeja na base da força sobre LeBron James (em um contra-ataque, claro!) e a bandeja da vitória a 40 segundos do fim!
Markelle Fultz's (21 PTS, 11 REB, 10 AST) 2nd career triple-double pushed the Orlando Magic to the win over the Lakers at Staples Center! ✨ pic.twitter.com/U4chF9LV9U
— NBA UK (@NBAUK) January 16, 2020
A cobrança por um arremesso parece cansativa, mas nesse caso é ainda mais necessária do que com outros jogadores que sempre ouvem a mesma ladainha. Ben Simmons parece se virar bem mesmo sem esse recurso por ser um mestre dos contra-ataques e desde já um dos melhores defensores da NBA, o mesmo que vale para Giannis Antetokounmpo. Ambos também são bons se movimentando sem a bola e acham caminhos para pontuar perto da cesta, à s vezes até atuando como pivôs. Só que Fultz não tem o tamanho deles, não tem a força fÃsica e muito menos a versatilidade defensiva. Ele tem seus momentos na marcação, mas não chega a dominar. Isso quer dizer que Fultz acaba SUMINDO dos jogos quando não está com a bola na mão. E precisa ser mais dominante ofensivamente para ganhar o privilégio de virar quarterback e sempre comandar os lances no ataque.
CrÃticas a parte, já é uma vitória estarmos aqui fazendo comentários normais sobre seu jogo. Fultz correu sério risco de virar um COMBO DO DESASTRE, unindo em uma só diversas histórias tristes de jogadores escolhidos no topo do Draft: ele tem um pouco de Greg Oden se considerarmos sua (estranha) lesão, também um pouco de Anthony Bennett pelo risco de uma carreira curta e que logo virou piada e até um quê de Kwame Brown se considerarmos o quanto sua insegurança e sua saúde mental pesou na hora de lidar com a pressão e as dificuldades dos primeiros anos de profissional. Os momentos mais animadores de Fultz em quadra nem foram seus arremessos certos ou dribles bonitos, mas aqueles em que ele parecia à vontade em quadra. Seja celebrando uma cesta, fazendo uma cara de marra depois de uma jogada difÃcil ou mesmo sorrindo após um golpe de sorte. Pela primeira vez em três anos, vimos momentos de Fultz se sentindo um jogador da NBA. É o primeiro passo.
No quintal de casa, com sua cesta montada por conta própria e jogando sozinho, Fultz disse que jogava todos os dias na quarentena por horas e horas e que “se sentiu de novo uma criança” fazendo treinos básicos e ouvindo música. “É como meditar, só entrar em quadra e me divertir”. E só quando a NBA ficou mais próxima de ter uma data de retorno que Fultz afinou seus treinos com lances e arremessos mais próximos daqueles que ele costuma fazer nas partidas. Não sei se foi uma decisão racional, mas esse exemplo é o equilÃbrio que ele precisa para o resto da carreira. Alguns casos de lesão peitoral como o dele voltam a incomodar depois de um tempo, assim como a saúde mental das pessoas não é uma linha estável que está sempre melhorando ou piorando. Existem altos e baixos e Fultz certamente vai passar por isso, seja quando sentir dores ou quando passar por uma seca de arremessos. O desafio é seguir melhorando dentro de quadra ao mesmo tempo em que mantém vivo seu gosto pelo basquete e a confiança no seu jogo, no seu corpo e na certeza de que pertence à NBA. Será uma carreira interessante de seguir acompanhando de perto.