Nos anos 60 a Marvel liderava o mercado americano de histórias em quadrinhos, com a DC num distante segundo lugar. Diz a lenda que roteiristas e desenhistas das duas editoras se encontravam diariamente num bar próximo e mantinham uma relação de amizade, mas que Stan Lee se incomodava com o fato de que os rivais estavam constantemente copiando suas ideias. Foi aà que Stan Lee resolveu “torturá-los”: passou a pegar algum elemento qualquer aleatório das revistas da Marvel e contar a seus concorrentes que esse elemento era, segundo a “equipe de marketing”, o grande responsável pelo sucesso das vendas. O resultado era que na edição seguinte a DC já havia implementado esse pequeno elemento – enquanto a Marvel, SÓ DE SACANAGEM, retirava qualquer indÃcio dele de suas próprias revistas. Foi assim que ter balões de fala nas capas das revistas foi considerado um elemento “fundamental para as vendas”, a DC copiou e a Marvel, para torturar o rival, deixou de utilizar esse recurso sem, no entanto, ver qualquer diminuição nas próprias vendas. A DC tentou de tudo: as cores da capa, os balões, as palavras de efeito, uma seção de cartas, matar personagens, qualquer coisa que parecesse responsável por manter a Marvel no topo. Mas não é só que a DC nunca conseguiu copiar esses elementos a contento – a própria Marvel abandonava esses pequenos detalhes a torto e a direito, sem ver sua supremacia ser minimamente abalada.
Nesses dias que se seguem à morte de Stan Lee, com tantos causos de sua genialidade pipocando por aÃ, acho importante lembrar que à s vezes o que realmente funciona – essa coisa abstrata a que chamamos de “genialidade” – é um conjunto tão complexo de coisas que os rivais acabam fadados a imitar uma versão caricata, simplificada e muitas vezes equivocada daquilo que julgam admirar. Impossibilitados de entender o que de fato tornava a Marvel de Stan Lee um sucesso, os responsáveis pela DC acabavam recorrendo a uma caricatura mental que possuÃam da empresa concorrente, copiando os balões nas capas ao invés do conteúdo e das pequenas nuances que criavam uma relação passional com os leitores.
Você deve estar se perguntando o que essa anedota sobre histórias em quadrinhos tem a ver com o universo do basquete, mas acredito que a mesmÃssima coisa esteja acontecendo na relação entre o Golden State Warriors e todos os seus rivais na NBA. Incapazes de compreender o que faz dos atuais campeões um time tão especial, copiam não aquilo que o time faz para ser vencedor, mas sim elementos superficiais que fazem parte de uma CARICATURA do time, uma imagem adulterada que construÃmos da equipe nos últimos anos.
Façamos um pequeno exercÃcio: quando pensamos no Warriors, quais imagens nos surgem imediatamente à mente? Além dessa aqui, claro:
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Acredito que a maior parte dos torcedores tenha aprendido a associar o Warriors à s bolas de três pontos (especialmente na transição), a um jogo de extrema velocidade e a um ataque fortÃssimo e que constantemente abre mão de um pivô tradicional. De certa maneira o Warriors se tornou, ao menos no imaginário do torcedor, o rosto da “revolução estatÃstica” que descobriu o poder matemático das bolas de três pontos e das bandejas, abrindo mão dos arremessos de média distância e principalmente dos “arremessos longos” de dois pontos, aqueles a um passo de distância da linha do perÃmetro. Quando alguns dizem por aà que “se arremessa demais de três pontos hoje em dia”, os dedos em riste tendem a apontar para o Warriors. Se mais e mais times arremessam de três – e se o Houston Rockets levou isso ao seu exagero, quebrando os mais diversos recordes nessas bolas – isso se deve ao sucesso de uma equipe três vezes campeã nos últimos quatro anos.
O problema é que essa imagem que constituÃmos do Warriors não necessariamente condiz com aquilo que o time faz realmente nas quadras, de modo que talvez estejamos deixando escapar quais são realmente seus avanços e méritos, presos que estamos a um estereótipo fictÃcio dos atuais campeões. Um bom ponto de partida para perceber isso é olhar para a temporada atual, 2018-19. Nesse momento o Warriors é apenas o VIGÉSIMO em bolas de três pontos tentadas por jogo, mais de 10 bolas atrás de Bucks e Rockets, lÃderes na categoria. Onde o time se destaca, na verdade, é no APROVEITAMENTO desses arremessos, com mais de 40%, suficiente para liderar a NBA.
Entre 2014 e 2017, o Warriors sempre foi um dos 5 times a mais tentar bolas de três pontos, mas liderou a liga em tentativas apenas na temporada 2015-16. Na temporada passada, quando a NBA já estava desesperada para copiar o foco no perÃmetro, o Warriors já era o décimo sexto time em tentativas de três pontos, consolidando uma tendência de diminuir essas bolas ano a ano. A porcentagem de aproveitamento, no entanto, continuou intacta: o Warriors só não liderou no quesito na temporada 2016-17, em que ficou pouca coisa atrás de Spurs e Cavs.
As bolas de três costumam vir acompanhadas, também, de uma “recusa” aos arremessos de meia distância – especialmente aos arremessos longos de dois, os dados a um passo da linha do perÃmetro. Com jogadores especialistas nas bolas de três, como é o caso do Warriors, a lógica seria extinguir os arremessos longos que valem apenas dois, por resultarem em menos pontos sem com isso reduzir significativamente sua dificuldade. Recentemente comentamos como o Spurs é um time que “resiste” a essa orientação, liderando a NBA nessa temporada em arremessos tentados de dois pontos a 5 metros ou mais de distância da cesta. O que não comentamos, no entanto, é que o Warriors vem logo atrás, em segundo lugar nesses arremessos, virtualmente empatado com o Spurs: 18% de todas as bolas do time são dadas um passo à frente da linha de três. O mesmo acontece com os arremessos de média distância, a cerca de 3 metros da cesta: o Spurs lidera em tentativas, com o Warriors pouquÃssima coisa atrás. Somando os dois tipos de arremessos, que juntos compõe tudo aquilo que não é nem uma bandeja, enterrada, ganchinho ou bola de três pontos, Spurs e Warriors são os únicos dois times na temporada a dedicar UM TERÇO de suas tentativas a eles. Isso nos coloca em uma situação bizarra: a “resistência” do Spurs, em termos de distribuição de arremessos, está incrivelmente perto daquilo que deveria ser “combatido”, ou seja, o caminho do Warriors. São VINTE os times da NBA que dedicam uma maior porcentagem de seus arremessos à s bolas de três pontos do que o Warriors nesse momento, e ao mesmo tempo NENHUM time da NBA tenta MENOS bandejas do que eles. N-E-N-H-U-M. Mas afinal, a mensagem que o Warriors transmitiu com seus 3 tÃtulos não era de bolas de três pontos e bandejas? Se for o caso, um dos maiores exemplos de RESISTÊNCIA a esse modelo é o próprio Warriors – e essa resistência nem é tão recente, já que os números atuais não são tão diferentes da temporada passada. O que temos aqui parece, de fato, uma tendência.
Se em algum momento as bolas de três pontos foram essenciais para o Warriors, a chegada de Kevin Durant já deixou isso para trás. Se a recusa aos arremessos longos de dois pontos em algum momento foi essencial para o Warriors, o lema de “abrir mão de um bom arremesso em nome de um arremesso excelente” já flexibilizou essa restrição a um ponto em que os jogadores já não se importam mais se estão ou não com um pé sobre a linha. Se o volume de arremessos foi em algum momento uma recomendação básica para o Warriors, o preceito de manter nas alturas o aproveitamento das bolas já soterrou em definitivo a enxurrada de arremessos apressados. Ou seja: a série de imagens que fizemos dos atuais campeões foi aos poucos sendo abandonada pelo time graças em parte à chegada de Durant, mas também graças ao fato de que existem outros preceitos, outras diretrizes, que são mais importantes e essenciais para o sucesso do time do que aquelas que os demais times são capazes de copiar. Quando o Bucks se reinventa arremessando bolas de três pontos sem parar está copiando um elemento “menor”, mais associado a um estereótipo de Warriors do que ao time real. É a parte mais “copiável” – e que, como estamos acompanhando, realmente levou o Bucks a um novo patamar – mas é também uma parte mais “frágil”, menos essencial e mais desatrelada do sucesso do Warriors do que a gente costuma imaginar. Sistemas mais rÃgidos teriam impedido Kevin Durant de dar arremessos de meia distância, por exemplo, ao invés de tornar isso parte importante do esquema tático – enquanto a NBA está olhando para um lado de maneira quase mecânica, radical, dogmática, o Warriors está indo para o outro, se adaptando à s suas próprias peças e, também, aos seus adversários.
Talvez a lição mais importante que o Rockets tenha nos ensinado ao perder as Finais da Conferência Oeste na temporada passada tenha sido de que não existe RECEITA fechada e evidente para o sucesso. As bolas de três pontos carregaram o time longe, mas foi preciso fazer concessões, mudar o ritmo de jogo, criar um basquete de mano-a-mano, mudar para enfrentar o Warriors, e enfim perder porque apesar de tudo o time se manteve FIEL DEMAIS a uma receita que falhou justamente no jogo final. Tentar extrair dos tÃtulos do Warriors uma receita de sucesso parece ser igualmente uma receita para fracasso, não apenas porque não é fácil apreender o que de fato está funcionando, mas porque imitar de maneira estática um time que está CONSTANTEMENTE MUDANDO seu estilo de jogo parece ser ir contra justamente aquilo que se está tentando imitar. É quase como quando um daqueles “mestres espirituais” diz aos seus discÃpulos: “não tenham mestres”. Seguir suas orientações não seria ignorar justamente uma de suas orientações? E se o princÃpio fundamental do Warriors for justamente a flexibilidade com os próprios princÃpios, através de um ambiente democrático entre os jogadores e a comissão técnica, que impossibilita uma forma estanque de jogo? Isso faria com que todos os times que tentam radicalizar a fórmula dos arremessos de três estivessem perdendo justamente o mantra central, que seria não ter fórmulas.
Constantemente nossa necessidade humana de apreender a genialidade alheia em “caixinhas”, fórmulas, receitas, acaba simplesmente DIMINUINDO a genialidade, tornando-a algo menor, banal, como se ela fosse resultado apenas de um conjunto determinado de passos óbvios. Soa prepotente dizer que “entendemos” o que faz de um indivÃduo ou de um projeto um sucesso: há sempre muito mais do que podemos perceber e, portanto, muito mais do que podemos regrar e posteriormente copiar. Não à toa, times como o Warriors e mesmo escritores como Stan Lee (mesmo para aqueles que não admirem tanto assim seus trabalhos) são fenômenos raros, acontecimentos preciosos que acabam guardando seu lugar na história. Certamente inspirarão outros fenômenos posteriores, mas em geral de maneira distorcida, bizarra, caricata, mais pelo estereótipo que se tornam no imaginário do que pelo que foram de verdade. Até que algum outro conjunto de coisas se forme, aponte novos caminhos, seja vista como genial e comece uma nova tendência – e a gente tente, outra vez, colocar todo mundo numa caixinha.