Gregg Popovich, técnico do San Antonio Spurs, é talvez o mais famoso crítico das bolas de três pontos. Seu descontentamento vai além da reclamação amplamente difundida de que hoje em dia “arremessa-se demais do perímetro” – para ele, a linha de três pontos não deveria sequer EXISTIR. O argumento de Popovich é de que as bolas de três supostamente exigiriam “menos movimentação” das equipes, permitindo que times pontuem sem ter que trabalhar suas jogadas primeiro nem criar espaços adequados para infiltrações ou jogadores de garrafão. Fã assumido do basquete jogado nos anos 70, a posição do técnico sobre as bolas de três é categórica: “Eu odeio”, disse alguns anos atrás.
Suas preferências pessoais, no entanto, nunca impediram o Spurs de arremessar bolas de três pontos – e de convertê-las com um aproveitamento invejável. Quando a equipe foi campeã na temporada 2013-14 (a última temporada a ter um time nas Finais da NBA que não fosse nem o Golden State Warriors nem o Cleveland Cavaliers), foi o décimo terceiro time que mais acertou bolas de três pontos por partida, graças a um aproveitamento líder de 39% nesses arremessos. “Não posso ser teimoso só porque pessoalmente não gosto do arremesso”, disse Popovich após receber o anel de campeão. A ideia que ele tenta passar abertamente para seus jogadores não é de que deixem de arremessar de três, mas sim, nas palavras dele, de que “não arremesses de três apenas para arremessar de três, queremos arremessar bolas de três pontos livres, muito bem executadas”. O que aquele time campeão carecia de tentativas, por exemplo (foi só o décimo sétimo time em arremessos de três pontos tentados por jogo), compensava no aproveitamento dessas tentativas graças a arremessos limpos e bem trabalhados. O foco do time era em tentar bandejas e (pasmem!) arremessos de meia distância, mas se aproveitando dos arremessos de perímetro que surgiam naturalmente, em situações perfeitas, graças à movimentação constante da bola e dos próprios jogadores depois das infiltrações.
Na temporada seguinte, quando o Golden State Warriors conquistou o título com suas bolas precisas de longa distancia, Popovich admitiu: “A bola de três é muito poderosa, você tem que ser capaz de convertê-la. Ninguém faz isso melhor do que o Warriors, e podemos ver onde eles estão nesse momento. Então é importante, não podemos ignorar”. Segundo assistentes técnicos da época, o Spurs começou a debater internamente sobre as bolas de três a partir de então: deveriam arremessar ainda mais, aumentar o ritmo de jogo, focar a movimentação ofensiva no perímetro? Ou deveriam manter o plano campeão em 2014 de arremessar bolas de três apenas quando surgissem, limpas, sem movimentações específicas para elas?
Os números da temporada seguinte ao título do Warriors, 2014-15, nos mostram um pouco o caminho do Spurs: a quantidade de bolas de três pontos por jogo até aumentou um pouquinho, mas não na mesma intensidade do restante da NBA. Ficaram em décimo quinto lugar em arremessos de três pontos tentados por partida, mas caíram para o sexto melhor aproveitamento – em parte porque as defesas adversárias começaram a ficar melhores em parar esse tipo de arremesso. Embora o time tenha feito concessões para gerar mais bolas de três pontos, o resto da NBA já estava fazendo esse mesmo movimento em ritmo muitíssimo mais acelerado, se especializando nessas bolas e, também, em como impedi-las.
Na temporada seguinte, 2015-16, o Spurs pareceu abrir mão em definitivo de se transformar num time arremessador: voltaram atrás nas concessões que haviam feito e foram um dos 5 times a menos tentar e a menos converter bolas de três pontos, mesmo tendo um aproveitamento de 37% nessas bolas – apenas atrás dos surreais 41% do Warriors naquela temporada mágica das 73 vitórias. Mas há um outro número que explica ainda melhor a posição ideológica do Spurs: mais de 20% de todos os arremessos do time na temporada foram arremessos longos de dois pontos, ou seja, a cerca de um passo da linha de três pontos.
A relevância nesse número está no fato de que o arremesso longo de dois pontos é o mais INDESEJÁVEL de toda a NBA. A lógica é simples: por que você daria um arremesso tão longe se, com um único passo para trás, pode aumentar o valor dos pontos sem diminuir significativamente a chance de acerto? Para se ter uma ideia, o Houston Rockets da atual temporada 2018-19, que se comprometeu a arremessar de três pontos o máximo possível, só tem TRÊS POR CENTO dos seus arremessos vindos um passo à frente do perímetro, já que todos os jogadores já estão preparados e treinados para receber a bola sempre um passo para trás. O Milwaukee Bucks, que migrou para o mesmo modelo tático, tem os mesmos 3%. Por que o Spurs da temporada 2015-16 dava então tantos arremessos de dois pontos longos se eles são tão malignizados na NBA? Simplesmente porque era onde os jogadores estavam quando recebiam a bola: os números nos mostram que não havia nenhuma orientação para que os jogadores dessem uma passo para trás, mas sim para que se movimentassem e, se recebessem a bola livres, dessem o arremesso. Se isso significava uma bola de três ou uma bola longa de dois, isso era indiferente: o importante era estar em movimento e arremessar quando houvesse a melhor oportunidade possível. Com isso temos 20% dos arremessos do time sendo bolas longas de dois e 22% sendo bolas de três, uma diferença muito pequena na distribuição.
O resultado foi que, enquanto o Golden State Warriors venceu 72 jogos tentando 31.6 arremessos de três pontos por jogo, o San Antonio Spurs tentou apenas 18.5 dessas bolas por partida – e mesmo assim venceu 67 jogos naquela temporada, uma das melhores campanhas da história, 12 vitórias à frente do terceiro colocado e VINTE E SEIS vitórias à frente do oitavo colocado. A derrota do Spurs para o Thunder nas semi-finais da Conferência Oeste ofuscou o fato de que o time estava tendo um sucesso histórico em nadar contra a corrente. Greg Popovich explicou bem o conceito do time: “A maior parte das pessoas tenta imitar o Warriors, mas é uma proposta fracassada porque ninguém faz isso melhor do que o Warriors. Você pode até tentar arremessar mais de três e converter mais de três, mas quando a coisa aperta você não fará isso melhor do que o Warriors porque o Warriors tem os melhores jogadores do planeta em converter essas bolas. Essa me parece uma estrada equivocada para trilhar”.
Esse mesmo discurso, mas em menor escala, foi o que rendeu 3 títulos para o Spurs entre 2003 e 2007: enquanto o Suns de Mike D’Antoni tentava atrair os adversários para jogar em velocidade e na correria e se aproveitava do fato de ser um time simplesmente MELHOR nesses quesitos, o Spurs resistia à tentação e mantinha seu estilo de jogo lento, com jogadas longas e poucos contra-ataques quando enfrentava o rival. Ao invés de tentar vencer o Suns naquilo que o Suns fazia de melhor, o Spurs fazia algo totalmente DIFERENTE, forçava o Suns para fora da zona de conforto e colecionava títulos. Todo mundo na época queria jogar como o Suns, menos o Spurs que queria jogar como ele próprio e que assim era campeão, levando toda a NBA a ter medo de imitar Mike D’Antoni e preferir imitar Gregg Popovich – não é à toa que seus assistentes técnicos foram ganhando cargos de técnicos principais em trocentas equipes na última década. Na temporada passada, o Houston Rockets tentou imitar o campeão da vez, o Warriors, de uma maneira tão extrema que quebrou o recorde de bolas de três pontos tentadas por partida – apenas para perder para o mesmo Warriors nas Finais da Conferência Oeste. Isso só fortaleceu o discurso de Popovich de que essa estrada é perigosa e de que o Spurs tem um ponto interessante ao tentar se manter alheio à tendência da imitação.
Após as 67 vitórias na temporada 2015-16, o Spurs seguiu seu trajeto solitário na temporada seguinte, 2016-17: 19% dos arremessos foram bolas longas de dois pontos, novamente foram um dos 5 times a menos tentarem bolas de três pontos, e outra vez foram os líderes de aproveitamento nesses arremessos, com 39% de acertos. Não se trata de abrir mão das bolas de três, mas sim de dar esses arremessos apenas quando surgem em demais jogadas, com o alto aproveitamento vindo de quão livres os arremessadores estão ao invés de virem de jogadores especialistas. O time acabou novamente na segunda colocação da Conferência Oeste, apenas 6 vitórias atrás do líder Warriors, com uma eliminação que só aconteceu para os futuros campeões nas Finais do Oeste, numa série marcada pela lesão do principal jogador da equipe, Kawhi Leonard. Nossa sensação de que o modelo do Spurs “não é funcional”, “não tem chances” ou “é coisa do passado” vem mais das dificuldades do time na temporada 2017-18, marcada por lesões e crises internas, do que dos resultados do time nos últimos anos.
Na temporada atual, sem Kawhi Leonard e com a chegada de DeMar DeRozan, as tendências táticas do Spurs foram exacerbadas: até aqui o time voltou a ter 20% de seus arremessos sendo bolas longas de dois, é o segundo time a menos arremessar bolas de três pontos (atrás apenas do Cavs, que não arremessa porque não CONSEGUE, não por escolha), e apenas 26% de todos os arremessos do time são bolas de três – 20% a menos do que os líderes no quesito, Rockets e Bucks. Se a ideia do time é que só arremesse de três quem ficar livre em situação ideal e tiver bom aproveitamento, a vinda de DeRozan (um pontuador espetacular que tem míseros 28% de média nas bolas de três pontos na carreira) permite que o time arremesse ainda menos do perímetro, já que ele não é um especialista. Na última temporada o Toronto Raptors fez todos os esforços possíveis para que DeRozan arremessasse mais de longe e criou jogadas específicas para isso, levando ele a acertar uma bola de três por jogo em média, com 31% de aproveitamento – bem abaixo do número mínimo necessário para as bolas de três valerem a pena. Com o Spurs, DeRozan finalmente está LIVRE dessa obrigação, arremessando bem menos do perímetro e errando quase tudo que tenta – tem 21% de aproveitamento até agora. Seus arremessos não surgem de jogadas desenhadas, mas sim de infiltrações de outros jogadores por um lado da cesta que, ao serem contestados, passam a bola para DeRozan na zona morta contrária, permitindo a tentativa. São bolas necessárias para salvar os armadores que infiltram e espaçar a quadra para essas infiltrações, não jogadas pensadas para ele. O fato de que ele AINDA arremesse de fora, mesmo sendo contra seu jogo tradicional, suas melhores habilidades e seu PÉSSIMO aproveitamento, mostra como o Spurs não evita conscientemente o arremesso de três pontos, não veta esse tipo de bola nem proíbe seus jogadores de se colocar em posição para esses arremessos. Não se trata de uma cruzada pessoal de Gregg Popovich contra as bolas de longa distância, um conservadorismo tacanho e desencaixado no basquete moderno. O que temos, na verdade, é um time que se recusa a arremessar bolas de três pontos apenas para arremessar bolas de três pontos – elas surgem, mas como resultado de outras movimentações, como “acompanhamento”, nunca como prato principal.
Se na teoria essa filosofia de jogo contraria a tentativa contemporânea de se focar no perímetro, uma “onda” que está arrebatando mais e mais times na Liga, na PRÁTICA ela coloca o Spurs ironicamente mais próximo dos números do próprio Golden State Warriors – que é um time que, ao contrário da percepção comum, arremessa CADA VEZ MENOS de três pontos, dá cada vez mais arremessos longos de dois pontos, e que se afasta progressivamente daquele esteriótipo encampado por Rockets, Bucks e Nets, por exemplo. O Warriors está mais longe da “tendência” que ajudou a criar do que costumamos imaginar, embora esse seja um assunto complexo que mereça o seu próprio post no futuro. O que nos importa aqui, por enquanto, é que o Spurs assumiu para si uma espécie de RESISTÊNCIA contra o modelo atual de basquete, o que não significa abrir mão das bolas de três pontos, mas sim lhes dar uma função declaradamente secundária. Embora o sucesso da empreitada possa ser comprometido por questões de elenco (o time ainda precisa se recuperar da lesão de Dejounte Murray e da reconstrução necessária após as aposentadorias recentes e a traumática troca de Kawhi Leonard), todos os resultados positivos devem ser levados em consideração e analisados como um caminho possível para se trilhar. O Spurs simboliza um experimento que a NBA vê com olhos interessados, mas que não tem ainda coragem de experimentar. A vitória no sábado em cima do Houston Rockets, líder em bolas de três na temporada, foi emblemática tanto por ter sido razoavelmente tranquila quanto pelo Spurs ter arremessado MENOS DA METADE das bolas de três pontos do adversário. Se o Spurs acabar a temporada à frente do Rockets, que parece cada vez mais longe de repetir o sucesso da campanha passada, como ficará o discurso a respeito das bolas de três pontos dominantes? Será que, como Popovich, outros técnicos se recusarão a seguir um plano que algum adversário notoriamente tem maior facilidade em cumprir e executar?