🔒O fim da maldição

Desde que se mudou para Los Angeles em 1984, o Clippers sofre com a imagem de “time amaldiçoado”. A mudança de cidade – antes o time ficava em San Diego – foi controversa, negada pelos donos de equipes da NBA e realizada mesmo assim, contra as regras, pelo então dono Donald Sterling, que pagou multas milionárias pela rebeldia. A partir de então, como se acordar com o pé esquerdo fosse suficiente para destruir TODO O RESTO DE UMA VIDA, o time parecia incapaz de obter qualquer sucesso. Ainda nos anos 80 viu suas principais estrelas sofrerem lesões estranhas e ganhou o apelido de “Triângulo do Clippers”, em alusão ao Triângulo das Bermudas em que supostamente embarcações desaparecem sem deixar vestígios. Foram oito temporadas de fracassos em Los Angeles até o time voltar aos Playoffs – após uma seca de 16 anos longe da pós-temporada – apenas para ser eliminado na primeira rodada 3 vezes em 6 anos e então afundar de novo no esquecimento.

Em 1998 o Clippers finalmente teve uma chance de se reconstruir ao conquistar a primeira escolha do draft, mas acabou escolhendo Michael Olowokandi, uma das apostas mais mal sucedidas de todos os tempos – falamos dele bastante em um podcast especial sobre primeiras escolhas que não deram certo. Quando Olowokandi chegou, o Clippers perdeu suas primeiras 17 partidas e não se recuperou dessa ducha de água fria por ANOS. O time só voltou a ser minimamente relevante em 2002, quando conseguiu uma troca por Elton Brand e formou um núcleo verdadeiramente animador, que jogava um basquete rápido e divertido. Tinha tudo para ir para os Playoffs mas na porção final da temporada começou a perder um jogo atrás do outro sem nenhuma explicação. Na temporada seguinte o time acrescentou Andre Miller, um dos armadores mais interessantes de sua geração, mas aí todo mundo se machucou – foram quase 300 jogos somados de jogadores por lesão só naquela temporada. A maldição não poupou ninguém.

Ainda assim, o Clippers era um time promissor e empolgante e Elton Brand era o primeiro jogador da franquia em quase 10 anos a ir para um All-Star Game. No entanto a equipe não lhe ofereceu uma extensão de contrato e assim que a temporada 2002-03 terminou tudo que Elton Brand queria era fugir de lá. O jogador aceitou rapidamente um contrato gordo com o Miami Heat, deixou claro que queria partir e aí o Clippers, que havia dado todos os indícios de que não daria um contrato grande pra ninguém – foram quase 20 anos sem nada perto de um contrato máximo – resolveu igualar a oferta do Heat e segurar Elton Brand à força. Foi a primeira vez acompanhando NBA que eu vi um jogador não receber uma oferta do próprio time, falar abertamente que queria mudar de ares, e ainda assim o time igualar a oferta de uma equipe rival pra segurar seu atleta a contragosto – se fosse hoje, jogadores teriam muito mais liberdade para se negar a jogar, mas na época isso era impensável.

Apesar do clima horrível que isso gerou, a insistência em Brand deu frutos: em 2006, liderado pelo ala, o Clippers voltou para os Playoffs, venceu sua primeira partida de pós-temporada em 13 anos, sua primeira série na história e só foi perder nas Semi-Finais da Conferência Oeste num traumático Jogo 7 graças a arremessos absurdos de último segundo do Phoenix Suns. Apesar do trauma, parecia finalmente que a equipe conseguiria bater de frente com os principais nomes da NBA. No entanto, os jogadores de banco que encerraram contrato naquela temporada fizeram questão de FUGIR CORRENDO dali – para além de qualquer maldição, ainda havia um cenário disfuncional nos bastidores graças às ações controversas do então dono da equipe. Na temporada seguinte, ao invés de repetir o feito nos Playoffs e talvez chegar ainda mais longe, o time apenas sofreu com baixas, novas contusões de seus principais jogadores e uma das lesões MAIS HORRÍVEIS da história do esporte, o joelho do então terceiro-anista Shaun Livingston desmontando como se fosse de Lego. Mesmo se você tiver estômago para assistir, tire as crianças da sala:

Na temporada seguinte, a 2007-08, foi a vez de Elton Brand, único ponto positivo para o Clippers na década, romper o tendão de Aquiles e nunca mais conseguir jogar basquete em nível competitivo novamente. Era a segunda temporada seguida sem alcançar a pós-temporada, o fim definitivo daquela equipe que chegou aos Playoffs em 2006 e hora de reconstruir a equipe novamente após um micro-mini-nano momento de alegria. Afinal, quando se tem um pinguinho de esperança, a maldição fica mais cruel.

Em 2009 o Clippers teve novamente a primeira escolha do draft e ao invés de alguém como Olowakandi, escolheram Blake Griffin, um talento inegável. Não havia nada que pudesse dar errado, não é mesmo? Não é mesmo? E aí antes mesmo da temporada regular começar, Blake Griffin se contundiu numa jogada completamente banal e sequer conseguiu fazer sua estreia oficial, adiando sua chegada à NBA por uma temporada inteira. A “salvação da franquia”, o nome que tornaria o Clippers não apenas competitivo mas também INTERESSANTE – suas enterradas, dizia-se à época, iriam “revolucionar a NBA” e apareciam todos os dias na televisão num período em que a gente ainda assistia televisão – já começou se lesionando só pra gente lembrar que maldição não está pra brincadeira.

A lesão de Blake Griffin foi uma baita jogada de efeito, uma enterrada em contra-ataque, mas talvez a coisa mais assustadora seja que não houve um tombo, uma pancada, uma perna torta, não tem um joelho desmontando. Não parece nada drástico, Griffin só toca o chão, aperta o joelho e pronto, adeus temporada inteira:

Blake Griffin voltou com tudo na temporada seguinte e era até melhor do que se esperava, mas não o bastante para levar o time aos Playoffs sozinho. Foi só com a chegada de Chris Paul via troca na temporada 2011-12 que a equipe voltou à pós-temporada. Duas décadas de bagunça, polêmicas nos bastidores, más escolhas de draft e lesões terríveis pareciam finalmente ter chegado ao fim graças ao acaso de uma primeira escolha no draft boa DE VERDADE e uma junção de fatores externos bizarros que levaram Chris Paul a ser trocado para o Clippers – o jogador quase foi mandado para o Lakers, mas como o Hornets, seu então time, estava sem dono e portanto sob controle dos donos das demais franquias, a troca com o Lakers foi vetada e sobrou para o Clippers, meio sem querer, fechar negócio.

A dupla Griffin e Chris Paul foi o bastante para levar o Clippers para os Playoffs por 6 anos consecutivos, incluindo 3 Semi-Finais de Conferência – que deveriam ter se tornado pelo menos duas Finais de Conferência se eles não tivessem DERRETIDO MISTERIOSAMENTE em duas ocasiões. Fora uma varrida para o Spurs nas Semi- Finais da temporada 2011-12, em que eles não tiveram nenhuma chance, todas as outras falhas na pós-temporada foram estranhas, fora da curva. Na temporada 2012-13 perderam para o Grizzlies ainda na primeira rodada, na primeira vez em que tiveram mando de quadra em sua história, vencendo os primeiros dois jogos em casa e depois perdendo QUATRO partidas consecutivas. Na temporada 2013-14 foi a vez de vencer em um jogo o Thunder nas Semi-Finais fora de casa por 17 pontos e eventualmente perder a série mesmo assim, incluindo uma vantagem de 7 pontos a 50 segundos do fim que virou farofa no Jogo 5 e teve como ponto alto um desperdício de bola decisivo de Chris Paul na jogada final. Mas nada supera a temporada 2014-15, em que o Clippers abriu 3 a 1 na série contra o Houston Rockets, também nas Semi-Finais, e chegou a estar vencendo por 19 pontos o decisivo Jogo 6 até errar CATORZE ARREMESSOS SEGUIDOS, perder a partida e eventualmente ser derrotado também num Jogo 7 sem Chris Paul, que perdeu duas partidas por lesões.

Para a temporada 2015-16, tudo precisava ser diferente. O técnico do Clippers, Doc Rivers, disse que “toda tempestade termina”, que “sempre para de chover em algum momento”, e que a maré de azar do Clippers chegaria ao fim. Foi então que Blake Griffin brigou com um roupeiro do time, quebrou a mão dando um MURRO e perdeu 47 jogos na temporada regular com a lesão. Pelo menos voltou a tempo dos Playoffs e ajudou o Clippers a ganhar os dois primeiros jogos, em casa, contra o Portland Trail Blazers. No entanto, lesionou a perna no Jogo 3 e foi posteriormente cortado da série enquanto Chris Paul quebrou a mão em quadra no Jogo 4 e teve que passar por uma cirurgia. Sem nenhum dos dois, o Clippers simplesmente perdeu OUTRA VEZ quatro jogos consecutivos e foi eliminado na primeira rodada.

Dado esse histórico, a temporada 2016-17 teve um clima de “tudo ou nada”. Era a última chance de quebrar a maldição e vencer o Oeste antes que o elenco fosse obrigado a se desmanchar graças ao término dos contratos. Mais uma vez o Clippers teve mando de quadra e mais uma vez sofreu com lesões: Blake Griffin lesionou o dedão do pé no segundo quarto do Jogo 3 e foi retirado de toda a pós-temporada. Chris Paul teve que assumir o time sozinho, teve uma série histórica, carregou a equipe até o Jogo 7 e lá, com uma atuação complicada e mira totalmente descalibrada, perdeu e encerrou a campanha do Clippers e também sua passagem por Los Angeles.

Assim que Chris Paul e Blake Griffin encerraram seus contratos ao mesmo tempo, relatos sobre a relação dos dois nos bastidores não levavam a crer que fossem querer continuar jogando juntos. Chris Paul foi quem fez primeiro o movimento de saída, orquestrando uma troca com o Rockets e abrindo espaço para que o Clippers repensasse a vida e reconstruísse Mas não, ao invés de pensar no futuro o que a equipe fez foi tentar a todo custo manter Blake Griffin, incluindo um famoso recrutamento épico que incluía um  “Museu Blake Griffin” no ginásio do Clippers, mostrando como seria ter um espaço que contava toda sua carreira do draft à aposentadoria e um vídeo que simulava a cerimônia de sua camiseta sendo imortalizada no teto da arena. Além disso o Clippers ofereceu um contrato máximo ainda que Griffin viesse de lesões em momentos cruciais das últimas duas pós-temporadas.

Blake Griffin topou a loucura, foi fiel à franquia que o draftou e aceitou liderar um time que sonhava em ser melhor sem Chris Paul do que havia sido até ali, por mais absurdo que isso possa parecer. Era o Clippers se recusando a reconstruir, tentando insistir num terreno amaldiçoado: cercou Griffin das peças que vieram num sign-and-trade por Chris Paul (como Louis Williams e Patrick Beverley), trocaram a escolha que o Rockets mandou por Danilo Gallinari e apostaram em Milos Teodosic, com uma carreira consolidada na Europa, para assumir as rédeas da armação. O projeto não foi um fracasso completo, mas é claro que também não funcionou: Gallinari mal jogou (foi o terrível encontro entre a maldição do Clippers e a maldição própria do Gallinari, que ele carrega consigo desde que chegou à NBA), Patrick Beverley quebrou o joelho, Blake Griffin e Teodosic perderam vários jogos por lesões diversas e aos trancos e barrancos, ainda que se mantendo digno, ficou evidente que o time precisava de uma chance de recomeçar e limpar um pouco a “aura” que a equipe acumulou ao longo de décadas de fracassos e falsas esperanças.

Longe de mim acreditar de verdade em maldições (“não acredito em bruxas, mas que existem, existem”), mas não importa se alguma narrativa é real – o que importa é o EFEITO que essa narrativa tem. Ninguém no Clippers deve achar que o time é de fato amaldiçoado ou verdadeiramente azarado, mas depois de uma dezena de lesões importantes e fracassos em momentos importantes dos Playoffs, os jogadores, funcionários, torcedores e comissão técnica começam a entrar na dinâmica de que algo vai dar errado, de que algo não vai funcionar. Some casos de desastres o suficiente, ainda que aleatórios, e as pessoas passarão a ver padrões, o clima no vestiário ficará comprometido e você verá aquilo que chama-se por aí de “profecias auto-realizáveis”: de tanto sentir que algo vai dar errado, nos portamos de maneira que fazemos algo errado, culpando a tal maldição ao invés de a nós mesmos. É por isso que narrativas tem impacto, tem efeito, por mais absurdas ou fantasiosas que sejam. E foi assim, aos poucos, que não sobrou outra opção ao Clippers que não fosse RESETAR a narrativa.

O primeiro passo foi receber estrangeiros – não gente de outro país, mais gente de fora dessa narrativa, gente que não está nem acostumado com essa historinha de maldição nem seria capaz de comprar essa bobagem. Gente como Patrick Beverley e Montrezl Harrell, que são 90% esforço e 10% ódio, e que estão sempre focados em fazer o ambiente funcionar a todo custo, criam uma coletividade nos vestiários e ensinam o time a querer o SANGUE dos adversários. Ao redor disso o Clippers foi capaz de criar uma cultura: Doc Rivers viu nos dois uma oportunidade de criar um ambiente de treino, esforço e defesa, o time passou a ter orgulho de defender e tornar a vida dos oponentes um inferno e o primeiro confronto com o Houston Rockets, ex-lar de vários desses jogadores, foi um momento de unir todo o elenco contra um INIMIGO. Se perguntarem pra mim, essa narrativa de “nós contra eles” é tão bobagem quanto acreditar em maldição, mas ela tem efeitos muito diferentes: cria grupos coesos, laços indissolúveis e companheirismo. Foi nesse jogo em que tivemos aquela bobagem de gente tentando bater no Chris Paul nos vestiários e os boatos de um “túnel secreto”, mas o que importa para o Clippers é que o elenco saiu do evento tomado por novos ares. E a partir daí a diretoria do time não parou mais de adicionar peças novas ao grupo, sempre rostos jovens, arejando ainda mais profundamente uma estrutura tão danificada pelo peso dos fracassos passados. Foi assim que o time não acreditou que deveria perder – um elenco unido e raivoso desses sempre acha que vai ser campeão – mas não parou de colecionar jogadores jovens e escolhas de draft.

Quando surgiu a oportunidade de receber Kawhi Leonard e o jogador pediu uma exigência boba, bem simples, que era nada mais, nada menos do que trazer junto Paul George – como se desse para materializar outras estrelas no seu elenco assim do nada – foi que finalmente percebemos o que o Clippers fez como processo de reconstrução para sair do clima de maldição. O time tinha todas as peças necessárias para realizar as transações, receber Paul George e Kawhi Leonard e manter o núcleo identitário da equipe. Na troca por Paul George o Clippers enviou Danilo Gallinari (que veio através da escolha recebida na troca do Chris Paul), Shai Gilgeous-Alexander (que o Clippers perseguiu agressivamente no draft e lapidou para se tornar uma peça valiosa mesmo tendo sido escolhido fora do Top 10), a escolha de draft do Heat de 2021 (que veio na troca de Tobias Harris, que parecia uma peça importante que o Clippers não teve medo de trocar), a escolha do próprio Clippers em 2022, uma escolha do Heat em 2024 (que o Clippers conseguiu por ter tanto espaço salarial sobrando que se ofereceram para absorver um jogador indesejado na troca entre Blazers, Sixers e Heat por Jimmy Butler), uma troca de escolhas com o Clippers em 2023 e 2025, e mais escolhas do próprio Clippers em 2024 e 2026. Ou seja, Paul George – que saiu bem caro – chegou ao Clippers graças a trocas ousadas que abriram mão de peças que não eram centrais à identidade do time, a um bom jogador escolhido no draft, e a espaço salarial sobrando por apostar em jogadores jovens e secundários ao invés de em qualquer estrela que estivesse disponível (ou que nem quisesse jogar lá). Foi uma mudança de gestão, de mentalidade e de auto-estima: se Patrick Beverley e Lou Williams querem ficar no Clippers, então eles são mais importantes do que Griffin, Chris Paul ou outros grandes nomes por aí. Antes mesmo de assinar com Kawhi, Beverley já tinha ganhado sua extensão de contrato – uma identidade saudável para o time, por mais estranha que ela seja, tem que ser prioridade. Ter grandes nomes numa cultura complicada, desunida e cravada de desilusões não adianta absolutamente nada, como a história regressa do Clippers tão habilmente nos conta.

Kawhi Leonard chega ao time alheio ao passado, às narrativas velhas, à maldição. Tudo que ele sabe é que o time tinha espaço salarial para ele, as peças para trazer Paul George e uma cultura de defesa, intensidade e coletividade. Maldições às vezes duram décadas e mais décadas (especialmente no beisebol), mas é incrível como frente a qualquer mudança significativa a gente esquece rápido. Os jogadores, quando querem mudar de time, só levam em consideração fatores muito recentes: como era o Clippers nas últimas duas temporadas, qual era o clima que eu percebi na última partida aqui, qual resultado eles obtiveram nos últimos Playoffs, quais foram as últimas trocas? Às vezes nos apegamos a histórias longas sem perceber que toda oportunidade é oportunidade para um recomeço: o Clippers sanguinário de Beverley, Kawhi e Paul George já é OUTRA COISA. Se perder, se falhar, se der errado, não será “de novo”, mas sim pela primeira vez. O time pode até não funcionar, mas será nos seus próprios termos.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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