Em 2016, poucos técnicos da NBA eram tão celebrados quanto Tom Thibodeau. No comando do Chicago Bulls por 5 anos, Thibodeau havia levado a equipe aos Playoffs em todas as temporadas, incluindo uma Final de Conferência e duas Semi-Finais de Conferência mesmo com um elenco combalido por lesões. Durante essas campanhas, o Bulls esteve sempre entre as melhores defesas da NBA – assim que assumiu o time, Thibodeau imediatamente alçou a defesa da equipe, que era a décima primeira melhor da liga, diretamente para a primeira colocação. O feito não foi mera coincidência, já que a defesa que o Bulls desbancou – e que ficou, por pouco, na segunda colocação defensiva naquela temporada – também era responsabilidade de Thibodeau, graças aos seus anos como assistente técnico no Boston Celtics. A carreira de Thibodeau como assistente técnico confirma esse padrão: ele esteve ligado à construção de algumas das melhores defesas da NBA por um período de duas décadas, incluindo o Knicks dos anos 90 e o Rockets do começo dos anos 2000, até ter seu auge como assistente do Celtics campeão em 2008. Seu primeiro cargo como técnico, no Bulls, apenas confirmou sua capacidade de desenhar fortes esquemas defensivos e construir equipes motivadas e disciplinadas; apesar de ter deixado a franquia após brigas com a diretoria, a opinião geral era de que a carreira de Thibodeau como técnico tinha tudo para ser longa e incrivelmente bem sucedida.
Poucos anos no futuro, entretanto, essa percepção já havia mudado drasticamente. Quando abandonou seu segundo cargo de técnico em 2019, uma passagem catastrófica no comando do Minessota Timberwolves, ninguém acreditava que Thibodeau teria outra chance na NBA. Não foi apenas uma questão de resultados insatisfatórios – ainda que, nos seus 3 anos em Minessota, o promissor Wolves tenha ido aos Playoffs apenas uma vez, para perder na primeira rodada. O que chocou a NBA foi a MANEIRA como os resultados insatisfatórios aconteceram: um time desmotivado, rachado, com uma das piores defesas da liga. O Wolves, que estava entre as 10 melhores defesas da NBA antes da chegada de Thibodeau, despencou para a quarta PIOR defesa com a chegada do técnico. Em seu último ano em Minessota, Thibodeau conseguiu alguma melhora: a defesa alcançou o posto de sétima pior.
Um único projeto fracassado dentro de um currículo vencedor não deveria ser motivo para encerrar carreiras; a situação desastrosa em Minessota poderia ser apenas fruto de um mal encontro, de um elenco defensivamente limitado ou de questões externas às quadras. Afinal, o time teve uma dose generosa de dramas e lesões, e alcançou alguns bons momentos que apenas não se mantiveram. Mas a percepção dentro da NBA não era essa: o fracasso de Thibodeau no Wolves parecia indicar muito mais do que um caso em particular, parecia mostrar uma tendência. Primeiramente, indicava – associado à queda de outros técnicos ao redor da liga – uma possível incompatibilidade entre os técnicos “linha dura” que haviam dominado o basquete por décadas (e que tinham em Thibodeau um exemplar notório) e os jogadores da nova geração. E além disso – e ainda mais importante -, parecia apontar para a impossibilidade de se usar esquemas defensivos dos anos 90 para combater os super-ataques resultantes da “revolução analítica” dos anos 2000 e tão unanimamente focados nas bolas de três pontos.
Em outras palavras, o medo na NBA era de que a passagem de Thibodeau pelo Wolves tivesse deixado explícito que suas ideias ideias defensivas (e sua postura) não fossem mais condizentes com os novos tempos. Aparentemente as coisas mudaram no basquete e Thibodeau parecia simplesmente ter ficado para trás.
É por isso que, quando Thibodeau assumiu o New York Knicks nessa temporada – e, mais do que isso, começou a levar o time às vitórias – fiquei obcecado em descobrir o que estava acontecendo. Teria finalmente Thibodeau feito concessões e se ajustado aos novos preceitos do basquete? Será que suas ideias precisam necessariamente de elencos específicos que ele nunca conseguiu construir em Minessota? Ou será que nossas impressões do que é ou não possível no basquete moderno – impressões essas que quase aposentaram Thibodeau – eram simplesmente incorretas ou exageradas? Responder a essas questões não conta apenas a história do Knicks e do Thibodeau nessa temporada – conta também a história de como o basquete muda e como nossas percepções mudam com ele.
Antes de abordar a parte tática, talvez seja interessante explorar um dos aspectos mais visíveis de Thibodeau aos olhos dos torcedores e dos leigos em geral: sua postura com os jogadores. É difícil ignorar esse ponto quando ele fica evidente ao simples passar dos olhos: Thibodeau não sorri. Sua voz rouca tão característica está sempre gritando com os jogadores, cobrando comprometimento ou apontando alguma falha. Seu semblante preocupado parece fixado em seu rosto; “eu me preocupo com tudo o tempo todo”, admite. Famoso por ser um técnico que não aceita “bobagens”, Thibodeau é conhecido por ser um técnico que não tolera falta de esforço e que não oferece segundas chances. Se desconfia que um jogador não está se esforçando o suficiente, esse jogador simplesmente sai da rotação – não é “confiável” e, portanto, não joga mais. O resultado indireto é que os jogadores que são reconhecidos por Thibodeau como confiáveis e que caem em suas graças acabam recebendo responsabilidades colossais: jogam o máximo de minutos possíveis, e Thibodeau faz questão de contar com eles onde quer que ele vá. Em seus três empregos como técnico (Bulls, Wolves e Knicks), não teve vergonha de repetir jogadores. Contou com Derrick Rose e Taj Gibson nas três equipes, e Luol Deng e Jimmy Butler em duas. Essa fixação tem seus preços: para termos uma ideia, trazer Jimmy Butler para o Wolves, por exemplo, custou ao time Lauri Markkanen, Kris Dunn e a possibilidade de pagar por Zach LaVine, o que parece ainda pior quando lembramos que Jimmy Butler praticamente só passou uma temporada no time.
Além disso, suas rotações de jogadores são curtas e seus jogadores de confiança praticamente não saem de quadra. No Wolves, os três jogadores com mais minutos na NBA jogavam para Thibodeau; agora, no Knicks, são dois. “É como eu digo desde o primeiro dia”, afirmou Jeff Teague nos seus tempos de Wolves, “os jogadores ficam cansados. Acho que o banco precisa de mais oportunidades. Com sorte Thibodeau vai perceber que eles podem jogar duro e ajudar, e vai dar uma oportunidade pra eles.” Não aconteceu. Na lógica de Thibodeau, em que tudo precisa ser conquistado e em que os jogadores precisam ser responsabilizados pelos seus erros, o banco apenas não mereceu. E os jogadores merecedores de tempo de quadra foram agraciados com tantos minutos quanto humanamente possível.
Essa abordagem é mais um aspecto que parece ter envelhecido mal. Hoje, mais do que nunca, a medicina esportiva aponta a necessidade de se controlar a carga – o tão em voga “load management” – para que os atletas possam jogar melhor por mais anos. A ideia central é que o esforço principal deveria ocorrer nos treinos, em ambientes controlados, e nunca nos jogos. Numa partida oficial, o atleta deveria apenas repetir um nível de esforço que os treinos tornaram confortável, jamais excedê-lo, e isso envolve uma ênfase de tempo muito maior para os treinamentos do que para as partidas em si. É por isso que cada vez mais times percebem os méritos de poupar jogadores e, quando possível, deixá-los de fora de partidas da temporada regular; Thibodeau, no entanto, faz justamente o contrário, potencialmente comprometendo a saúde e o rendimento de seus atletas. Não é à toa que por tantas vezes Thibodeau já entrou em conflito com os dirigentes das franquias em que trabalha, exigindo uma “autonomia” que não condiz com a abordagem multidisciplinar do esporte profissional moderno.
Mas os minutos excessivos para seus jogadores de confiança são apenas os efeitos colaterais de um pressuposto que, por sua vez, já não é bem visto na NBA: que os erros e uma possível “falta de esforço” de um atleta não podem ser tolerados e deveriam lhe custar um espaço na rotação. Essa lógica, muito comum no basquete universitário dos Estados Unidos, não é muito popular na NBA e talvez explique um pouco a razão de tão poucos treinadores consagrados do basquete universitário serem capazes de fazer uma transição para o basquete profissional. Rick Pitino e John Calipari, por exemplo, dois dos mais bem sucedidos técnicos da história do basquete universitário, tiveram passagens desastrosas pela NBA e eventualmente fizeram o caminho de volta. É claro que cada caso tem suas particularidades, e além disso existem muitos motivos que dificultam essa transição: pequenas diferenças de regra, cronômetro de arremesso mais longo, uma tradição de defesas por zona muito antes da NBA permitir esse tipo de defesa, etc. Mas acredito que a chave principal para entender a dificuldade de realizar essa passagem está no fato de que, ainda que lidem com jovens jogadores e auxiliem esses atletas em seu desenvolvimento, técnicos universitários precisam ter uma abordagem extremamente imediatista e não podem se dar ao luxo de pensar a longo prazo. Times universitários são montados ano a ano pensando em conquistas imediatas, já que os principais jogadores podem deixar o time a qualquer momento em busca de oportunidades na NBA, em outras ligas profissionais ou mesmo em outras faculdades com melhores condições ou mais visibilidade. Há muito esforço para criar times coesos e bem entrosados, mas pouco em desenvolver atletas para que possam desabrochar a longo prazo. A ideia de dar minutos para um jogador se desenvolver 3 anos no futuro e tolerar momentaneamente seus erros e limitações simplesmente não faz sentido dentro da lógica do basquete universitário e é fundamental para os times da NBA, que com raras exceções – os times que possuem chances imediatas de título – estão sempre se preparando para temporadas futuras.
Em parte por conta dessa necessidade de vitória imediata, em parte por uma questão hierárquica – que tem a ver com a idade dos atletas e com uma situação não tão incomum de vulnerabilidade dos jogadores, que dependem dos seus técnicos para ter chances de uma carreira profissional -, é bem comum que os técnicos universitários também tenham uma abordagem “linha dura”, em que os jogadores obedecem sem contestar e em que gritos e abusos psicológicos de várias espécies são não apenas comuns mas esperados. Ao longo dos anos criou-se uma romantização do “amor durão”, uma romantização do técnico – ou do professor, ou do pai, ou de outras figuras de autoridade – que é bruto e exigente apenas porque se importa, e que extrai na base do grito e da punição o que há de melhor em cada um. Essa visão romantizada do sofrimento perdeu muito espaço na sociedade, especialmente na última década, e o esporte – como bom espelho da nossa cultura – parece ter seguido a tendência. Provavelmente o caso mais emblemático da queda dos treinadores “durões” foi o fim de carreira do técnico Scott Skiles, famoso por proibir “adereços” de seus jogadores, como faixas na cabeça, por exemplo. Depois de 10 anos de carreira como treinador, brigas constantes com seus atletas e uma fama de exigir treinamentos duros que afugentava jogadores de assinarem com as franquias que ele comandava, Skiles se viu obrigado a fazer concessões e liberar as faixas na cabeça do seu time na época, o Bucks. Mesmo assim teve desentendimentos com seu elenco e acabou deixando a equipe. Assumiu o Orlando Magic alguns anos depois e, após mais uma série de contratempos, afirmou que “não era o técnico certo para o time” e deixou o cargo. Nunca mais assumiu uma equipe da NBA – pelo jeito, não era o técnico certo para ninguém. Os tempos haviam mudado.
Após sua passagem pelo Wolves, Tom Thibodeau, que começou sua carreira de técnico no basquete universitário, parecia fadado a seguir o mesmo caminho de Skiles. Quando assumiu o comando da equipe, os três principais jogadores sob sua tutela – Karl-Anthony Towns, Andrew Wiggins e Zach LaVine – tinham apenas 21 anos e esperava-se, ao contrário da abordagem universitária, que fossem lapidados para o futuro da franquia. Ao invés disso, Thibodeau estava mais interessado em jogadores nos quais já confiava, o que rendeu ao time o apelido jocoso de “Timberbulls” após a chegada de Taj Gibson, Derrick Rose, Luol Deng e Jimmy Butler, todos presentes em sua passagem vitoriosa anterior pelo Bulls. Andrew Wiggins, uma das grandes apostas do Wolves, regrediu nitidamente em vários aspectos sob comando de Thibodeau, apesar de ter recebido um contrato máximo que o estabeleceu como peça fundamental do futuro da franquia. Mas os problemas em Minessota foram para além do desenvolvimento de atletas e do excesso de minutos para os veteranos de confiança; a postura durona de técnico universitário de Thibodeau, que havia notoriamente criado uma coletividade vencedora em Chicago (algo entre um exército e uma família) não teve o mesmo impacto em seu novo time. Pelo contrário, seus gritos e cobranças pareciam alienar diversos jogadores, que foram ficando apenas mais desmotivados e receosos de errar. Jimmy Butler, na época, não hesitou em apontar dedos. “Temos que ser mais durões, temos que jogar com mais senso de urgência. Os times fazem o que querem com a gente, não gosto nada disso. Não tem técnico algum do mundo capaz de fazer alguém dar duro. Não tem técnico algum que pode te fazer querer algo, desejar algo.” Butler achava que era uma questão de desejo, de vontade, mas não seria isso apenas uma incompatibilidade de gerações, em que jogadores de 21 anos não lidariam da mesma maneira que os veteranos e, pouco a pouco, cada vez menos jogadores na NBA conseguiriam reagir positivamente à abordagem de Thibodeau?
A preocupação de que os maneirismos de Thibodeau haviam se tornado antiquados, no entanto, era secundária perto do receio de que suas ideias táticas houvessem se tornado impraticáveis no basquete moderno. Ofensivamente, a desconexão com o tempo vigente é mais do que evidente: nenhum time comandado por Thibodeau jamais esteve entre os 15 a mais arremessar bolas de três pontos numa temporada, ou seja, sempre estiveram na metade de baixo da tabela num dos quesitos mais importantes dos últimos anos. Mas é defensivamente que o anacronismo de Thibodeau causou mais preocupações.
Para entendermos a dificuldade de aplicar seus preceitos defensivos nos dias atuais, precisamos antes entender sua proposta principal: focar a defesa no “lado forte”. O “lado forte” (ou “strong side”, em inglês) é a metade da quadra de ataque em que a bola se encontra em um dado momento. Essa “metade” se dá traçando uma linha imaginária que vai do aro até o centro da quadra, dividindo a quadra de ataque em duas partes iguais. Qualquer desses lados em que a bola se encontre é denominado o “lado forte”; o lado oposto, por consequência, é o “lado fraco”. Se a bola for levada para o outro lado, então a denominação se inverte – o conceito se dá sempre a partir do local em que a bola se encontra.
A defesa de mano-a-mano, ou “individual” como também é chamada, ignora completamente a ideia de “lado forte” ou “lado fraco”. Na defesa “individual”, cada defensor é responsável por um jogador adversário independente de onde eles estiverem na quadra. Isso garante que nenhum oponente ficará sozinho; toda a ideia desse tipo de defesa é não permitir que um jogador fique desmarcado. Embora pareça ideal na teoria (deixar um jogador da NBA livre pode ser uma loucura), os ataques foram se desenvolvendo ao longo dos anos para explorar as limitações dessa defesa. A maneira mais simples de explorá-la é deixar o jogador que está com a bola no “lado forte” (afinal, esse é sempre o lado onde a bola está) e todos os outros jogadores do seu time no lado oposto da quadra, no “lado fraco”. Isso faz com que o jogador que tem a bola ganhe uma metade inteira da quadra de ataque apenas para ele e seu defensor – espaço suficiente para que seja possível driblar, empurrar, ganhar velocidade ou o que for necessário para eventualmente bater esse defensor ou ao menos ganhar algum tipo de vantagem sobre ele. É possível criar movimentações sofisticadas para que o jogador que tem a bola seja marcado por um defensor menos capacitado, ou menor, ou mais lento, ou chamado Enes Kanter, e aí torna-se ainda mais fácil explorar a vantagem de enfrentar esse defensor sem nenhum outro adversário próximo.
Para evitar isso, Thibodeau propõe que o “lado forte” tenha sempre pelo menos um defensor a mais do que o número de jogadores atacando. O jogador que tem a bola, portanto, está sempre enfrentando ao menos um defensor a mais – o que, por sua vez, necessariamente significa que do “lado fraco”, oposto à bola, algum jogador atacando está necessariamente livre. Se a bola for passada para esse jogador livre, os defensores precisam se ajustar – o “lado forte” agora é o outro, e é preciso não apenas marcar esse jogador livre mas também trazer um defensor a mais do que existirem jogadores atacando. Como a área a ser atravessada para que isso ocorra é muito grande – o que poderia simplesmente impossibilitar os defensores de chegarem a tempo do lado oposto, cedendo sempre arremessos livres – os defensores tentam ficar sempre próximos ao garrafão. Na prática, é como se eles jogassem numa quadra menor, que ignora o perímetro, e assim precisam viajar distâncias menores para impedir os arremessos livres. A foto abaixo, icônica, mostra como era essa defesa aplicada pelo Chicago Bulls de Tom Thibodeau:
No caso da foto, LeBron James tem a bola nas mãos – a metade da quadra em que ele está, na parte de cima da foto, é o “lado forte”. Percebam que há um defensor próximo a LeBron, mas outros dois defensores estão também do “lado forte”: um na cabeça do garrafão, próximo à linha de lances livres, e outro embaixo da cesta. Do lado oposto, o Miami Heat de LeBron James tem quatro jogadores: um no garrafão e outros três no perímetro. A resposta defensiva do Bulls, no entanto, é manter um jogador marcando LeBron e os outros QUATRO nas proximidades do garrafão. Os três jogadores do Heat no perímetro possuem apenas um defensor minimamente próximo. A ideia é que caso LeBron passe a bola para lá, os defensores se ajustem – mudem de lado – caminhando pouco, mantendo ao menos um pé próximo ao garrafão.
Existem duas dificuldades principais com essa defesa: uma atemporal e outra específica do nosso momento atual. A atemporal é a necessidade de entrosamento e comunicação entre os defensores. O conceito desse esquema defensivo é nunca deixar um defensor ter que lidar sozinho com um adversário, ou seja, é não ter que contar com um defensor individualmente talentoso para se safar – um conceito muito ligado ao basquete universitário, em que os técnicos simplesmente não podem garantir nem a qualidade defensiva dos atletas que recrutam, nem o tempo que seus melhores defensores passarão na equipe. É justamente para manter esse conceito de defesa coletiva em detrimento de uma defesa individual que Thibodeau implementa uma série de outras táticas complementares – sendo o “ice” o mais famoso, prática em que os defensores tentam se antecipar a um corta-luz para que o adversário não possa escolher seu defensor individual do “lado forte” da quadra. O problema é que a aplicação desses conceitos exige coletividade defensiva e comunicação constante entre os defensores, tanto para que possam se antecipar quanto para que dois defensores não corram para o mesmo adversário na hora em que o “lado forte” se inverte. É necessário uma espécie de rotação dos defensores, em que cada defensor corre para o adversário mais próximo do lado oposto da quadra, mas é essencial que exista entrosamento para saber que você NÃO DEVE correr em direção a um adversário se ele também for o mais próximo de um companheiro do seu time. Há todo um cálculo envolvido: você pode ter que correr para um oponente que não seja o mais próximo se a distância que um companheiro seu teria que percorrer nesse caso for maior do que a segunda opção que você tem de marcação. E isso, claro, precisa ser comunicado em voz alta o tempo inteiro. Nem todos os times possuem esse perfil de vocalização – e nem todos os times ENTENDEM o que deveriam estar fazendo, o que muitos dizem nos bastidores que foi o que ocorreu com o elenco do Wolves. Jogadores incapazes de entender ou comunicar são problemas que podem ocorrer em qualquer time, de qualquer esporte, em qualquer momento.
Mas fora isso, há um problema mais específico e contemporâneo: o fato de que não é mais possível, na era de bolas de três pontos em que vivemos, ter quatro ou cinco jogadores marcando dentro do garrafão. Nos três anos em que Thibodeau esteve lá, o Wolves esteve entre os 10 times que mais cediam bolas de três pontos convertidas para os adversários – e esse número foi piorando ano após ano, conforme as bolas de três foram ficando mais populares. No último ano de Thibodeau, o Wolves cedia o segundo melhor aproveitamento em bolas de três pontos para os adversários – pior do que eles, só o Cavs que venceu míseros 19 jogos e teve a segunda pior campanha da NBA naquela temporada. Nesse vídeo aqui é possível ver exatamente como os ataques conseguiam tantas bolas de três pontos contra aquele Wolves.
O melhor modo de vencer defesas focadas no “lado forte” é passar a bola para o outro lado e arremessar de três pontos antes dos defensores conseguiram chegar. Numa liga forrada de arremessadores especialistas, em que os jogadores arremessam cada vez melhor e batem recordes históricos de aproveitamento cada vez mais longe da cesta, a prática desse tipo de defesa parece inviável.
Foi assim que, com uma proposta defensiva e uma personalidade aparentemente incompatíveis com aquilo que se espera hoje na NBA, num período de 3 anos Tom Thibodeau foi de técnico mais cobiçado a técnico desempregado – potencialmente para sempre.
A contratação de Thibodeau pelo Knicks para o começo da temporada 2020-21 foi surpreendente, não apenas pelas questões gerais que levantamos anteriormente mas também pelos agravantes específicos ao Knicks: o time era um dos três mais jovens da NBA, precisando de um desenvolvimento de longo prazo após não conseguir atrair estrelas como Kyrie Irving e Kevin Durant, e não há um histórico conhecido de autonomia dos técnicos na franquia. Pelo contrário, o Knicks é famoso por ter uma diretoria que ano após ano interfere nas decisões de quadra e que não oferece muita estabilidade para os seus técnicos.
Mais surpreendente que a contratação, apenas os resultados. O Knicks pareceu imediatamente um time melhor com a chegada de Thibodeau, e com o passar dos jogos seguiu evoluindo. Mesmo com o menor gasto em salários de toda a NBA e com um elenco a princípio virtualmente idêntico ao da temporada passada, quando acabou entre os 4 piores times do Leste, o Knicks conseguiu uma marca de 8 vitórias e 8 derrotas nas suas primeiras 16 partidas – o tão sonhado 50% de aproveitamento, tão almejado e tão distante por muitos anos. Manter a marca parecia praticamente impossível, mas o time foi além e terminou a temporada com 10 vitórias a mais do que derrotas, suficiente para um impensável mando de quadra nos Playoffs. E durante todo esse trajeto, cada nova vitória alimentava mais minha obsessão de descobrir o que estava acontecendo. Thibodeau havia mudado o discurso com os jogadores? Mudado seus preceitos defensivos? Aberto mão de seus veteranos de confiança de longa data? Feito concessões para os novos tempos? E quanto mais entrevistas eu assistia, mais jogos do Knicks eu acompanhava (e eventualmente voltei até mesmo aos jogos antigos do Bulls e do Wolves, para poder fazer comparações) e mais a temporada avançava, mais eu chegava a uma conclusão muito, muito estranha: nada significativo mudou.
Ainda no breve período de treinos antes dessa temporada começar, um assistente técnico do Knicks afirmou que todo o trabalho de Thibodeau com seu elenco era para criar “comunicação e conexão em quadra entre os jogadores”. E esclareceu: “Eles repetem alguns circuitos praticamente todos os dias para aprender um sistema inteiro de comunicação entre eles. Todo cenário possível de acontecer é ensinado durante esses treinos.” Já era um indício de que Thibodeau estava tentando construir as bases necessárias para sua defesa – aquela que os jogadores do Wolves não entendiam e na qual eram incapazes de se comunicar.
Mas talvez o sistema defensivo fosse alterado, ou talvez a comunicação também tivesse a intenção de construir um sistema ofensivo focado em arremessos de alto aproveitamento, pensei. Uma das primeiras entrevistas de Thibodeau no controle do Knicks, entretanto, mostrou o contrário: “Se a gente confiar inteiramente na nossa defesa, em pegar rebotes e em desperdiçar pouco a bola, tenho certeza que isso nos colocará em condições de vencer os jogos independentemente de quão bem estivermos arremessando num jogo específico.” O discurso poderia perfeitamente ter saído dos lábios de um Thibodeau bem mais jovem, com menos rugas e mais cabelo, ainda no comando do Bulls ou mesmo como assistente técnico no Knicks exatos 20 anos antes.
Quando o time começou a vencer e surpreender tanto os torcedores quanto os especialistas, Thibodeau deu uma entrevista mostrando-se profundamente preocupado com o ritmo da temporada – não porque seus jogadores estavam ficando cansados com sua prática de não descansar seus jogadores de confiança, mas porque o time não estava conseguindo treinar o suficiente. “Precisamos voltar ao trabalho. Às vezes passamos por alguns períodos em que não conseguimos tempo para treinar o suficiente, então acho que poder treinar mais nos faria muito bem nesse momento”. Dois jogadores do Knicks lideraram a NBA em minutos jogados na temporada – Julius Randle e RJ Barrett – e Thibodeau, mesmo assim, passou a temporada reclamando que não conseguia treinar o bastante.
Sua crença em manter seus jogadores de confiança próximos também não foi abalada e o técnico fez questão de adicionar novamente Derrick Rose e Taj Gibson ao elenco, mesmo que isso tirasse minutos de jovens jogadores possivelmente importantes para o futuro da franquia – num momento em que ninguém acreditava que fosse viável sonhar com quaisquer conquistas imediatas e o o futuro fosse a única coisa disponível ao Knicks.
Mas e taticamente, o que mudou? Não muita coisa. O foco nos rebotes, que Thibodeau fez questão de ressaltar na entrevista e que não é um assunto muito na moda, de fato se concretizou: o time foi o quarto melhor em garantir rebotes na temporada, e isso porque começou devagar – é o primeiro colocado se contarmos apenas a partir de fevereiro. Ofensivamente, mesmo sob o preceito de que os jogadores que se esforçam e são dedicados na defesa possuem carta branca para fazer o que quiserem no ataque, o Knicks ainda é um dos 5 times que menos arremessa bolas de três pontos – mas compensa isso com um aproveitamento altíssimo de quase 40%, um dos 3 melhores da liga mesmo numa temporada que nunca teve aproveitamento tão alto, com uma média geral de quase 37%. Os números baixos de tentativas são indicativo de que há pouca construção de jogadas específicas para que esses arremessos do perímetro sejam dados em condições ideais, algo que acreditávamos inviabilizar quaisquer chances de competir em condições de igualdade na NBA atual. O Knicks, entretanto, não está sozinho remando contra a maré: Sixers e Lakers, potências de suas respectivas Conferências, também figuram entre os times que menos arremessam de três pontos.
O que Sixers, Lakers e Knicks tem em comum para poder se dar ao luxo de arremessar pouco do perímetro é que os três times são justamente as três melhores defesas da temporada. E o mais fascinante é que o Knicks terminou a temporada com a terceira melhor defesa da NBA em pontos tomados a cada posse de bola usando os mesmíssimos princípios aplicados em todos os outros times de que Thibodeau já fez parte. E como Thibodeau fez para resolver o fato de que sua ideia de defender o “lado forte” oferece bolas de três pontos livres para os adversários? Simples: não fez. O Knicks é um dos times que mais oferece bolas de três pontos para os adversários, que tentam arremessar do perímetro contra eles em níveis exorbitantes, muito acima da média do resto da liga. Como isso pode dar certo, então? Como pode ser possível uma defesa sobreviver oferecendo tantas bolas de três, contrariando muitos dos consensos construídos recentemente sobre como devem ser as defesas da NBA?
Quanto tenta-se explicar os motivos do aproveitamento geral nas bolas de três pontos estar subindo todos os anos, aparecem uma série de questões táticas: os jogadores ficam mais distantes uns dos outros, o famoso “espaçamento”, dificultando a aproximação dos defensores; a ausência de pivôs cria mais espaço para arremessadores; as jogadas são desenhadas com esses arremessos em mente; etc. Mas há um motivo importante que muitas vezes passa despercebido: os arremessadores simplesmente FICARAM MELHORES. Graças aos avanços da medicina esportiva e da preparação física, além de um foco em determinados aspectos do jogo desde a infância, jogadores agora chegam à NBA capazes de arremessar mais, melhor e de mais longe do que em qualquer outro momento da história. Isso está nos levando a questionar o que a defesa pode trazer como resposta, já que mudanças táticas não parecem ser suficientes para parar um avanço que é simplesmente físico e técnico. Mas a chegada de Thibodeau ao Knicks nos fez perceber uma coisa que parece óbvia, mas ainda não tinha sido formulada com clareza na NBA: o avanço físico e técnico também está presente nos jogadores quando eles estão na quadra de defesa.
O que Thibodeau pede de seus atletas é uma reprodução de seu modelo defensivo consagrado, com um único adendo: agora já não é mais possível que os defensores fiquem todos próximos ao garrafão, limitando as distâncias a serem percorridas, poupando os defensores e impedindo, com movimentação inteligente, que os adversários do lado oposto da bola fiquem livres. Nos novos tempos, é preciso marcar TAMBÉM o perímetro, e quando a bola for passada para o “lado fraco”, os defensores simplesmente precisam ser fisicamente capazes de percorrer esse espaço mais rápido do que nunca. Na cabeça de Thibodeau, se os jogadores são mais rápidos e fortes, então precisam usar isso defensivamente em todas as posses de bola para compensar a força e a rapidez dos adversários.
Na prática isso tem um efeito muito engraçado: os jogadores do Knicks, na defesa, estão sempre atrasados. Não é uma questão de falta de vontade, mas de LEIS DA FÍSICA. Passam o jogo inteiro correndo de um lado para o outro, e dificilmente conseguem chegar a tempo de impedir um arremesso de três pontos porque é impossível que viagem na mesma velocidade que a bola. Mas eles estão sempre A CAMINHO, correndo, pulando e se esticando para tentar contestar arremessos em vias de acontecer. E é aqui que a lógica atual dos arremessadores acaba funcionando contra eles próprios: a ideia geral é arremessar assim que houver o mínimo de espaço entre eles e o defensor mais próximo, independente de quando ou como isso ocorra, mas os defensores do Knicks, em movimento, estão mais próximos do que parecem. É uma armadilha: o arremessador arremessa porque foi instruído a interpretar esse pequeno espaço como um arremesso ideal, mas acaba tendo seu arremesso contestado ou então tendo que acelerar a mecânica de arremesso porque há alguém se aproximando rapidamente.
Alguns arremessadores, por sua vez, entendem que se há um defensor correndo em sua direção, tentando contestar seu arremesso, o ideal é tocar a bola para outro companheiro e se aproveitar de que a defesa está em movimento para encontrar um arremesso de três pontos ainda mais livre. Contra o Knicks, no entanto, esse arremesso “mais livre” nunca vem – o suposto companheiro mais livre também tem um defensor desesperado, ligeiramente atrasado, correndo em sua direção. Outra possibilidade para os arremessadores nesses casos é aproveitar que o defensor está em movimento e fintar, colocar a bola no chão e usar o espaço para infiltrar, mas isso é justamente o que o Knicks tanto quer – que os adversários abram mão dos arremessos do perímetro, viajem de volta aos anos 90 e tentem atacar a cesta, onde é muito mais fácil que vários defensores possam se juntar para contestar em grupo. O resultado dessa abordagem é fascinante: numa liga em que 37% de todos os arremessos de três pontos entram no aro, o Knicks limita seus oponentes a TRINTA E TRÊS POR CENTO DE APROVEITAMENTO, disparado o melhor número da NBA. O time paga um preço, com jogadores caindo em fintas o tempo inteiro, cometendo muitas faltas, continuamente tentando se antecipar e sendo batidos no drible, mas a longo prazo compensa inteiramente porque os adversários não encontram arremessos ideais, vão tentando acelerar as suas decisões e o aproveitamento despenca. É um desses casos raros em que a transformação está muito mais na vontade e na capacidade atlética do que exatamente num desenho tático. E o que não falta nesse Knicks, como essa temporada deixou tão claro, é vontade.
Se a transformação defensiva do Knicks parece estar muito mais na vontade e na capacidade atlética do que exatamente num desenho tático, então o caso de Julius Randle talvez seja o mais emblemático para entendermos esse processo. Randle é um fruto direto da “Mamba Mentality”, alguém que jogou ao lado de Kobe Bryant no Lakers e que presenciava os regimes de treinamento obsessivos de Kobe. Foi com sua ajuda que, ainda em Los Angeles, Randle cortou sua gordura corporal de 14% para 6%. E ao término da temporada passada, aproveitando-se do longo período sem jogos por conta da “bolha” da NBA, cortou qualquer contato com álcool e passou a dar 1500 arremessos por dia em sua quadra particular. Depois de disputar minutos com Marcus Morris na temporada passada e nunca cair exatamente nas graças do então técnico do Knicks, David Fizdale, Randle quis estar preparado para enfim assumir uma posição de protagonismo. Assim que a temporada começou, colocou em prática um conselho de longa data de Kobe para ele: encontrar uma quadra assim que chegasse a uma cidade diferente, em todos os jogos fora de casa, e treinar arremessos imediatamente após descer do avião, independente do horário ou do tempo de voo. Kobe afirmava que esse hábito fazia toda a diferença e Randle resolveu aplicá-lo.
É evidente que esse tipo de postura fez sucesso com Tom Thibodeau, que promoveu o atleta à sua seleta lista de jogadores de confiança. Como prêmio, o fardo de liderar a NBA em minutos, mas também a possibilidade inédita de ser o jogador que Randle sempre quis ser e não lhe permitiam. Nos seus tempos de escola, ainda no Ensino Médio, Julius Randle era um “playmaker”, um criador de jogadas que atuava basicamente como ala-armador. No basquete universitário, entretanto, por conta da sua força e tamanho, foi aproximado do garrafão e usado num papel completamente diferente – o que, inclusive, lhe fez despencar no draft da NBA. No Lakers, acabou quebrando a perna em seu primeiro jogo profissional e perdeu toda a primeira temporada. Quando voltou, esperava-se que usasse seu tamanho para infiltrar e forçar seu caminho para a cesta, o que nunca foi exatamente seu forte. Thibodeau foi o primeiro a permitir que Randle fizesse o que bem entendesse no ataque, como recompensa pelo seu esforço dentro e fora das quadras e pela sua intensidade defensiva. O resultado foi que Randle mergulhou na sua grande paixão, os arremessos de meia distância, aquele arremesso que se deu quase como encerrado na NBA por ter baixo aproveitamento e gerar menos pontos do que as bolas do perímetro. Mas Randle transformou esses arremessos no seu ganha-pão, acertando inacreditáveis 47% de seus arremessos longos de dois, dados um passo à frente da linha de três. Além disso, mesmo não tendo o melhor controle de bola, nem a melhor visão de jogo, nem a maior capacidade de passe, Randle ganhou a chance de ser o “playmaker” de seus tempos de colegial, levantando uma questão interessante: como é possível que um jogador adquira todas essas capacidades em situações em que ele não tenha a oportunidade de aprendê-las, adquiri-las ou praticá-las? Como esperar que um jogador tenha um arremesso eficiente se ele não é colocado em quadra nas posições em que pode ser eficiente?
O voto de fé em Julius Randle coloca em xeque a ideia de um Tom Thibodeau “técnico universitário” que não pensa no desenvolvimento dos atletas e não tem paciência com jogadores jovens ou ainda em desenvolvimento. O que parece é que Thibodeau não vê problemas em jogadores aprenderem na prática, e seus jogadores de confiança tem muitas oportunidades – e MINUTOS de quadra – para desenvolverem e aperfeiçoarem o que for necessário, desde que mostrem disciplina, esforço e aceitem ser criticados e responsabilizados por seus erros. Uma das palavras mais presentes no discurso dos jogadores nessa temporada é algo como “responsabilidade” (em inglês, “accountability”), a importância de arcar com os erros e executar aquilo que os outros jogadores precisam que você execute para que possam também desempenhar seus papéis. Thibodeau está sempre mais preocupado com os erros do que feliz com os acertos – inclusive viralizaram algumas imagens, como essa abaixo, comparando o sorriso do ex-técnico Fizdale nas derrotas com a pose CANARINHO PISTOLA do Thibodeau nas vitórias – e embora isso possa desmotivar alguns atletas, para outros serve como motivação, chance de aprendizado e uma necessidade de se justificar (e fazer melhor) frente aos seus colegas de time que dependem de você da mesma forma que se depende deles.
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— The Knicks Wall – x (@TheKnicksWall) January 1, 2021
Com o desenvolvimento de Julius Randle, que alcançou as maiores médias da carreira em pontos, rebotes, assistências, roubos e aproveitamento nas bolas de três (e é amplo favorito para o prêmio de Jogador que Mais Evoluiu na temporada), além do desenvolvimento de outros jovens atletas como RJ Barrett, Nerlens Noel e o novato Immanuel Quickley, começaram inclusive a aparecer histórias sugerindo que Thibodeau seria, na verdade, EXCELENTE no desenvolvimento de atletas e teria trabalhado com isso em diferentes franquias. Segundo Jeff Van Gundy, por exemplo, Thibodeau teria sido, inclusive, um dos responsáveis por treinar individualmente Yao Ming no Rockets, ganhando imediatamente um lugar cativo no meu coração. Por outro lado, jogadores como Frank Ntilikina e Kevin Knox, outrora esperanças do Knicks para o futuro, praticamente sumiram da rotação do time. É difícil entender quais são exatamente os critérios para que um jogador sequer seja considerado para entrar em quadra, mas é inegável que para alguns atletas a dinâmica com Thibodeau simplesmente funciona. E se vários jogadores conseguem se alinhar com o discurso e com a proposta, é possível criar um grupo verdadeiramente forte, unido e determinado – um em que Thibodeau precisa trancar o ginásio de treinamentos para FORÇAR seus atletas a tirar um dia de folga, o que de fato aconteceu com o Knicks nessa temporada, tamanha a obsessão do grupo em seguir seus treinamentos.
Me parece evidente que a abordagem de Thibodeau abandona alguns jogadores pelo caminho – aqueles que não caem em suas graças, aqueles que erram mais, aqueles incapazes de contribuir defensivamente, aqueles que não se motivam com sua postura apaixonada e nem sempre muito simpática em quadra. Mas parece igualmente evidente que alguns jogadores decolam nesse tipo de ambiente, capaz de catapultar um Julius Randle disposto a arremessar 1500 bolas diárias em sua casa rumo a um All-Star Game; capaz de pegar um elenco completamente desiludido, sem nenhum tipo de perspectiva, sentindo que são apenas “restos” de um plano fracassado de conseguir estrelas, e catapultá-los rumo a um mando de quadra nos Playoffs.
“Ele me entende, e eu entendo ele”, afirmou Derrick Rose assim que chegou ao Knicks praticamente no meio da temporada. “Nós realmente pensamos parecido”, completou. E às vezes, isso é exatamente o que falta para que um time possa deslanchar: alguém que acredite no técnico e em sua visão de basquete.
Longe de mim afirmar que “basta acreditar” para que algo se concretize; meu ponto é que times de basquete precisam às vezes insistir numa visão por tempo suficiente para que ela dê resultado, e só é possível insistir se os jogadores acreditarem que esse é o caminho correto. Um caso interessante envolve LeBron James, Dwyane Wade e Chris Bosh, na época recém-chegados ao Miami Heat. Era o começo da temporada 2010-11 e o time, apesar das altas expectativas e da reunião de talentos, não vivia um bom momento nas quadras. Diz a lenda que o trio começou, então, a questionar as ideias do técnico Erik Spoelstra, que tinha só duas temporadas como técnico profissional e nunca havia passado da primeira rodada dos Playoffs. Nos bastidores, falava-se sobre uma pressão para que o então presidente do time, Pat Riley, assumisse como treinador. Por que o trio parecia confiar mais em Pat Riley do que em Spoelstra? Simplesmente porque Riley havia sido campeão da NBA como jogador, como assistente técnico, e 5 vezes como treinador, o que cria uma percepção de que ele sabe o que é necessário para vencer. Spoelstra só permaneceu no cargo de técnico – e só ganhou o respeito e a confiança de LeBron, Wade e Bosh pelos anos seguintes – porque Pat Riley disse que confiava integralmente no jovem técnico e que eles deveriam confiar também. Realmente acredito que Riley estava certo – considero Spoelstra um dos melhores técnicos da NBA -, mas ele estar certo ou errado sequer é importante. Com um trio de talentos como aquele, a única coisa verdadeiramente importante para o Heat era que eles se comprometessem com um plano – QUALQUER plano. Alguns planos talvez tivessem dado ligeiramente mais certo ou mais errado do que outros, mas o único risco real para o Heat era plano nenhum, ou jogadores boicotando o plano por não acreditar nele.
Esse é um dos motivos de tantos times contratarem jogadores veteranos que já participaram de times campeões, mesmo aqueles que não foram protagonistas. Supostamente, por já terem experimentado um time campeão, esses jogadores seriam capazes de ATESTAR E DAR FÉ de que suas equipes atuais estão de fato fazendo o necessário para conquistar um título. Tornam-se figuras de legitimidade em que os menos experientes podem confiar, mesmo que esses veteranos sequer entrem em quadra.
Derrick Rose pode não ter sido campeão, mas participou de uma equipe que brigava por título e foi MVP de uma temporada. Quando ele afirma que Thibodeau é digno de confiança, que transformou sua carreira, que ele pode te alçar ao posto de MVP, os jogadores mais jovens não têm razão para duvidar. Assim que chegou, Rose tornou-se não apenas um vocal defensor de Thibodeau, mas também uma espécie de mediador, alguém que ajuda a transmitir a vontade da comissão técnica para os jogadores. Seu protagonismo no final das partidas pelo Knicks está muito ligado à percepção de que ele é o que está mais próximo do PLANO, o que melhor entende os preceitos táticos – e o plano, como ficou evidente ao longo da temporada, é inquestionável. Se dá errado, a justificativa é que ele apenas foi executado errado.
Depois de algum tempo em que toda a NBA acreditou que o plano de Thibodeau era incompatível com os novos tempos, um time que acreditou integralmente nesse plano foi o suficiente para que fossemos obrigados a acreditar também.
Querendo entender qual aspecto do plano de Tom Thibodeau havia mudado drasticamente a ponto de torná-lo viável na era das bolas de três pontos, dediquei a maior parte da minha temporada a assistir aos jogos do New York Knicks. Eu queria encontrar os ajustes e as novidades responsáveis por tamanha guinada. A história já estava mais ou menos pronta na minha cabeça antes mesmo da largada: era a saga de um técnico sisudo e teimoso que, frente às adversidades, tornou-se mais maleável, fez concessões e adequou-se às exigências de seu tempo e do mundo ao seu redor. Perdi noites e mais noites assistindo a jogos antigos e comparando o Wolves da temporada 2016-17 com o Knicks da temporada 2020-21 para perseguir com unhas e dentes essa narrativa. Mas calhou que a história não era nem o que eu pretendia, nem o que eu imaginava. A retomada de Thibodeau e a recuperação do Knicks são mais sobre insistência e resiliência do que sobre adaptação e maleabilidade. A grande solução de Thibodeau para uma defesa incapaz de percorrer todos os espaços foi “precisamos então correr mais rápido”. A solução para Julius Randle, que acertava 27% de suas bolas de três pontos e via o mundo lhe pedir para atacar o garrafão, foi insistir, arremessar 1500 bolas por dia e aumentar seu aproveitamento do perímetro para 41%. Thibodeau continua gritando com seus jogadores, continua exigindo demais de seu elenco, segue colocando atletas para jogar 37 minutos por jogo. A diferença é que agora essas suas particularidades são bem-vindas, bem recebidas, desejadas. Thibodeau insistiu até encontrar um lugar a que ele pertence.
Minha intenção era falar sobre adaptação, talvez por conta da quantidade de adaptações que todos precisamos fazer nos últimos tempos. Reescrevi esse texto dúzias de vezes, ao longo de meses, com esse propósito. Mas pelo jeito, ainda mais num ano tão duro de pandemia, tudo que a gente precisava era lembrar de que ainda é possível resistir e insistir.
Para o basquete, o sucesso do Knicks de Thibodeau traz uma lição importante sobre insistência que precisa ser considerada. Algumas práticas foram abandonadas nos últimos anos por serem consideradas ineficientes, terem um retrospecto negativo ou não parecerem capazes de responder às questões atuais sem que tenhamos insistido o suficiente nelas.
Associamos muito o abandono de algumas dessas práticas à recente revolução analítica, pautada nas estatísticas avançadas, mas a verdade é que esse processo sempre existiu, muito antes do uso de número, em todos os esportes. No futebol, por exemplo, a derrota da seleção brasileira para a Holanda na Copa do Mundo de 1974 transformou completamente o discurso sobre como deveria ser jogado o esporte no Brasil – o futebol “bonito” brasileiro ganhou uma imagem de “ineficaz”, e passou-se a desejar um futebol mais físico, com atletas mais resistentes e melhor preparados. Os resultados influenciam muito a direção em que os esportes caminham, com os times campeões gerando uma série de clones potenciais nos anos seguintes. Hoje, no basquete, times que arremessam poucas bolas de três pontos parecem absurdos, completamente diferentes das equipes que vimos ter sucesso recente, e contrários a todo um campo de análise que vem sendo desenvolvido. Mas a verdade é que alguns caminhos divergentes – como as bolas de meia distância, por exemplo – talvez precisem apenas de um pouco mais de insistência e especialização para mostrarem-se viáveis. Mesmo sob o preceito da alta eficiência que rege o basquete atual, as bolas de meia distância de Julius Randle são excelentes – assim como são as bolas de meia distância de Joel Embiid, por exemplo. Mais do que viáveis, talvez esses arremessos sejam agora, depois de um longo tempo “de castigo”, a solução para problemas recentes como as defesas por zona, por exemplo. Práticas antigas, que caem em desuso, podem acabar voltando à moda por serem respostas para problemas novos. Diferentes estilos de técnico e de jogador podem, de repente, serem retomados porque casam melhor com uma circunstância do que os estilos que julgamos serem mais modernos. O ritmo de jogo na NBA já subiu e já desceu, e depois subiu de novo; o foco dos times já foi o ataque, depois a defesa, e agora o ataque de novo; armadores “dribladores” já foram exaltados, depois humilhados, e então exaltados novamente. Os técnicos “linha dura” já foram quase unanimidade, depois se tornaram inaceitáveis, e agora encontram público novamente. Thibodeau, agora, está no lugar certo na hora certa. O Wolves era o lugar errado na hora errada. Mas às vezes, o único jeito de saber a diferença é insistir um pouco.