Quando a Espanha foi campeã da Copa do Mundo de Basquete Masculino em 2006, o mundo começou a perceber que havia algo de especial ali. Na final, os espanhóis deram uma surra na seleção da Grécia, que havia eliminado os Estados Unidos nas semi-finais. Pouco tempo depois, nas Olimpíadas de 2008, os Estados Unidos já estavam preparados para a Espanha: o famoso “Time da Redenção” conseguiu levar LeBron James, Kobe Bryant, Dwyane Wade e Carmelo Anthony e precisou de toda essa força para vencer os espanhóis numa final olímpica assustadoramente disputada.
Na época, ainda parecia ser o caso de uma daquelas “gerações de sorte”, quando por simples obra do acaso muitos jogadores talentosos nascem numa mesma época e são capazes de compor um mesmo elenco. Afinal de contas, quantos Carlos Navarro e Paul Gasol a Espanha seria capaz de produzir. não é mesmo?
Mas essa geração foi envelhecendo, novos nomes foram surgindo e os resultados continuaram aparecendo. Em 2012, foi a vez da Espanha mais uma vez enfrentar os Estados Unidos numa final olímpica ainda mais apertada; em 2016, enfrentando os Estados Unidos na semi-final, perderam por apenas 6 pontos e tiveram que se contentar com o bronze. Agora em 2019, mais de uma década depois daquele surpreendente título do mundial, foi a vez dos Estados Unidos tirarem um cochilo e a Espanha acabar de novo em primeiro lugar. Em comum entre os elencos campeões da Espanha em 2006 e em 2019, apenas o capitão Rudy Fernandez e o pivô Marc Gasol, que em seu primeiro título com a seleção tinha apenas 23 anos – mesma idade de Juan Hernangómez nesse mundial, sinal de que a seleção continua sempre se renovando.
Com mais de uma década de sucesso internacional com novos nomes constantemente alcançando a seleção, acho seguro dizer que a Espanha está fazendo alguma coisa MUITO CORRETA em sua relação com o esporte e suas categorias de base. Para entender exatamente o que, nossa maior pista vem de Dan Leslie Grunfeld, jogador que nasceu nos Estados Unidos, fez sucesso no basquete universitário mas, ao não ser draftado por nenhum time da NBA, foi jogar basquete na Alemanha, na Romênia, em Israel e, o mais importante para nosso estudo de caso, na Espanha. Seu relato de quem viu de dentro o basquete espanhol indica diferenças consideráveis com a maneira como os Estados Unidos lida com seus jovens atrelas – e, claro, uma distância abismal com as práticas aqui no Brasil.
Primeiramente, para lidar com jogadores de quaisquer idades na Espanha é necessário uma certificação de técnico concedida pela Federação de Basquete do país. O que isso significa é que ninguém treina, mentora ou aconselha os jovens jogadores sem uma formação básica e UNIFICADA. Na prática isso garante uma certa padronização em todas as categorias de base do país para que não existam grandes discrepâncias de fundamento, estilo ou identidade. Pode não parecer importante – ou até mesmo soar como uma “camisa de força” para a molecada mais talentosa – mas é isso que força os jovens atletas a serem treinados nos FUNDAMENTOS do basquete ao invés de para ocupar uma posição específica.
Aqui vale a gente comparar com o modelo dos Estados Unidos, em que os jogadores do Ensino Fundamental e do Ensino Médio jogam por suas escolas e também por equipes amadoras que participam de torneios nacionais ao redor do país. O que as escolas e esses times amadores mais querem é VENCER partidas, porque isso gera visibilidade, patrocínios, exposição nas redes de televisão e, consequentemente, dinheiro para essas instituições. Isso significa que os jogadores são recebidos para tapar os buracos que esses times precisam em busca do máximo de vitórias possível; se a equipe precisa de um reboteiro e recebe um jogador muito alto, vai colocá-lo para cumprir essa função e provavelmente estimulá-lo a se especializar nisso, por exemplo. Em última instância, isso se aplica também ao basquete universitário. A preocupação das equipes está em conseguir o melhor talento possível e colocá-lo para jogar na posição em que o time precisa que ele execute para maximizar suas chances de vitória.
No modelo espanhol isso tudo é impensável. Ao receber um jogador alto, uma equipe de base não cogitará torná-lo um especialista em rebotes porque NÃO PODE: o jogador deve ser treinado de acordo com as premissas básicas da Federação de Basquete, que afirmam que todos os jogadores devem ser especialistas em todos os fundamentos e não em posições específicas. Como não há realmente um mercado lucrativo de basquete de base – os jogos não vão passar nas televisões locais, os ginásios não ficarão cheios e as equipes não ganharão dinheiro por estarem vencendo mais – o foco pode ser exclusivamente na formação desses atletas. E para garantir que essa formação aconteça de maneira ordenada e criteriosa ao longo de toda a carreira do atleta, a partir dos 16 anos a Federação passa a acompanhar o desenvolvimento de cada jogador de destaque num grande cadastro nacional que é passado para os técnicos de cada equipe em que o atleta jogar. Quando um jogador muda de time, portanto, o técnico novo pode continuar a evoluir seu atleta exatamente de onde o técnico anterior parou, garantindo que o processo seja único ao invés de picotado pelas exigências e necessidades de cada equipe em particular.
Mas se os times estão tão focados em educar seus jogadores justamente porque não há uma cobrança por vitórias que gerariam dinheiro, de onde vem o financiamento para que isso aconteça? Aí está a sacada: é a Federação quem paga os técnicos e financia as equipes de base com o dinheiro que consegue de patrocínios, dos jogos da seleção principal e, PRINCIPALMENTE, de apoio estatal. Sim, o governo espanhol financia a Federação de basquete para permitir que exista uma preocupação na formação das próximas gerações de atleta, na crença de que isso se transforme eventualmente num basquete de altíssima qualidade e, com isso, o público consuma o produto basquete e possa torná-lo autossustentável.
Os resultados dessa política não surgem apenas nos resultados da seleção principal, mas também no mercado interno: a Liga Espanhola é certamente a maior da Europa, com ginásios lotados e uma limitação intencional de um máximo de dois atletas dos Estados Unidos por equipe, para garantir que os jogadores que saem da base tenham um lugar para jogar profissionalmente. Para Dan Grunfeld, sua passagem pela Espanha mostrou que todos os atletas locais, além de dominar os fundamentos, são também excepcionais companheiros de equipe – afinal, eles cresceram sem precisar ofuscar os seus companheiros para “mostrar seu talento”, pensam na coletividade e foram treinados para jogar de maneira obediente taticamente, coisa que jogadores dos Estados Unidos muitas vezes só vão aprender a duras penas depois de anos na NBA – ou nunca (abraços, Carmelo Anthony).
A isso, soma-se um detalhe que Kobe Bryant defende o tempo inteiro como “essencial” para as categorias de base: cestas de basquete mais baixas para os jogadores mais novos. O discurso contrário a essa prática diz que não é correto deixar os jogadores acostumados com uma altura diferente da oficial, já que eles nunca encontrarão alturas diferentes em suas carreiras profissionais quando adultos. Nos Estados Unidos, vemos jogadores muitíssimo jovens – tanto homens quanto mulheres – jogando em cestas de altura oficial e encontrando maneiras de acertar seus arremessos e bandejas de maneira impressionante. Mas o que Kobe defende – assim como a Federação de Basquete da Espanha – é que as crianças dos Estados Unidos até encontram maneiras de acertar suas cestas, mas é o MODO como eles fazem isso que importa – e preocupa. Para dar arremessos longos, os jogadores mais jovens precisam fazer movimentos estranhos para compensar o peso da bola, incluindo arremessos com forma de “catapulta” ou lançamentos com uma mão só. Isso cria vícios e hábitos que terão que ser enfrentados conforme o atleta torna-se mais alto e muitas vezes deixa cicatrizes intransponíveis no arremesso de alguns jogadores profissionais – se você já viu o Michael Kidd-Gilchrist arremessar, sabe que enquanto ele crescia alguma coisa ali deu MUITO ERRADO.
Se a altura da cesta é mais baixa e vai subindo gradualmente conforme os jogadores também crescem, é possível manter um PADRÃO na mecânica de arremesso, começando desde cedo com os hábitos corretos que poderão ser mantidos por uma vida inteira. Como vimos no caso do Markelle Fultz, por exemplo, tentar mudar uma mecânica de arremesso NO MEIO da trajetória de um atleta pode ter efeitos catastróficos, destruindo a confiança no arremesso e forçando o atleta a praticamente começar do zero. Na Espanha, os jogadores podem arremessar sempre da mesma maneira – de preferência a maneira CERTA – desde a infância até o final de suas vidas.
Isso explica que jogadores como os irmãos Pau e Marc Gasol nos pareçam tão completos, com arremessos tão sólidos, apesar de serem pivôs. Na verdade, Pau Gasol – que ao contrário do irmão não fez o Ensino Médio nos Estados Unidos – chegou à NBA sem sequer ter posição definida, um pesadelo para os olheiros e os técnicos da época. Isso também explica como Marc Gasol resistiu a carreira inteira a assumir um protagonismo no Memphis Grizzlies que lhe parecia injustificado, já que o que ele mais queria era apenas contribuir para uma “coletividade”. Para a seleção espanhola, isso é incrível: os jogadores podem ser colocados em múltiplas posições, dominam os fundamentos e se preocupam em fazer o time funcionar. E o sucesso internacional da seleção, sob esses princípios, é responsável pelo crescimento constante da popularidade do esporte no país, o aumento do mercado e chegada incessante de novos talentos nas categorias de base.
Mas apesar do meu óbvio ENCANTAMENTO com esse plano de gestão do basquete, não me coloco em posição de despejar o sistema de basquete dos Estados Unidos privada abaixo. Por lá o interesse pelo esporte é tão COLOSSAL que é possível não se preocupar com o desenvolvimento de cada atleta e buscar apenas os mais talentosos que surgem dessas competições constantes e da necessidade de bolsas de estúdio, carreiras profissionais e os sonhos de uma vida melhor. Não restam muitas dúvidas de que apesar do sucesso em mundiais e Olimpíadas, a Espanha não apresentou à NBA talentos tão impactantes a ponto de carregar franquias, enquanto os Estados Unidos cospem talentos geracionais praticamente todos os anos, aos montes, via draft. O modelo de escolas ultra-competitivas e ligas amadoras pode não ser muito humano, descartando vários jovens que não chegam a ter chances reais de evoluir no processo, mas sem sobra de dúvidas cria uma seleção de SOBREVIVENTES de talento ainda sem paralelo com o resto do basquete mundial. É claro que muitos se perdem, e que o sistema acabou permitindo que o Michael Kidd-Gilchrist chegasse à NBA com aquela aberração de arremesso, mas esse também é o sistema que criou Stephen Curry – fica difícil argumentar sobre altura da cesta para crianças, por exemplo, quando o melhor arremessador do planeta está de um dos lados da equação.
No entanto, o que permite que os Estados Unidos sejam esse celeiro surreal de atletas é uma junção muito ESPECÍFICA de fatores, que envolve o papel das universidades na cultura americana, questões socio-culturais e econômicas, a relação do país com esporte na Guerra Fria e ainda muitos outros aspectos incompreensíveis ou inexplicáveis. Isso quer dizer que o sonho de simular o modelo americano é fadado ao fracasso: Federações de Basquete do mundo todo podem até sonhar, mas não encontrarão as condições de fazer algo nesses moldes funcionar. O que vemos na Espanha, no entanto, é completamente reproduzível – vários aspectos que debatemos sobre o modelo espanhol estão em vigor na Argentina, para citar exemplo, com os resultados positivos que tanto conhecemos e incluem uma medalha de ouro olímpica.
Precisamos discutir, então, onde o Brasil se encaixa nesses modelos. Por muitos anos apostamos numa espécie de surgimento espontâneo de grandes atletas, aqueles que são tão talentosos, capazes e resistentes que sobreviveram às adversidades de se praticar o esporte da bola laranja dentro do país do futebol. O Nenê não é fruto de anos de trabalho de base, ele é um ECLIPSE SOLAR, um jogador que por ação própria e uma série de acontecimentos fortuitos se tornou muito maior do que o basquete local. A ele seguiram-se outros talentos brasileiros rumo à NBA, todos despontando como figuras solitárias que haviam resistido aos lobos. Colocá-los depois todos juntos para jogar uma partida na seleção brasileira sempre me pareceu uma bizarra reunião da Liga da Justiça, um monte de heróis que não tem NADA A VER UM COM O OUTRO e que só se encontram quando o universo está implodindo, sem qualquer ideia de como fazer isso funcionar. Nunca houve uma padronização de estilo, de proposta, de fundamentos, de identidade. O basquete brasileiro não tem cara. O que resta é sempre torcer para que um novo talento desponte por BROTAMENTO, e depois torcer o dobro para que ele tenha algo a ver em termos táticos com os outros talentos que brotaram, e por fim torcer MAIS AINDA para que esses talentos sequer queiram jogar pela seleção brasileira, caso sejam acolhidos por um lugar – como é a NBA – com mais identidade, mais solidez e mais senso de identidade e de comunidade que desencoraje a ida a seleções.
Esse modelo que aplicamos hoje só seria funcional se a gente tivesse uma paixão nacional pelo basquete comparável à do futebol, capaz de gerar centenas de sobreviventes talentosos todos os anos a ponto de rivalizar, ainda que com menos estrutura, com o que acontece nos Estados Unidos. Mas não, tentamos esse modelo em meio às adversidades, ao desinteresse e à falta de investimento – todas coisas que se retroalimentam, porque geram um basquete menos apreciável, mais desinteressante e, com isso, mais adversidades, menos público, menos dinheiro. É um ciclo sem fim – que a Espanha deu um jeito de quebrar indo para o lado oposto.
Para sermos campeões do mundo de basquete, não precisamos de um Marc Gasol. Não é sobre talento. Precisamos é de um trabalho de duas décadas de formação de base, dinheiro estatal, padronização de identidade de jogo, fundamentos, cestas mais baixas, um cadastro nacional de jogadores de 16 anos de idade e um comprometimento com o desenvolvimento desses atletas sem obrigação de vitórias, resultados e nem posições definidas. Aí sim os jogadores que surgirão, mesmo que não sejam grandes estrelas e que não povoem a NBA, nos presentearão com uma Liga nacional competitiva e vibrante e uma seleção nacional capaz de trazer as massas para nosso amado esporte. Com isso, teremos um sólido primeiro passo.