Quando eu era mais novo, no auge de uma difícil situação familiar e envolto em muito sofrimento, cheguei a cogitar se a vida valia mesmo a pena. Essa difícil e perigosa pergunta, que pode levar a consequências terríveis, teve que esperar um pouquinho, porém: na televisão estava começando um jogo da NBA, que eu já adorava, e todo o resto parecia subitamente menor. Naquela época partidas da NBA na televisão eram raras e achei que não podia desperdiçar aquela chance de, por alguns minutos, assistir basquete. Quando a partida terminou, as coisas já haviam mudado; assistir a jogadores dando uma importância tremenda para algo profundamente banal – acertar uma bola laranja dentro de um aro alto – havia me distanciado das dores e dos problemas e me mostrado que as coisas mais simples e supérfluas podiam ser suficientes para uma vida inteira de sentido, esforço e motivação.
O poder social do esporte nesse sentido é amplamente conhecido. É usado como política pública, por exemplo, para dar aos jovens um senso de grupo, pertencimento e sentido que de outras maneiras não estaria disponível em situações de fragilidade e falta de estrutura. Durante as Copas do Mundo de futebol, Olimpíadas e outros eventos esportivos de proporções similares, as taxas de suicídio ao redor do mundo sempre entram em queda; um dos primeiros estudos dedicados a esse fato constatou que durante a Copa de 1998 na França os suicídios caíram cerca de 10% no país, e despencavam ainda mais em dias de jogos da seleção francesa. Na Nova Zelândia, houve celebração pelos suicídios terem praticamente zerado quado o país sediou (e venceu) a Copa do Mundo de rugby em 2012. No Japão, que tem níveis de suicídio alarmantes (são a principal causa de morte de cidadãos entre 10 e 39 anos), as menores taxas dos últimos 37 anos ocorreram ano passado, resultado de diversas campanhas governamentais, mas também da euforia com as Olimpíadas no país que ocorrerá esse ano; houve outra queda, embora menos acentuada, durante a Copa do Mundo de futebol de 2002.
Há algo no esporte que nos mantém vivos, e não é apenas força de expressão: o efeito social principal do esporte é juntar pessoas diversas em nome de significados, objetivos e valores comuns, mesmo que momentaneamente. Na vitória e na felicidade, ganhamos imediatamente um conjunto enorme de pessoas que, ainda que não estejam celebrando junto, entendem perfeitamente o que significa aquela alegria, como ela ocorre, e como ela é compartilhada. Na derrota e tristeza, ganhamos também um conjunto de pessoas que entendem esse sofrimento, que se apoiam, se amparam e sonham com futuros melhores. O esporte é essencialmente coletivo mesmo quando é desempenhado por um esportista solitário: depende de outros atletas que, por dedicarem-se também à mesma prática, legitimam, entendem e compartilham do seu esforço; além disso, acontece em certa medida porque há um público, uma torcida, que se satisfaz com seu esforço, de modo que ele ganha uma função social para além de sua função prática individual. Não há esporte sozinho.
Gregory Bateson, um antropólogo inglês, realizou no século passado um estudo com uma tribo da Nova Guiné sobre rituais que envolviam uma apresentação e uma plateia. Nesses rituais existe um grupo que faz exibições e outro cuja função é assistir, e Gregory Bateson chegou a uma conclusão interessante: o grupo só se apresenta no ritual porque existe outro que assiste, mas por sua vez o grupo só assiste porque o outro se apresenta. Há uma relação de profunda necessidade entre esses grupos de modo que é impossível determinar qual veio antes; um depende profundamente do outro para existir. O esporte, em linha semelhante, é algo que mistura a simples ação individual do corpo com algo de espetáculo, uma vontade de compartilhar essa ação com alguém que perceba que não se trata de uma ação cotidiana da vida, mas algo transformado, alterado, embebido em esforço, beleza, poesia. Sem alguém que participe do jogo ou assista de fora de maneira engajada, corremos sempre o risco de nos percebermos ridículos por realizar uma ação que não tem qualquer valor prático, que no fundo não serve para nada. Em grupo, conseguimos valorizar esse ridículo, desejá-lo, chorar por ele, vibrar por ele e, portanto, permanecer unidos.
Gregory Bateson nos alerta, entretanto, que essa relação entre público e espetáculo dos rituais (e, em nosso exemplo, dos esportes) leva a uma certa “especialização” que é, também, um distanciamento: quanto mais a torcida torce, mais um jogador torna-se jogador, motivado a fazer melhor, correr melhor, executar melhor, pontuar melhor, de modo a gerar ainda mais vibrações da torcida; enquanto isso, quanto mais o jogador reage à torcida, mais o torcedor torce de volta, tendendo aos extremos de paixão, de alegria, de raiva, e se distanciando do jogador ao tornar-se um torcedor “especializado” que muitas vezes esquece que o jogador é um ser humano também. É fácil desumanizar o outro lado quando estamos tão engajados com nosso papel social.
Há, segundo Bateson, simultaneamente um amor que surge dessa necessidade (a percepção de que um grupo precisa do outro, o que gera gratidão, carinho, reconhecimento) e também uma espécie de RANCOR, uma raiva de estar sendo empurrado para um extremo, de ter que se especializar no seu caminho e de não poder curtir os “prazeres” do papel do outro, que parece cada vez mais longe e irreconhecível. Ou seja, há algo no torcedor que é ressentimento de não estar lá jogando, de não ser famoso, de não ter aquele protagonismo, o que se transforma em raiva quando o jogador parece “não se esforçar”, “fazer corpo mole”, “não se importar”, etc. Do outro lado, há no jogador o ressentimento de não ser anônimo, de ter que se apresentar, de sofrer tanta pressão, e que se transforma na sensação de que jogadores são “escravos”, “não tem vida pessoal”, etc. Gregory Bateson, na antropologia, chama esse processo de “cismogênese”: é quando grupos que dependem profundamente uns dos outros acabam, justamente por isso, se afastando em suas especialidades. É um processo natural e inevitável, e que não apaga o fato de que são, no fundo, partes de uma mesma coisa, de uma mesma comunidade.
Lembrei disso tudo quando, logo após a morte de Kobe Bryant no terrível acidente de helicóptero, a NBA optou por não adiar nem cancelar os jogos da rodada, colocando em quadra jogadores que estavam desolados e recebendo nas arquibancadas torcedores ainda em prantos. Ter que trabalhar e alcançar uma performance de alto nível numa situação emocionalmente tão adversa parecia uma violência sem precedentes com os jogadores; como muitos, minha posição inicial foi que os jogos deveriam ter sido cancelados e que a NBA estava cometendo um grande erro por simples medo das consequências logísticas de realocar toda uma rodada no meio da temporada regular. Mas quando os comentaristas dos jogos ao vivo começaram a chorar juntos e falar sobre a tragédia, os jogadores começaram a chorar e se abraçar em quadra, os torcedores começaram a cantar o nome de Kobe e cronômetros de 24 segundos começaram a ser violados como forma de homenagem, admiti meu erro: naquele momento de sofrimento, dor e ausência de sentido – não há nada que arranque mais o sentido de dentro dos nossos pulmões do que a morte de alguém querido – era melhor estar em grupo ao invés de sozinho.
É claro que a decisão precisa ser individual, já que existem diversas maneiras distintas de se lidar com o luto; há quem precise da solidão, quem precise do acolhimento de sua família, ou apenas quem não esteja em condição de se colocar em público. Kyrie Irving, por exemplo, foi um desses casos: alegou não ter condições de jogar basquete, dada sua proximidade com Kobe, e foi imediatamente liberado pelo Brooklyn Nets. Seria desumano obrigar qualquer um a jogar nessas circunstâncias, mas fiquei feliz de que houve a POSSIBILIDADE de jogar: da mesma maneira que a alegria de uma bola de basquete entrando numa cesta no último segundo só faz sentido para pessoas que conhecem e acompanham basquete, a dor de perder Kobe Bryant – mesmo para tantos de nós que só o vimos de longe, nos limites da televisão – só faz sentido para aqueles que sabem o que é admirar alguém através do esporte, partilhar à distância de suas conquistas, de suas agruras, de seus acertos e de suas falhas. Não é à toa que tantos torcedores correram para falar sobre sua dor com outros torcedores; tivemos inúmeros relatos de amigos e parentes que simplesmente NÃO ENTENDIAM como alguém poderia estar chorando, aqui no Brasil, por um jogador de basquete no outro hemisfério do planeta. Nos comentários dos portais, não faltaram pessoas afirmando o absurdo de um jogador dos Estados Unidos ser manchete “só porque morreu”, desdenhando não apenas da cobertura da imprensa, mas também da dor de seus torcedores. De fato, há muitas coisas no esporte que só fazem sentido para seus “membros”, das regras às alegrias e decepções, e esquecemos que a dor da perda também pode ser uma delas; muitos de nós tiveram que chorar escondidos, em silêncio, enquanto outros, mais sortudos, puderam chorar “entre os seus”, ou seja, entre aqueles poucos torcedores que entendem perfeitamente o que estava acontecendo.
Da mesma forma, foi bonito ver jogadores se abraçando em quadra, muitos ainda em lágrimas, compartilhando uma certeza de que ambos os lados entendiam completamente o que significava perder Kobe, o que significava tê-lo admirado, e o papel simbólico que ele possuía em suas carreiras. Cada arremesso ali, dado com a “mentalidade” que Kobe ajudou a instaurar nesses jogadores e na própria NBA, podia acontecer como homenagem justamente porque havia a certeza de que outros jogadores entenderiam a REFERÊNCIA, compartilhando desse repertório, desse modelo, desses significados. Imitar Kobe tem um SIGNIFICADO que apenas quem entende de basquete consegue aprecisar. Por isso, jogou-se basquete ali em nome de Kobe porque todos os presentes sabiam o quanto há de Kobe no simples ato de se jogar basquete – e, especialmente, no ato de se jogar basquete mesmo frente a qualquer adversidade, a qualquer dor, a qualquer dificuldade. Independentemente daquilo que Kobe teria “desejado” para a ocasião, a reverência de Kobe ao esporte nos deu essa possibilidade, e fiquei feliz de que a abraçamos.
Pessoalmente, mal consegui acompanhar basquete nos dias que se seguiram à morte de Kobe. Oscilei momentos em que tentei esquecer do que havia acontecido, coisa que o basquete rolando não me permitia. Mas sabia que a possibilidade oposta também era possível, e que várias pessoas estariam vendo basquete justamente para se esquecer da perda – perda de Kobe, de outro ente querido, de um amigo, de um sonho, de qualquer coisa que fosse momentaneamente dura e pesada demais para ser engolida a seco. Como um jovem Danilo que precisou se agarrar avidamente ao basquete na névoa terrível de uma longa noite adolescente, tantas outras pessoas precisam do esporte como rota de fuga, coletividade e significação nas horas mais difíceis. Como vimos, o simples ato de esperar uma Copa do Mundo já é capaz de nos manter vivos.
“Mas e os jogadores?”, você se pergunta. Não seria pressão demais para essas pessoas ter que jogar, noite após noite, mesmo em situações extremas, para que o resto do mundo possa se esquecer de suas mazelas? E as mazelas deles, não contam? Certamente é muita pressão; no entanto, é a torcida – e o quanto a torcida PRECISA deles – que justifica os esforços dos jogadores, que faz com que cada partida tenha sentido, e que possibilita que o jogador nunca esteja sozinho, mas sim inserido na cultura, no time, no esporte, na franquia, na coletividade, na sociedade. Os jogadores formam algo muito maior do que eles próprios, algo que é ao mesmo tempo bênção e maldição, e ao menos puderam – ainda que em quadra, aos prantos, aos trancos e barrancos – sofrer a perda de Kobe com todos nós, juntos, dentro daquilo que nos traz significado: o esporte.
A “cismogênese”, esse processo de diferenciação dos membros de um grupo que leva à especialização, faz parecer às vezes que os jogadores devem “servir” aos torcedores, porque precisam sempre jogar, até mesmo por contrato. É preciso resistir a essa impressão e compreender que somos tão gratos pelo jogo, mas tão gratos, dispostos a dedicar tanto do nosso tempo e de nossas vidas para torcer, que os jogadores acabam sendo levados à decisão de jogar acima de tudo. No fim, fazemos parte de uma mesma coisa: os jogadores ESCOLHEM jogar porque assistimos; os torcedores ESCOLHEM assistir porque eles jogam.
Cada papel tem seu próprio peso, suas dificuldades e suas dores, ainda que seja evidente – assim como Bateson percebeu na Nova Guiné – que algumas dores são maiores do que outras, já que essas relações não são necessariamente equilibradas em termos de poder. Existem rituais em que um lado, por exemplo, causa opressão e que o outro lado responde apenas sendo oprimido, criando uma dinâmica que tende apenas a se intensificar, leva a extremos perigosos e precisa sofrer intervenção para não cair numa tragédia. O esporte flerta com essa possibilidade principalmente quando torcedores agridem jogadores ou quando torcedores agridem torcedores de times rivais, por exemplo; não faltam casos assim para manchar o esporte e a visão que a sociedade possui dele. Ainda assim, acredito que a diferenciação de papeis no esporte tende mais a criar coletividade do que a gerar conflito. Só precisamos de um pouco de empatia.
Imagino que jogar basquete após a morte de Kobe não tenha sido nada fácil, mas fico feliz que a comunidade possa ter se encontrado ali – na quadra, nas arquibancadas, nos vestiários, nas transmissões de televisão, no Twitter, no grupo de assinantes do Bola Presa. Foi bom que tenhamos falado juntos ao invés de permanecermos calados em nossa dor; foi bom que o basquete tenha acontecido, maior do que todos nós, impávido, inabalável, ao invés de retornarmos, sem opção, para as quadras vazias e a ausência inegociável de sentido que isso significa. Espero, pessoalmente, que o basquete – e o esporte, no geral – continue para além de todos os desastres, de todas as tragédias, de todas as perdas, de todos os extremos, de todas as diferenças. Espero que ele seja o último bastião do sentido e da coletividade quando tudo o mais estiver ruindo.