🔒O time que não sabe perder

Com 11 vitórias e 30 derrotas, incluindo 10 derrotas nas últimas 11 partidas, além da contusão de Justise Winslow, o jovem jogador mais promissor do elenco, estava bem claro que a temporada do Miami Heat já tinha descido privada abaixo. Até mesmo Pat Riley, diretor da franquia e famoso por não desistir de temporadas fracassadas, foi a público falar em “reconstrução”. O elenco, assolado pelas lesões, teve que recorrer a um jogador da D-League, Okaro White, nunca draftado e que jamais havia jogado um minuto de basquete na NBA. E desde então o Miami Heat venceu 11 jogos consecutivos, incluindo vitória em cima do Golden State Warriors, e está apenas a duas vitórias de entrar na zona de classificação para os Playoffs. O projeto de reconstrução, pelo jeito, está dando muito errado. Okaro, amuleto da sorte, já conseguiu um contrato oficial pelas próximas duas temporadas.

Não é a primeira vez que um Miami Heat preparado para o fracasso simplesmente não consegue perder. Depois do fracasso da temporada 2007-08, em que o Heat terminou em último lugar da NBA com apenas 15 vitórias e desmontou todo o elenco, efetivamente se livrando de um Shaquille O’Neal em fim de carreira, o time estava pronto para um processo de reconstrução. Escolheu Michael Beasley no draft e promoveu Erik Spoelstra, o jovem analista de vídeos, ao cargo de técnico da franquia. O plano era deixar que o técnico novato fizesse experiências, desse minutos para o novato e o núcleo jovem do elenco, e perdesse bastante no processo. Resultado: o Heat acabou em quinto lugar no Leste e Dwyane Wade teve, sem sombra de dúvidas, a melhor temporada de sua carreira, com recordes pessoais em pontos, assistências, roubos, tocos, arremessos tentados, arremessos convertidos e aproveitamento nas bolas de três pontos. Foi uma das melhores temporadas individuais de um jogador que já vi na minha vida, mas também a melhor estreia de um técnico que acompanhei. Se o plano era apostar nos jovens talentos e no draft, então deu tudo errado: a classificação para os Playoffs inviabilizou uma boa escolha de draft e Michael Beasley, com todas as suas limitações dentro e fora da quadra, rapidamente saiu dos planos da franquia. Mas lá estava aquele elenco mequetrefe chegando na pós-temporada com Wade tendo o desempenho de sua vida. Rapidamente o Heat estabeleceu uma fama de ser o lugar que não consegue reconstruir porque é simplesmente bom demais em vencer jogos com aquilo que tem.

É impossível não atrelar essa fama à chegada de Chris Bosh e LeBron James em 2010. Sabemos que Wade, LeBron e Bosh eram amigos e estavam decididos a jogar juntos, mas a escolha por se encontrarem em Miami e não em qualquer outro lugar deve muito à “cultura vitoriosa” estabelecida pela franquia. Pat Riley, ao se reunir com suas futuras estrelas, deixava claro que “no Heat a gente sabe vencer”. Wade, único do trio com um anel de campeão nos dedos, podia testemunhar a favor. Desde então, acumulou outros dois em Miami.

Com a saída de LeBron e a lesão de Bosh, era claro que o Heat deveria começar uma nova era, apostar em seus jovens talentos e olhar para o draft. O elenco era extremamente limitado e Wade já estava com 12 anos de NBA nas costas. Resultado? Terceiro lugar na Conferência e uma derrota apenas nas semi-finais do Leste. Com Wade cortado dos planos da franquia e sem conseguir assinar nenhuma grande estrela para a próxima temporada, parecia que finalmente Pat Riley toparia uma reconstrução. Onze vitórias consecutivas depois – empatada como a melhor sequência de vitórias de um time abaixo de 50% de aproveitamento em uma temporada – já temos indícios de que a história se repetirá mais uma vez. Mesmo que os membros do próximo draft estejam sendo louvados como a melhor “safra” em muitos anos, é bastante provável que o Heat perca essa boquinha por estar ocupado jogando partidas de Playoffs com um elenco improvável que simplesmente não pertence à elite em que insiste em se infiltrar.

Aos torcedores do Heat, resta admitir que os processos de reconstrução da franquia dificilmente passarão por jovens novatos e bolinhas de loteria: o Heat se faz através de sua capacidade de atrair jogadores experientes, estrelas decididas a vencer jogos e que querem se munir de toda a estrutura necessária para isso. Não é à toa que Pat Riley colocou Erik Spoelstra para substituí-lo como técnico: ambos possuem essa capacidade de falar a língua dos jogadores e extrair deles o melhor para suas carreiras e para o restante do elenco. Spoelstra é homem que encontrou o ponto de equilíbrio entre estrelas que, ao contrário do “Big Three” que vimos anteriormente em Boston, não pareciam ter características capazes de conviver adequadamente. Dion Waiters, o arremessador privado de bom-senso que teve uma excelente sequência de jogos pelo Thunder na temporada passada mas estava farto de receber críticas e ter seus arremessos questionados, aceitou receber muitos milhões a menos porque estava decidido a jogar em Miami. Lá, ele diz, poderia confiar na comissão técnica para podar e aperfeiçoar seus arremessos.

O Heat está naquele mesmo barco, habitado também pelo San Antonio Spurs, em que a organização, a franquia, é tão bem-quista pelos jogadores que basta aguardar para que o talento chegue. A alma do Heat é a propaganda para aqueles que querem vencer, não a capacidade de cultivar novatos em longos processos de reconstrução. Veteranos sentem-se confortáveis porque sabem que em Miami não correm o risco de perder alguns anos enfiados num processo de derrotas sem fim; jogadores medianos, carregadores de piano, sabem que lá renderão como nunca e terão suas capacidades aproveitadas numa vitrine gigantesca que são as corridas pelo título ou, no mínimo, a participação nos Playoffs. É isso que os envolvidos chamam informalmente de “a cultura Heat”.

Quando as vitórias começaram a aparecer nessa sequência impressionante, perguntaram para Dion Waiter o que havia mudado. Sua resposta foi categórica: “nada, apenas estamos confiando no processo”. Sua referência ao “trust the process” que o Sixers tornou célebre mostra, entretanto, a diferença entre as duas franquias. Enquanto o processo do Sixers envolve derrotas e escolhas consecutivas no draft, aquilo que Waiters chama de processo no Heat é simplesmente o estilo de jogo de Erik Spoelstra, as mudanças feitas através das análises estatísticas, os pedidos para que se abra mão de decisões óbvias ou instintivas em nome das decisões estatisticamente adequadas. Às vezes é difícil confiar em uma planilha de dados que lhe diz como jogar basquete, mas quando as vitórias aparecem a confiança cresce e as vitórias, consequentemente, surgem ainda em maior quantidade. Desde o início da temporada, o mantra de Spoelstra é de que chegariam aos Playoffs se confiassem na comissão técnica e uns nos outros. Pois bem, depois de uma ou outra vitória improvável, apoiada na defesa característica de Spoelstra, nos arremessos de três pontos e nos cortes sem a bola tanto em direção à cesta quanto para longe dela, o plano original se aproxima. Agora o elenco viu o milagre e é, de corpo e alma, capaz de acreditar.

Parte dessa confiança no poder dos arremessos de três pontos é responsável pelo sucesso de Goran Dragic e Dion Waiters nessa sequência de 11 vitórias seguidas. Ambos estão acertando mais da metade dos arremessos do perímetro, com Dragic beirando os 60% de aproveitamento e Waiters acertando arremessos decisivos nos momentos mais importantes. O mais interessante é que vários desses arremessos são apenas no mano-a-mano, sem assistências, um arremesso que o Heat sempre hesitou em dar.

Esses arremessos fazem sentido porque o Heat está jogando cada vez mais em velocidade, com seus jogadores cortando rapidamente em direção à cesta nos primeiros segundos de posse de bola, o que coloca os defensores numa posição defensiva de recuo que dificulta contestar os arremessos de fora. Cortes rápidos sem hesitação rumo à cesta só acontecem quando a quadra está bem espaçada e os jogadores não precisam mais pensar em qual jogada executar, perfeitamente acostumados com os caminhos por entre a defesa que renderão as melhores chances de aproveitamento. Basta dar uma olhada nos melhores momentos do Heat (em especial de Dion Waiters) na vitória em cima do Nets para perceber como as infiltrações são dadas sem medo, o que gera espaço para os arremessadores e as jogadas individuais de Dragic.

Percebam nesse vídeo que a maior parte das posses de bola desses minutos decisivos em que o Heat tirou uma larga desvantagem de 18 pontos no placar envolvem jogadas simples, rápidas e com pouquíssimos passes. São jogadas feitas com confiança – fruto do “confiar no processo” – e liberdade de errar. Os jogadores sabem que podem errar um arremesso se ele for o melhor arremesso possível decidido anteriormente pela comissão técnica, de modo que podem jogar com total agressividade. O fato de que Hassan Whiteside está lá não para exigir a bola (como acontecia no começo da temporada) mas para ajudar a “limpar os erros”, se aproveitando dos rebotes ofensivos ou das linhas de infiltração bloqueadas pelos defensores, ajuda muito na hora de confiar no arremesso. Nos dias em que o Heat erra mais, Whiteside brilha mais e os jogadores possuem tranquilidade em simplesmente continuar tentando:

Mas a verdade é que o maior avanço do Heat nas últimas partidas não foi no ataque, mas na defesa. Se antes tinham uma defesa literalmente mediana – em décimo quinto lugar na NBA – agora possuem a segunda melhor defesa da Liga nesse período de 11 jogos. O Heat de Wade, Bosh e LeBron se apoiava na defesa matadora de Spoelstra para municiar o ataque que, a princípio, teve dificuldades de se acertar. Esse Heat de agora finalmente conseguiu encaixar uma defesa por zona constante, sufocante e agressiva que compensa imensamente a falta de talento em quadra durante muitos minutos de jogo. Acho que nenhuma jogada resume melhor essa nova fase do Heat do que essa abaixo:

Dion Waiters dá um toco em Dwight Howard numa defesa de cobertura impecável de todo o elenco, depois puxa o contra-ataque e dá um passe PÉSSIMO, HORRÍVEL, MEDONHO, para um arremesso AINDA PIOR de Rodney McGruder (?!) que obviamente não entra. Mas tudo bem, porque o próprio Waiters aperta a defesa e consegue roubar a bola das mãos de Millsap para uma bandeja simples. O que falta de talento nesse time sobra em defesa, posicionamento e confiança para tentar as coisas certas mesmo quando elas parecem difíceis ou quando o jogo está nos momentos mais decisivos.

Vale lembrar que a melhora vertiginosa dessa defesa aconteceu sem Justise Winslow, fora pelo resto da temporada após uma cirurgia no ombro, que supostamente era o melhor defensor do elenco. Se sua lesão não comprometeu a defesa, é prova de que a defesa coletiva do Heat finalmente encaixou. E mais: a ausência de Winslow melhorou consideravelmente o ataque. No início da temporada, Winslow era o foco irrestrito das jogadas de ataque, numa crença bizarra de que em breve ele rivalizaria Kawhi Leonard como o melhor defensor-pontuador da NBA. O único problema nesse plano foi que Winslow estava acertando 35% dos seus arremessos de quadra, 20% das bolas de três pontos e apenas 61% dos lances livres (uma piora considerável de seu ano de novato, quando acertou 68%), todos números PATÉTICOS de aproveitamento. O garoto é cru, ainda pode melhorar demais ofensivamente, mas talvez ele simplesmente NÃO SEJA BOM O BASTANTE PARA ISSO, e já escrevemos aqui sobre os perigos de sobrecarregar grandes defensores ou pontuadores com funções excessivas do outro lado da quadra, como é o caso de Paul George. Sem ele em quadra, Goran Dragic finalmente passou a ter a bola nas mãos na maior parte das posses de bola como era no seu auge pelo Phoenix Suns. Não há dúvidas de que Dragic lê bem o jogo e tem um dos melhores jogos de pé da NBA, especialmente quando está dentro do garrafão, mas tirar a bola das mãos dele e transformá-lo num arremessador simples tira completamente seu ritmo de jogo e sua eficiência em quadra. Deixando que ele infiltre à vontade e crie espaços para os outros e para ele próprio no processo, Dragic é um dos melhores armadores da NBA – um que o Heat estava seriamente pensando em se livrar em nome daquela reconstrução que não vai mais rolar. Agora é tarde, difícil imaginar que Dragic não esteja no Heat para ficar.

Pode até ser que a equipe não consiga continuar a sequência de vitórias (ainda que os próximos adversários estejam todos abaixo dos 50% de aproveitamento), e que o recorde de 12 vitórias seguidas para um time com vitórias negativas na temporada não seja alcançado, mas creio que essa sequência foi suficiente para o Heat lembrar quem ele é de verdade: uma equipe que não sabe perder, que não quer perder, que não precisa perder para se reconstuir. Uma cultura de vitória que atrai jogadores de toda a Liga. Pode até não ir para os Playoffs, mas essas 11 vitórias seguidas foram uma PROPAGANDA poderosa para Erik Spoelstra e seu elenco; Dion Waiters teve seus minutos de fama e já sente que sua escolha de abrir mão de alguns milhões foi justificada. Quantos outros não tentarão, por isso, escolha semelhante?

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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