Quando o Bola Presa começou, em 2007, Michael Jordan havia deixado o basquete há apenas 4 anos. Ainda que sua aposentadoria final tenha sido bastante melancólica, tentando carregar um limitadíssimo Washington Wizards nas costas de um corpo já fragilizado pelos anos, era inegável que sua sombra ainda pairava sobre a NBA quando começamos a escrever sobre basquete. LeBron James já estava na liga (já que, de maneira mais simbólica impossível, foi draftado exatamente no ano seguinte à aposentadoria de Jordan), Shaquille O’Neal e Kobe Bryant ganharam 3 títulos seguidos, o San Antonio Spurs de Tim Duncan rumava ao seu terceiro título em 5 anos, mas ainda assim uma sensação de luto rondava a NBA: nenhum desses jogadores era Michael Jordan.
Entre o último jogo de Jordan pelo Bulls, em 1998, e os primeiros textos do Bola Presa em 2007, uma infinidade de grandes histórias, grandes estrelas e grandes surpresas povoaram a liga. Ainda assim a NBA amargava uma queda considerável de audiência enquanto comentaristas criticavam o “vácuo de estrelas” e o “baixo nível” do basquete jogado. Uma nostalgia profunda por Jordan ofuscava os feitos das novas gerações e atrapalhava até mesmo a diversão do público que estava conhecendo a NBA pela primeira vez. Como resposta a isso, um dos pilares da criação do Bola Presa era a diretriz de que só olharíamos para o passado caso ele tornasse MAIS INTERESSANTE ou MAIS EMOCIONANTE o basquete ATUAL, contemporâneo; só buscaríamos contexto no basquete anterior para ajudar na fruição e na compreensão do basquete que acontecia diariamente em nossas televisões, nunca para torná-lo menor, mais chato ou mais insosso. Saber reconhecer os novos talentos e a graça do basquete atual implicava, ao nosso ver, em esquecer um pouco o que o basquete tinha sido até ali.
Muita coisa mudou nesses mais de 12 anos de existência do Bola Presa, tanto em nós quanto no basquete e no mundo que o cerca. Pesquisas mostraram, por exemplo, que as novas gerações sequer sabem direito quem foi Michael Jordan – acham que ele é somente o nome de uma marca de tênis de basquete, ou então o reconhecem apenas pelo meme dele chorando, graças a uma foto tirada de seu discurso de entrada no Hall da Fama em 2009.
Além desse esquecimento, diversas outras estrelas tornaram-se desde então nomes inquestionáveis e consagraram-se como alguns dos melhores jogadores de todos os tempos – o mesmo Hall da Fama que recebeu Jordan em 2009 receberá, esse ano, Tim Duncan, Kevin Garnett e Kobe Bryant, por exemplo, os ídolos da década passada que tiveram que debater-se sob a então sombra de Jordan. Mesmo o famoso recorde de 72 vitórias numa temporada, conquistado pelo Bulls de Jordan em 1996, já foi quebrado por outra equipe, o Warriors de 2016, que colocou-se à força na conversa das melhores equipes da História e nos forçou a repensar a possibilidade de se quebrar todas as marcas passadas. Jordan não é mais, portanto, uma ameaça para a fruição e a diversão dos nossos tempos; em vez disso, os detratores e os odiadores do basquete atual (essa galera que sempre está aí, independente de quais sejam os tempos) recorrem a outros nomes de um passado mais recente, apelando para o San Antonio Spurs ou o Los Angeles Lakers dos anos 2000 para apontar um basquete “melhor”, “ideal”, que supostamente não existe mais.
Nosso medo, no Bola Presa, de que a sombra de Jordan “sufocasse” as mudas novas que estavam crescendo e se estabelecendo mostrou-se totalmente infundada; elas de desenvolveram, o público e os críticos eventualmente as acolheram, a audiência voltou ao normal, e elas se tornaram os novos modelos que parecem outra vez “sufocar” os que estão chegando agora. Bastou pouco mais de uma década de distância da aposentadoria de um dos maiores atletas de todos os tempos para percebermos que o risco maior é sempre que o passado seja esquecido, não que ele impeça a chegada do novo. Porque o novo, como diria a música, sempre vem.
A NBA parece entender melhor do que a maioria das ligas esportivas do planeta a importância de se olhar para o passado – não como uma nostalgia, uma vontade de retorno a um passado mítico e fantasioso, mas como ferramenta para engrandecer ainda mais as conquistas atuais.
Entrar em um ginásio da NBA é deparar-se imediatamente com uma celebração do passado: títulos de Divisão, de Conferência e da NBA ficam pendurados em versões gigantescas acima da quadra, como se estivessem para sempre acima de nós, meros mortais. Além disso, troféus e anéis dos campeonatos ficam expostos em redomas de vidros; camisetas dos jogadores mais importantes da história da franquia também figuram nas alturas, acima de nossas cabeças; livros e fotos das conquistas de cada time ficam à venda pelos corredores, ou então disponíveis para os fãs mais dedicados, aqueles que compram ingressos para uma temporada inteira; camisetas de jogadores históricos ficam à venda nas lojinhas, muitas vezes com o visual dos uniformes do passado. Alguns ginásios, como o de New Orleans, que visitamos em 2018, tem em suas paredes linhas do tempo que recuperam todos os grandes atletas que nasceram na cidade e até mesmo as conquistas dos times colegiais ou universitários locais. A tentativa é garantir que nenhuma pequena conquista será esquecida.
Mas há também uma tentativa de manter os jogadores que tornaram essas conquistas possíveis por perto. É comum vê-los assistindo aos jogos em lugares privilegiados, próximos às quadras; homenagens a esses jogadores ocorrem o tempo todo, com a presença deles para celebrações diversas e com os jogadores atuais lhes prestando referência; vários desses atletas aposentados são até mesmo contratados por suas ex-equipes apenas para que participem do dia-a-dia dos times, às vezes com cargos meramente simbólicos. O Spurs é, nesse sentido, uma equipe modelo: todos os ex-atletas estão sempre por perto, de um jeito ou de outro, e fazem parte da vida do time e da comunidade que o cerca.
Mas nada disso significa um “apego” ao passado, como se ele fosse sempre melhor do que aquilo que temos atualmente diante dos nossos olhos. Apenas garante que cada conquista que ocorrer AGORA, cada contribuição que ocorrer NESSE EXATO INSTANTE, não será algo esquecível, momentâneo, sem significado. Se a gente lembra de todas as conquistas do passado, então o futuro se lembrará de tudo aquilo que você estiver conquistando agora. Num mundo que se lembra de sua história, as ações do presente possuem CONSEQUÊNCIA. Elas continuarão relevantes; seguirão sendo vistas.
Como mencionamos, um dos objetivos do Bola Presa em seu início era olhar para o passado apenas se ele melhorasse a experiência ATUAL do basquete, mas levamos muito tempo para perceber que, excluindo-se a nostalgia idiota dos fãs que odeiam o presente, olhar para o passado SEMPRE melhora a experiência atual do basquete. E os jogadores, mais do que ninguém, sabem disso.
Ainda no ano passado, a ESPN e a Netflix anunciaram uma minissérie com horas e horas de material inédito sobre a última temporada de Michael Jordan pelo Chicago Bulls, a 1997-98, que culminou no sexto título da franquia num período de 8 anos. O material, recolhido de uma equipe de filmagens que teve acesso aos bastidores da equipe na época, pode ser nossa primeira visão da dinâmica interna de um dos maiores times de todos os tempos. Como eles mantiveram a motivação para ganhar 3 títulos seguidos? Como fizeram isso depois de já ter ganhado 3 títulos seguidos poucos anos antes? Como lidaram com os dois anos em que Jordan esteve afastado do time, aposentado? Quais eram as alianças, os conflitos e os trunfos desse elenco? São dúvidas que, caso respondidas, podem tornar ainda mais inesquecível a temporada final de Jordan no Bulls, mas que também podem impactar o presente do esporte ao mostrar qual é a estrutura interna, escondida, de um time campeão.
Não é à toa, portanto, que LeBron James foi um dos jogadores mais ansiosos nas redes sociais para o lançamento da minissérie: ao menos pra mim, seu interesse faz sentido em múltiplas camadas. Primeiro há o lado de fã, de quem quer conhecer mais de perto um passado que ele conheceu com apenas 14 anos, provavelmente entendendo muito menos do que estava acontecendo ou da importância daquele momento; em seguida, há a vontade de celebrar um passado da mesma maneira com que, no futuro, ele sabe que celebraremos LeBron, inserindo-se numa história maior, quase como quem conhece a própria “família”; e há, por fim, um interesse puramente PRÁTICO, algo que o passado pode nos ensinar. LeBron não é Jordan, fez suas próprias escolhas, cometeu seus próprios erros e desenhou seu próprio caminho, mas isso não lhe impede de poder aproveitar alguns elementos de um Jordan já veterano em 1998 que possam ser implementados na carreira de um LeBron veterano em 2020 em busca de mais alguns títulos.
Com a parada do basquete graças à atual pandemia global, LeBron tornou-se então uma das principais vozes pedindo para que a minissérie, planejada apenas para junho, fosse adiantada para a data mais próxima possível. Depois da pressão de LeBron e de diversos outros jogadores – além, claro, da total ausência de conteúdo inédito disponível nos canais de esporte – a minissérie finalmente foi oficialmente adiantada. Seu lançamento ocorrerá no dia 19 de abril na ESPN e no dia 20 de abril na Netflix.
Intitulada “The Last Dance” nos Estados Unidos (“A Última Dança”) e “Arremesso Final” no Brasil, em referência à lendária última atuação de Jordan no Bulls que terminou com aquele que deve ser o arremesso mais icônico da história do basquete, a ideia é que a minissérie tenha seus episódios lançados semanalmente em casais: teremos dois episódios de uma hora cada no dia do lançamento, mais dois episódios na semana seguinte, e assim por diante até completarmos 10 episódios e, assim, quase 10 horas de material.
E é claro que, como esperado, LeBron James mal pode esperar pela estreia.
April 19th can’t come fast enough. I CAN NOT WAIT!! 🗣Yessir!🍿 #LastDance
— LeBron James (@KingJames) March 31, 2020
Há uma parte de mim que teme profundamente pelas comparações que a minissérie irá levantar e pelos odiadores do presente, que certamente usarão essa oportunidade para sair de suas cavernas. Para ter uma ideia desse horror, basta uma espiada nos comentários deixados no Twitter de LeBron James após o jogador comemorar o lançamento da série: é gente dizendo que ele nunca será tão bom quanto Jordan, que ele é amarelão, que perdeu vários títulos, que nunca terá um documentário assim sobre ele, etc, etc. Vai ser ainda pior quando os episódios começarem a ir ao ar: vai ter gente falando que aquilo é que era “basquete de verdade”, que a NBA nunca mais foi a mesma, e diversos jogadores atuais sofrerão ataques totalmente gratuitos. Tenho medo de estar correndo o sério risco de regredir à minha versão de 2007, tentando colocar o passado de lado em nome de uma apreciação do presente – já me imagino resmungando na internet, tendo que exaltar alguma estrela atual enquanto crio uma série de resistências injustas com Michael Jordan e seu documentário, que certamente será incrível.
Mas tenho a esperança de que os últimos anos de dedicação ao basquete me recordem de que existe mais a ser ganho com a memória de Jordan do que o estrago que uma galera na internet é capaz de causar. A última temporada de Jordan no Bulls merece ser relembrada não apenas porque é um dos maiores momentos do esporte, mas porque quanto mais perto estivermos de um marco tão central para o basquete, mais entenderemos as tendências do basquete de hoje: seu “arremesso final” em 1998 marcou toda uma geração de futuros jogadores que sonhavam em fazer o mesmo, moldou estilos de jogo, influenciou as expectativas dos torcedores, criou movimentos de desejo e de resistência a uma “individualização” do basquete, e fez com que jogadores e times se aproximassem e se afastassem, em períodos diferentes, do que Jordan representou. De um jeito ou de outro, as conversas que temos hoje sobre basquete CONTÉM aquele arremesso final de Jordan, seja para afirmá-lo ou para negá-lo; é impossível entender perfeitamente aquilo que o basquete se tornou sem entender um dos seus pontos mais estruturantes. Nosso entendimento do basquete atual e nossa conversa sobre ele ficam MELHORES a partir de 19 de abril – a gente só vai precisar aprender, em alguns momentos, a ignorar aqueles que usarão o passado para nos prender em definitivo nele.