🔒 Quando um título não é tudo

Em 1999, o Grizzlies ainda não morava em Memphis. A equipe tinha apenas quatro anos de existência, tendo surgido de uma expansão da NBA rumo ao Canadá que adicionou uma equipe em Toronto e outra em Vancouver. Era, na época, o “Vancouver Grizzlies”, um time montado com os restos das demais franquias da NBA e algumas adições vindas através do draft. Nesse ano a equipe era ruim, não conseguia vencer jogos e a cidade, ainda que comparecesse ao ginásio, não parecia interessada em basquete o suficiente para encarar um time de rendimento tão baixo. Mas naquele draft o Grizzlies, dono da segunda escolha, finalmente conseguiria sua salvação: Steve Francis, um armador atlético, agressivo, famoso por suas enterradas, carismático e com potencial para se tornar um dos melhores jogadores da NBA. Era tudo que a equipe precisava para atrair mais torcedores, encantar o Canadá e torna-se minimamente relevante. No entanto, Steve Francis nunca jogou pelo Grizzlies – ele simplesmente se recusou.

Diz a lenda que Francis, que já não via com bons olhos ter que sair dos Estados Unidos e jogar numa equipe tão ruim, foi completamente ignorado pelas pessoas do aeroporto em sua primeira visita a Vancouver porque ninguém sabia quem ele era, ou o que era basquete, e que as únicas pessoas que lhe pediram um autógrafo o fizeram porque confundiram o jogador com um rapper americano. Foi o suficiente para que ele, assim que chegasse aos escritórios do Grizzlies, comunicasse que não tinha interesse em fazer parte da equipe. A diretoria aceitou a recusa, conseguiu uma troca, e Steve Francis partiu para ter uma carreira de enorme sucesso – em que ele se mostrou de fato um dos melhores jogadores de sua época – no americaníssimo Houston Rockets. Para o canadense Grizzlies, sobrou o fardo de continuar sendo horrível, o público do ginásio foi diminuindo aos poucos e em 2001 o dono da equipe finalmente desistiu de Vancouver, vendendo a franquia. Na última partida do Grizzlies no Canadá, com o ginásio cheio, um dos torcedores levou uma placa de agradecimento: “Obrigado pelo pior time de todos os tempos”. Foi tudo um fracasso.

Todos os times da NBA tem, como objetivo máximo, serem campeões. É por estarem lutando por esse objetivo que temos uma competição de alto nível – uma em que apenas um time, o melhor de todos, será levado aos seus limites e sagrado campeão. Quando um time é formado, seja numa expansão da NBA, seja num momento de reconstrução – quando um time percebe que não tem mais chances reais de perseguir um título e decide começar tudo de novo – ele se monta de maneira a, mais cedo ou mais tarde, vencer o campeonato. É por isso que julgamos as equipes de acordo com seus rendimentos em quadra, suas capacidades de montar elencos talentosos e o número de títulos que coletaram. Quando algo não dá certo, rapidamente cravamos que mudanças precisam ser feitas: novas contratações, trocas ou, em caso de fracassos sucessivos, uma reconstrução. Como ser campeão é o único objetivo que importa, torcedores e comentaristas estão o tempo todo, ao perceber que um time não tem reais chances de título, exigindo ou sugerindo que as equipes joguem tudo fora e comecem do zero. O que esquecemos nesse processo, entretanto, é que algumas equipes tem outros problemas mais urgentes para resolver antes de poder ter a chance de sequer PENSAR num título: o Vancouver Grizzlies, por exemplo, não conseguia sequer convencer uma escolha de draft a fazer parte do elenco, e via seu ginásio esvaziar jogo após jogo. Como uma equipe, nesses termos, pode de fato almejar ser campeã?


O novo dono, ao contrário do que afirmara no momento da compra, estava decidido a levar o time de volta aos Estados Unidos e resolveu que o novo lar do Grizzlies seria a cidade de Memphis, um grande centro urbano sem nenhuma equipe de esporte profissional, disponibilidade para arcar com os custos de um novo ginásio, abatimento de impostos e, segundo diversas pesquisas, moradores ávidos por uma equipe de basquete. Após a mudança, o time até melhorou: graças ao draft de Pau Gasol, o equipe foi aos Playoffs três vezes seguidas entre a temporada 2003-04 e a 2005-06. No entanto, o time ficou famoso por não conseguir vencer uma única partida sequer em suas campanhas de pós-temporada e, mesmo nesses anos de sucesso, sempre esteve entre os 6 times de menos público na NBA. O time não pegou, o público não se envolveu, grandes contratações eram praticamente impossíveis e chegar aos Playoffs não deixou o time mais perto de um título; pelo contrário, deixou explícito como aquele elenco simplesmente não era o bastante para bater de frente com os grandes. Depois de mais três anos sem voltar à pós-temporada, em 2009 chegou a hora de Pau Gasol ser trocado e o Grizzlies reconstruir um time que de fato nunca havia começado.

Quando a equipe venceu sua primeira partida nos Playoffs, em 2011, parecia um milagre: vários jogadores desajustados e indesejados, o tipo de “sobra” que o Memphis conseguia abocanhar no mercado, uniram-se sob um lema comum de garra, esforço e superação e fizeram o que ninguém esperava deles, indo parar nas Semi-Finais da Conferência Oeste. Naquele ano, o Grizzlies ainda tinha o quarto pior público de toda a NBA. Mas a equipe soube vender a ideia do “Grit and Grind” – algo como “raça e esforço”, uma expressão usada por Tony Allen para explicar como o time, desfalcado, havia vencido um OKC Thunder com Kevin Durant em seus melhores dias – e a cidade abraçou inteiramente o conceito. Não era mais sobre basquete, era sobre ter orgulho de um time que representava os mesmos valores dos moradores da cidade, seu trabalho duro e sua tenacidade. O público no ginásio aumentou vertiginosamente e finalmente o Grizzlies passou a ter um lar.

Esse Grizzlies, finalmente abraçado por sua torcida, passou a dar trabalho todos os anos nos Playoffs e chegou a uma Final da Conferência Oeste, mas em 2016 já dava pra perceber com bastante clareza que a janela havia se fechado: o time não estava ficando melhor, a NBA estava caminhando a passos rápidos para uma outra direção em termos de estilo de jogo e o Grizzlies parecia fadado a, dali em diante, perder sempre na primeira rodada, até que eventualmente não conseguiria mais sequer se classificar. Era hora de admitir que o modelo de jogo tinha sido incrível, mas não bom O SUFICIENTE para um título, e então – já que o título é tudo que importa – jogar tudo fora e recomeçar.

Mas não; o Grizzlies insistiu em manter sua identidade, em não arremessar de três pontos, em vender “raça”, não em começar de novo. Ficou evidente que a franquia se importava muito mais com a identificação da cidade pelo time do que com as chances de brigar por um título. Parece absurdo, mas faz sentido – afinal de contas, o Memphis sabe perfeitamente bem, ao longo de sua história, o que é não ser desejado pelos seus próprios torcedores.


O Grizzlies não é o único time a negar uma reconstrução no momento certo por estar mais preocupado com outras coisas. O Toronto Raptors, mais uma equipe canadense, também suou para ser abraçada por sua cidade e vender o basquete num país sem muito interesse pelo esporte. Quando o time foi eliminado pelo Cleveland Cavaliers em três Playoffs consecutivos (incluindo duas varridas seguidas, por 4 a 0, e depois de duas temporadas eliminado na primeira rodada, além de uma fama de péssimo desempenho em casa na pós-temporada) já tínhamos anos e anos de analistas achando que a franquia deveria tentar algo diferente, deixar de renovar com seus jogadores mais veteranos e apostar nos jovens e no draft para ter melhores chances de um título no futuro. Mas naquele ponto, já não era mais sobre um título: o Raptors já havia se tornado uma instituição de Toronto, o ponto de encontro de todos os imigrantes numa cidade extremamente cosmopolita em que os nativos preferem o hóquei no gelo. Basquete se tornou, ali, o esporte dos que acabaram de chegar, dos que estão se acostumando à nova casa, dos que precisam de um símbolo, de um grupo, de uma família que lhes faça sentir acolhidos. A torcida não precisava de um título, a torcida não queria reconstrução: ela queria um time relevante, que simplesmente fosse para os Playoffs, fornecendo assim a OPORTUNIDADE desse senso de comunidade que lota o estacionamento do ginásio mesmo em temperaturas congelantes. Calhou que essa insistência do Raptors – e uma troca por Kawhi Leonard, que aliás fez, na época, muitos torcedores se sentirem traídos – acabou rendendo um título, mas o resultado poderia ter sido parecido com o do Grizzlies, um time que vai se esvaindo aos poucos porque ser relevante para a torcida é mais importante do que o anel de campeão.

É claro que o Raptors sempre quis ganhar esse título – assim como o Grizzlies, mesmo em Vancouver, ou qualquer outro time da NBA. Mas para franquias menos estabelecidas, em situações de maior fragilidade econômica, outras preocupações podem ser mais centrais e precisamos levar isso em consideração na hora de analisar suas pretensões, escolhas, trocas e contratações. Times como o Raptors e o Grizzlies, por exemplo, antes de pensar em vencer precisam pensar em construir uma relação com seu público, o que muitas vezes significa tornar o time RELEVANTE – ou seja, na briga pelos Playoffs, nem que seja para ser eliminado na primeira rodada – para criar um clima de “evento” e de unidade na cidade ainda que ninguém em sã consciência considere que esses times possam ser campeões de fato. Muitas vezes basta que o time causa alguma comoção na imprensa com alguns resultados positivos; em outras, basta que o time seja empolgante, que jogue de uma maneira específica ou gere jogadas de efeito; por vezes ainda, basta que o time personifique alguma característica que a cidade reconheça como sua. Em San Antonio, por exemplo, os torcedores não se desesperam de não ganhar um título; o que eles querem é ver esse misto de conservadorismo e criatividade que a cidade, diversa e inclusiva no meio de um dos estados mais conservadores do país, reconhece como uma de suas marcas centrais, e que o Spurs tão bem personifica. São essas as condições que impedem o Spurs de fazer uma reconstrução radical e completa, e que também permitem que o time possa construir as bases sólidas que geraram 5 títulos de campeão nas últimas duas décadas.


Outro caso interessante é o do Detroit Pistons, uma franquia que já teve dias melhores – são três títulos ao longo de sua história – numa cidade que também já viveu tempos mais generosos. Detroit já foi o motor econômico dos Estados Unidos, associada no mundo todo à produção de automóveis (de onde a equipe de basquete tira seu nome) e à tecnologia, mas hoje sofre com a contínua fuga das fábricas e com os efeitos da crise econômica que devastaram a cidade. Diversas cidades dos arredores de Detroit são hoje cidades praticamente fantasmas, em que não há mais emprego disponível e em que as casas foram tomadas pelos bancos como modo de quitar as dívidas dos antigos moradores. Não é de espantar, portanto, que o público do Detroit Pistons tenha diminuído radicalmente nos últimos anos – com uma situação econômica tão ruim, quem será convencido a pagar para assistir um time notoriamente horrível? Esse, me parece, é o principal motivo para o Pistons não ter aceitado fazer uma reconstrução completa depois que seu time campeão em 2004 eventualmente desmanchou. Tudo no Pistons foi feito com pressa, tentando não montar uma equipe que visasse ao título, mas sim uma equipe que fosse imediatamente relevante – ter um processo de reconstrução lento e doloroso, com um time nas últimas colocações do Leste, justamente numa cidade que já passa pelo seu doloroso processo de reconstrução sem muitas esperanças, parece algo duro demais para se engolir.

Temendo um time que seria abandonado pela torcida enquanto se reergue – o que, como vimos no caso do Vancouver Grizzlies, também faz com que jogadores não queiram sequer jogar para você – o Pistons tentou sempre fazer um time capaz de alcançar a oitava vaga e nada mais. Foi nesses termos que o time trocou por Blake Griffin – em Detroit, um jogador capaz de dar uma enterrada empolgante seria um raro raio de sol frente à difícil realidade. E ainda assim, o Pistons sofre com o público: já não é mais a pior audiência da NBA, mas ainda está entre as cinco piores, mesmo com um ginásio novo mais perto do centro da cidade. Será esse fracasso de público suficiente para que o Pistons aceite finalmente se reconstruir? Ou seria, ao contrário, motivo ainda maior para que o time não abra mão dos poucos grandes nomes que ainda tem, nessa ânsia de querer ser minimamente relevante com Andre Drummond, por exemplo? Esse é o time, afinal de contas, que mesmo que nenhum de nós seja capaz de levar a sério – e com razão – chegou ao menos aos Playoffs na temporada passada, um momento de vínculo com a cidade em que o ginásio esteve lotado de camisetas com os dizeres “Começa aqui”. Detroit quer um novo começo, claro, e em muitos aspectos, no basquete e na vida; mas, de preferência, sem ter que passar pelos rigores e violência de uma reconstrução. Nesses casos, parece melhor a empolgação de um time que “pode surpreender”, como é toda equipe com Blake Griffin, por exemplo, do que a certeza de fracasso de um time recheado de escolhas de draft, disposto a perder por anos e anos a fio.


Há muito tempo sou um crítico das decisões do Detroit Pistons, da sua falta de paciência em reconstruir. Também fui um crítico da insistência do Raptors num time que parecia estar em decadência, e escrevi posts indignados sobre a dificuldade do Memphis Grizzlies de deixar o velho lema morrer e abraçar um novo momento. Mas agora percebo que esses times não existem num vácuo, em que de maneira fria e racional todas as decisões miram um título.

Ao redor de cada time há uma cidade e torcedores com as próprias expectativas e necessidades; embora todo torcedor diga que sonha com um título, em muitos casos o que mais interessa é ter um time interessante e digno de se assistir numa quarta-feira à tarde para esquecer do desemprego, ou se sentir acolhido pela comunidade, ou para reconhecer características suas que você precisa ser continuamente relembrado que possui para adquirir algum grau de autoestima e ser capaz de sair da cama todo dia pela manhã. Há muito mais em jogo que não apenas o anel de campeão. Afinal, todos os anos temos apenas um único campeão, não é mesmo? Não é possível que todos os outros 29 times sejam inteiramente perdedores e precisem reconstruir para se tornar relevantes. Pelo contrário, muitos times são igualmente vencedores, mas de desafios diversos, outros, diferentes do título tão almejado, dos quais muitas vezes sequer temos conhecimento.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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