Em dezembro do ano passado, Danny Green lesionou sua virilha tentando um toco numa jogada qualquer. Fez uma ressonância magnética no dia seguinte, que constatou uma simples distensão muscular. Passou duas semanas fora, em reabilitação, e então retornou às quadras. No entanto, a lesão voltou a incomodar – por vezes apenas limitando seu rendimento, por outras impedindo que ele sequer conseguisse estar disponível para os jogos. Ao todo Danny Green perdeu 12 jogos na temporada graças à lesão, mas como o time estava desesperadamente tentando chegar aos Playoffs e precisava de toda ajuda disponível, eventualmente o jogador passou a ignorar a dor e tentar auxiliar sua equipe apesar das limitações físicas.
Quando a pós-temporada chegou ao fim com a eliminação do San Antonio Spurs, Danny Green se apresentou para a reunião de encerramento – e que envolve, também, uma bateria de exames para determinar a situação atual do jogador. Foi só aí que o time finalmente percebeu que Green havia rompido o ligamento, o que explicava ao menos parcialmente seu baixo rendimento na temporada. Não há certeza de quando o rompimento aconteceu – poderia ter sido nas últimas partidas dos Playoffs, poderia ter acontecido nos primeiros dias de reabilitação da lesão original em dezembro – mas há a certeza de que o Spurs não percebeu a gravidade da situação de Danny Green até ser tarde demais.
Agora que foi trocado para o Toronto Raptors e seu novo time foi informado da lesão na virilha, Danny Green resolveu admitir duas coisas: a primeira é que deveria ter passado mais tempo fora das quadras para se recuperar da lesão, mas sua “natureza competitiva” o fez jogar mesmo sem condições; a segunda é que, assim como fez Kawhi Leonard, ele deveria ter buscado uma “segunda opinião” sobre sua lesão mesmo, segundo ele, confiando inteiramente nos médicos da equipe.
Confiar no departamento médico é algo verdadeiramente importante para os jogadores da NBA porque, em maior ou menor grau, todos eles passam tempos consideráveis de suas carreiras com algum tipo de lesão física. Bons departamentos médicos não apenas popularizam-se no boca-a-boca entre jogadores – como é o caso notório do Miami Heat – como também surgem nos números. Nos últimos 15 anos, por exemplo, nenhum time teve jogadores perdendo menos tempo fora das quadras por lesão do que o San Antonio Spurs, o que dedura não apenas um trabalho excepcional de reabilitação mas também um cuidado exemplar para tentar EVITAR que essas lesões aconteçam. Foi Gregg Popovich, técnico do Spurs nesse período, quem estabeleceu um sistema para poupar jogadores, permitindo que eles gastassem tempo DESCANSANDO ao invés de tendo que se recuperar de lesões sérias; não foram pequenas as multas que o time teve que pagar por deixar suas estrelas fora de quadra em jogos importantes, antecipados por meses e transmitidos com destaque por canais grandes de televisão nos Estados Unidos.
Esse tipo de cuidado com a saúde de seus jogadores condiz com a proposta geral do time nas últimas décadas: se preocupar com a “longa duração” é mais importante do que se desesperar pelo presente imediato. O Spurs manteve o time principal mesmo frente às derrotas por anos a fio e então abocanhava um título de campeão; abria mão de apostas enormes para manter um modelo que funcionaria a longo prazo; treinava jogadores para funções específicas esperando que eles fossem dar resultados muitos anos para a frente. É por isso que descansar um jogador e perder uma partida importante não deveria ser uma preocupação em nome de benefícios futuros, que vão desde um rendimento maior nos Playoffs a uma sobrevida na carreira de um jogador. Foi esse preceito que tirou Kawhi Leonard das Finais da Conferência Oeste em 2017, quando ele agravou uma lesão no tornozelo ainda no Jogo 1 e, por precaução, foi retirado de toda a série contra o Warriors. Perder aquela série não parecia sério se o resultado fosse ter Kawhi saudável e dominante pronto para ser campeão no ano seguinte. E, claro, ter Kawhi confiante de que os médicos da equipe estão interessados em sua saúde a longo prazo. Nas últimas décadas, nenhum time se abalou tão pouco com derrotas, lesões ou aposentadorias quanto o Spurs. Há uma confiança geral dentro da franquia e entre seus torcedores de que um trabalho estável que se mantenha sempre na briga por um título é mais valioso do que exageros e desesperos pontuais na ganância de vencer um título imediatamente. Trata-se de um time incapaz de perder a compostura, que presa um ambiente tranquilo e confiável para seus atletas.
Como essa identidade de ao menos duas décadas culminou então em Kawhi Leonard desconfiando de seus médicos, se negando a jogar pela equipe e forçando uma troca, e Danny Green rompendo um ligamento sem que ninguém percebesse, ainda sendo colocado em quadra numa tentativa fútil de vencer um adversário incrivelmente superior nos Playoffs que, como vimos, viria a ser campeão logo em seguida? Talvez a estranha resposta para essa pergunta seja que o Spurs simplesmente venceu DEMAIS.
Manu Ginóbili e Tony Parker, veteranos no elenco do ano passado, venceram 4 títulos da NBA nesse modelo “estável” do Spurs. Gregg Popovich, por sua vez, venceu 5 títulos como treinador da equipe desde 1999. Acostumaram-se com um certo grau de EXCELÊNCIA enquanto o Spurs se tornou a franquia mais bem sucedida em porcentagem de vitórias nas últimas duas décadas mesmo se levarmos em consideração qualquer time de qualquer esporte profissional. Mesmo quando não venceram títulos, estavam sempre próximos, sempre na briga – e aprenderam a se orgulhar disso e, claro, fazer sacrifícios para que isso acontecesse.
Quando o time começou a despencar com Kawhi Leonard e, eventualmente, LaMarcus Aldridge lesionados e vislumbrando pela primeira vez em 19 anos a possibilidade de sequer alcançar os Playoffs, esses veteranos começaram a fazer sacrifícios para carregar o Spurs em direção a um patamar MÍNIMO de excelência. Aos 40 anos de idade, Ginóbili passou a aumentar seu tempo em quadra, encerrando a temporada como uma média de 20 minutos por partida, a maior nos últimos 3 anos. Parker, fora por boa parte da temporada com uma ruptura num ligamento da coxa, voltou várias semanas antes do esperado para tentar ajudar a colocar o time nos eixos. Até mesmo Aldridge voltou o quanto antes – perdeu apenas 7 jogos – e, mesmo com os desconfortos eventuais, liderou o time ofensivamente nos momentos mais delicados da campanha rumo à pós-temporada.
Enquanto isso Kawhi Leonard, diagnosticado com uma lesão na coxa muitíssimo menos grave do que Tony Parker, continuava alegando “sentir dores demais para poder jogar”. Não à toa Parker foi um dos grandes críticos de Kawhi nos vestiários: com 36 anos de idade e 17 temporadas de NBA nas costas, lhe pareceu verdadeiramente ofensivo ser capaz de voltar apressadamente de uma ruptura na coxa enquanto Kawhi, 10 anos mais novo, fosse incapaz de jogar com “um pouco de dor” pelo bem do time num momento delicado, em que o “legado” de duas décadas ameaçava ruir. A frustração de Parker é perfeitamente compreensível e quanto mais ele e Ginóbili levavam seus corpos ao limite pelo time, mais ressentidos ficavam com a situação de Kawhi. Aos poucos o próprio Popovich, vendo o grau de dedicação do time, começou a ficar igualmente frustrado com Kawhi, fazendo cobranças indiretas à situação do jogador. Criou-se então uma mentalidade de “sacrifício” na equipe, de desespero, de ganhar a todo custo para impedir a “vergonha” de não ir aos Playoffs, de provar que o time ainda era imediatamente relevante. A estabilidade pelo futuro desmanchou em nome de um presente com o qual o Spurs nunca antes havia se preocupado com tamanha intensidade. E foi nessa loucura por uma vitória impossível, incapaz de jogar a toalha – sobreviver à luta para depois vencer a guerra – que em algum momento o ligamento de Danny Green rompeu e a relação de Kawhi com o time definhou até a morte. E ninguém sequer percebeu até ser tarde demais.
Na temporada 1996-97 a então estrela do Spurs, David Robinson, perdeu 76 jogos graças a lesões nas costas e no pé. Ao invés de fazer trocas mirabolantes, colocar jogadores no sacrifício ou contratar substitutos, o recém-contrato Gregg Popovich resolveu apenas PERDER. Jogou a toalha, desistindo do impossível em nome de um futuro mais promissor. Com a terceira pior campanha da NBA naquela temporada, o Spurs se colocou em posição de conquistar a primeira escolha do draft, pegar Tim Duncan e então vencer 5 títulos durante sua carreira. Foi um trabalho de cuidado e paciência que é certamente um dos mais bem-sucedidos da história do esporte.
Com Kawhi fora o Spurs poderia ter jogado a toalha e perdido, ou então dado mais minutos para os seus jovens jogadores e se preparado para o futuro. Mas o costume em vencer, o medo da “vergonha” e os últimos anos de carreira de Parker e Ginóbili forçaram o time a um inédito SENSO DE URGÊNCIA. E foi essa urgência que atropelou as necessidades físicas de seus jogadores e, eventualmente, alienou Kawhi Leonard.
Não foi nem que o ala estava sentindo uma dor que era impossível de tolerar – ele até chegou a voltar às quadras no meio da lesão por alguns jogos, com resultados satisfatórios – mas a pressão da comissão técnica e do departamento médico para que jogasse mesmo com dor lhe pareceu uma ruptura grande demais com a temporada anterior (quando, dizem, ele foi impedido de voltar para as Finais da Conferência Oeste contra o Warriors mesmo querendo relevar o tornozelo torcido). Foi a insistência para que voltasse antes de se sentir pronto que o levou a procurar uma segunda opinião sobre sua lesão, com um especialista no tendão específico de sua lesão, e foi esse médico quem, contrariando o departamento do Spurs, lhe instruiu a não jogar até ter o tendão inteiramente recuperado sob risco de rompê-lo, como ocorrera com Tony Parker. A partir daí, toda cobrança do Spurs para que ele voltasse para as quadras gerava uma crescente QUEBRA DE CONFIANÇA, como se seu bem-estar estivesse sendo colocado em risco em nome de uma campanha que já estava perdida.
Danny Green afirmou que deveria ter procurado outros médicos não porque não confiasse nos médicos do Spurs, mas porque fora do time pode se encontrar com especialistas nos tendões ou músculos específicos de sua lesão, e que isso poderia ter gerado informações até então desconhecidas para os doutores mais “generalistas” do Spurs. Mas para Kawhi, um médico externo ainda trazia o benefício externo de ser IMPARCIAL, de não ter motivos para apressá-lo. Relatos anônimos dizem que Kawhi Leonard chegou ao ponto de dizer para seus companheiros de vestiário que era fiel a eles e que voltaria às quadras assim que pudesse, mas que não era mais fiel ao San Antonio Spurs porque se sentia TRAÍDO. Quando alguns membros do time começaram a pressioná-lo PUBLICAMENTE para que retornasse, a ponte foi queimada em definitivo.
Não apenas entendo perfeitamente a frustração de Parker e Popovich e suas críticas públicas ao Kawhi como também acredito que, com um pouco de “garra”, “raça” e todas essas palavras genéricas que simbolizam o sacrifício do corpo a uma causa imediata abstrata, Kawhi poderia ter retornado ao Spurs muito antes, jogado mesmo com dor, tido um avanço mais lento e gradual em sua lesão, e levado seu time a perder para o Warriors da mesma maneira nos Playoffs – mas com muito mais dignidade. Para os torcedores que acreditam que esporte é sobre “garra” e superação, que o indivíduo deve se sacrificar fisicamente pelo bem da sua franquia e pelos seus companheiros de elenco, e que muitas vezes a saúde a longo prazo deve ser colocada de lado – ou até mesmo comprometida – para que sejam aproveitadas as brevíssimas janelas de oportunidade que permitem ao corpo humano, finito e mortal, alcançar glórias inesquecíveis, então Kawhi apenas falhou. Ele não é digno do esporte e deve ceder lugar para jogadores mais apaixonados, comprometidos e dispostos ao sacrifício do que ele.
Posso não concordar com o discurso – essa não é, ao menos não inteiramente, minha visão do esporte – mas entendo perfeitamente quem defende e admira essa narrativa. Kawhi, por diversos pontos de vista, deixou seus companheiros na mão; Danny Green e seu ligamento rompido, por outro lado, continuou lutando mesmo que seu rendimento e sua capacidade de auxiliar de fato seus companheiros estivessem seriamente comprometidos.
Minha principal ressalva com esse discurso, no entanto, é que ele não é o discurso DO SAN ANTONIO SPURS; não é a narrativa que construiu uma franquia vencedora e nem que gerou 5 títulos de campeão. Pelo contrário, trata-se de uma franquia que não faz movimentos bruscos, que mantém o plano mesmo quando ele não está funcionando momentaneamente, que descansa jogadores para que rendam posteriormente, que evita o sacrifício desnecessário se podem, ao invés disso, se programar calmamente para vencer de maneira mais amena no futuro. Acima disso, essa sempre foi a franquia capaz de se lembrar que se trata apenas de um jogo, com Gregg Popovich alertando seus jogadores após as derrotas mais desestruturantes de que tudo é “apenas basquete”, que existem coisas mais sérias e importantes na vida, e que há sempre a oportunidade de se tentar novamente depois.
Independente de qual o tamanho da culpa ou da falta de comprometimento e de profissionalismo que você direcione para Kawhi Leonard, o que importa é que contrariando todos os preceitos do Spurs acima, agora já não há mais como TENTAR NOVAMENTE DEPOIS – a confiança foi irremediavelmente quebrada, sua estadia com a equipe se encerrou e um dos maiores talentos de sua geração não jogará novamente em San Antonio, a não ser como rival. O futuro foi duramente comprometido porque na hora mais dura – ou seja, na hora em que nossos valores e nossa identidade são SERIAMENTE COLOCADOS À PROVA – ninguém foi capaz de dizer para Kawhi que se tratava “apenas de um jogo”, e que ele voltaria quando estivesse confortável, porque sempre haveria uma nova temporada para que ele tentasse de novo, e dominasse de novo, e eventualmente fosse campeão.
O preço dessa quebra de identidade foi caro, e agora o Spurs terá que voltar às quadras com sua versão mais “improvisada” em duas décadas – não se enganem, por melhor que DeMar DeRozan seja e por melhor que ele porventura venha a se encaixar no time, ele nunca foi um alvo prioritário, um plano a longo prazo ou um sonho de consumo, foi apenas o que ESTAVA DISPONÍVEL para trocas numa tentativa de arrumar a encrenca. Por isso, mais importante do que o sucesso de DeRozan na franquia é que o Spurs RETOME seus valores e portanto a um modelo que possa sobreviver a essa crise – e à ida de Parker para o Hornets, e à aposentadoria de Ginóbili, e à partida de Popovich, e a toda sorte de mudanças que inevitavelmente acontecerão ao longo dos anos. É sempre olhando para a frente que o Spurs conseguiu vencer; nos últimos anos de Popovich, ele precisa então mirar mais uma vez no futuro. Preparar o terreno para quem virá depois dele talvez seja sua única esperança de, no processo, vencer alguma coisa enquanto ainda está na franquia. Olhar para o futuro é o único sacrifício possível para o Spurs – todos os outros sacrifícios são puro medo, inúteis e, infelizmente, oportunidades para queimar pontes com suas estrelas, algo que o time precisará aprender a evitar se quiser retomar seu lugar, ainda que não imediatamente, na NBA.