Quando discutimos sobre os passos necessários para que um time se torne “melhor”, em geral pensamos em duas soluções óbvias: contratar jogadores melhores e encontrar esquemas táticos mais eficientes para esses jogadores. Dessas soluções é que surgem ramificações: se o time não contrata grandes jogadores, a culpa pode ser dos dirigentes, que talvez precisem ser trocados; se o esquema tático correto não é implementado, a culpa pode ser do técnico, que talvez precise ser substituído. No fundo estamos sempre discutindo talento, seja ele por parte dos jogadores ou da comissão técnica, e um time deveria melhorar na medida em que adquire mais talento, ou na medida em que seus membros se tornam, eles próprios, mais talentosos – através de treino, estudo, amadurecimento, etc. Por conta dessa abordagem, muitas vezes esquecemos de um dos principais elementos capazes de transformar o rendimento de uma equipe: a construção de uma “cultura”.
Talvez a dificuldade em discutir a “cultura” de uma equipe esteja em quão abstrato é esse conceito. Usamos a palavra em múltiplos contextos diferentes em nosso dia-a-dia, com diferentes significados, e mesmo quando o uso é o mesmo ao nos referirmos ao basquete temos dificuldade em apontar exatamente o que é que, em uma determinada equipe, se configuraria como sua “cultura”. Trata-se, na verdade, de uma junção grande de coisas: estamos falando de um certo modo de se pensar e de se fazer as coisas, uma maneira específica de preparar a equipe, de treinar, de contratar, mas também um modo dos envolvidos lidarem uns com os outros. Não são simples “regras de conduta”, não se trata de um conjunto de leis que é possível pregar na parede; estamos falando, na verdade, de uma maneira determinada de se PENSAR O MUNDO.
Parto sempre do princípio de que as coisas, por si só, não significam nada. É preciso que a cultura humana lhes dê significado, dizendo onde se encaixam em nosso mundo e como devemos interpretar cada uma dessas coisas. Grupos decidem o que lhes é útil ou dispensável, o que é digno de amor ou de repulsa, quais são as reações possíveis, o que cada acontecimento significa. Se para alguns uma bola entrando dentro de uma cesta pode parecer um evento completamente ridículo e aleatório, para o grupo dos torcedores de basquete esse mesmo acontecimento pode ser épico, incrível, histórico, algo que você se lembrará pelo resto de sua vida. O evento é o mesmo, mas culturas diferentes dão a ele diferentes interpretações e, portanto, ele se torna algo diferente. Para nós, não há nada mais distinto de uma “bola entrando numa cesta” do que um arremesso decisivo em um Jogo 7 de uma Final de Conferência, tudo porque interpretamos essa bola dentro de um contexto, uma história, uma rede de significados.
Quando estamos falando da cultura de um time de basquete, portanto, estamos apontando para a maneira específica de um determinado grupo de INTERPRETAR cada acontecimento ao seu redor. Falamos muito aqui no Bola Presa sobre as “narrativas” de cada equipe, o que na prática significa simplesmente a HISTORINHA que surge a partir de um modo de se interpretar os eventos. Um time pode interpretar as derrotas que sofre como “mais um momento de fracasso”, “outro tropeço numa longa história de desastres”, ou então como “culpa do técnico”, ou ainda como “um revés do qual nos vingaremos no futuro próximo”. O discurso padrão de um time para lidar com as derrotas, por exemplo, é uma das maiores demonstrações de sua “cultura”: mostra se o time quer perder ou vencer, se o plano é de curto ou de longo prazo, se o foco é no individual ou no coletivo, se existem disputas no vestiário, como o time lida com a imprensa, etc.
O engraçado é que para quem está fora de uma determinada cultura, a narrativa de um grupo costuma parecer absurda, ridícula, muitas vezes até mesmo incompreensível. O que para a maioria de nós era simplesmente o Blazers não sendo bom o bastante nos últimos anos, para Damian Lillard se tratava de uma tentativa metódica da mídia de diminuir sua equipe ao se recusar a ver todo o poder e o potencial de seus companheiros, por exemplo. Essa narrativa de que eles terão que provar para o MUNDO que são melhores do que os outros esperavam é resultado da cultura da equipe, fortemente liderada por Lillard, que há anos os imagina como sendo “injustamente desmerecidos” – e que levou a um grupo unido, obcecado por treinamentos, e em ascensão. Às vezes a narrativa nos parece ALIENÍGENA, SURREAL, mas o que importa é se ela funciona.
A cultura de um time, portanto, é resultado de todas as partes e dificilmente pode ser imposta a partir de uma única fonte. A diretoria pode pensar em diretrizes, construir uma narrativa sobre a equipe (“aqui nós queremos assim”, “aqui nós pensamos dessa maneira”, “aqui nós procuramos esse tipo de jogador”), e essa é em geral a cultura que será apresentada para os jogadores que visitarão o time no momento em que decidirão assinar ou não um contrato. Mas essa cultura da diretoria sofre mudanças por parte do técnico, dos jogadores e até mesmo de lugares inusitados, como a torcida ou a equipe de marketing. Não adianta pensar sua equipe como um lugar de “trabalho duro” se os jogadores contratados historicamente desdenham os treinos ou o trabalho físico; não dá pra pensar seu time como uma potência defensiva se sua torcida só vibra com as jogadas de ataque. Uma cultura é uma junção de muitas interpretações diferentes que, com sorte, se juntam para gerar uma única narrativa coerente e coesa. É possível que essa coerência venha aos poucos, com insistência – de tanto falar em defesa, a torcida aprende a apreciá-la, ou os jogadores começam a aprender a se focar nela – mas trata-se de um trabalho longo e gradual que precisa se infiltrar em todos os lugares de uma franquia, atrair os jogadores e os funcionários certos, e que pode levar anos para ser construída especialmente quando outra cultura, mais nociva, está em seu lugar.
São raros os times que têm a oportunidade de começar uma cultura do zero graças a um recomeço ou uma reestruturação muito drástica. É o caso do Lakers atual, e talvez essa oportunidade tenha sido um dos motivos que atraiu LeBron James para lá. Para essa temporada são 9 jogadores novos no elenco, com o membro mais antigo na franquia sendo Brandon Ingram, jogando atualmente sua terceira temporada pelo Lakers. Se antes o técnico Luke Walton talvez precisasse combater uma cultura anterior estabelecida na equipe, agora não há nenhum membro do elenco que tenha experimentado qualquer treinador que não seja ele. Temos uma folha em branco, uma chance de estabelecer uma nova cultura – através, inclusive, da chagada de Magic Johnson como General Manager da equipe no ano passado – e uma chance de LeBron James experimentar um time sem as desavenças, mágoas ou falhas de comunicação que marcaram o Cavs nos últimos anos, independente de quaisquer responsabilidades que ele possa ter por ter causado esses problemas em seu tempo de Cleveland.
Em seu primeiro jogo pelo Lakers, vimos um LeBron James vocal, dando piques insanos na quadra, forçando passes mesmo em situações absurdas, e reunindo seus companheiros no meio da partida para uma orientação MUITO ESTRANHA: “toda vez que você cair, fique no chão, seu irmão virá te levantar”.
“Anytime you fall, stay down.. you’re brother will come pick you up"
LeBron James is mic'd up for the @Lakers on @NBAonTNT! #LakeShow #ThisIsWhyWePlay pic.twitter.com/2dabVW3CFp
— NBA (@NBA) October 19, 2018
Para quem está de fora, a coisa toda foi verdadeiramente bizarra: por que raios um jogador precisa esperar alguém de sua equipe levantá-lo? Por que LeBron resolveu dar essa “mensagem” após ver Kyle Kuzma levantando sozinho? Seria apenas uma questão de “etiqueta”, um código de conduta, de boas maneiras, entre jogadores da NBA? O mais legal da cena (e que pra mim descarta a teoria de que LeBron “só quis aparecer” por saber que estava microfonado) é que Rajon Rondo reitera a orientação, gritando para Brandon Ingram que está mais distante e pode não ter ouvido LeBron direito. O “acordo” é geral.
Antes mesmo da temporada começar, LeBron já estava se referindo aos seus companheiros de equipe nas redes sociais como “irmãos” ao elogiar o desempenho de todos nos treinos. Fotos do elenco reunido começaram a surgir por todos os lados, associadas a um discurso de que esses jogadores eram “desacreditados”, “excluídos”, uma “irmandade improvável”. Cada mínima palavra, cada pequeno gesto, tudo funciona para criar uma cultura de “união”, de coletividade. Ser levantado na quadra por um companheiro frente a qualquer tombinho besta é completamente absurdo no mundo real, mas dentro dessa cultura trata-se de um símbolo: o jogador SE DEIXA SER LEVANTADO, ele permite que seus companheiros participem e ajudem mesmo quando isso não parece ser necessário. A mensagem é mais para quem levanta do que para quem é levantado. Some isso aos passes bizarros que LeBron tentou, sem sucesso, em sua partida de estreia, e o recado final é de que está todo mundo tentando encontrar seus companheiros em quadra mesmo quando todo o bom senso pregaria o contrário. Como o discurso da comissão técnica do Lakers é de que o time deve tentar liderar a NBA em passes dados por jogo, surge então uma COESÃO DE PENSAMENTO, uma maneira única de se pensar o jogo e a relação com os companheiros.
Talvez essa nova cultura dê um pouco mais de contexto para o SOCO ALEATÓRIO que Brandon Ingram soltou no meio da briga entre Lakers e Rockets após uma discussão entre Rajon Rondo e Chris Paul. Ingram, famoso por ser “relaxado” e parecer se importar muito pouco com absolutamente qualquer coisa, não pensou duas vezes antes de soltar uma PORRADA para, de maneira totalmente estabanada e completamente imbecil, “proteger seus irmãos”. O que em muitos times teria sido visto como sinal de “descontrole”, talvez levando até mesmo a uma punição interna, nesse novo Lakers foi visto como um indício de que a equipe está unida, que eles se importam uns com os outros, que Ingram “despertou de seu sono profundo”. A interpretação de um grupo, por mais absurda e equivocada que seja, é quem cria a narrativa vigente para esse conjunto de pessoas. Por lá, agora Ingram é herói.
Outra tentativa de estabelecer uma nova cultura pode ser vista no novo Toronto Raptors, que demitiu Dwane Casey, eleito melhor técnico no ano passado, e trocou DeMar DeRozan, seu melhor jogador nas últimas temporadas. As duas decisões, extremamente polêmicas, vem depois do time liderar a Conferência Leste em vitórias na temporada passada – e depois ser VARRIDO pelo Cavs nas semi-finais de Conferência. O time é bom há anos mas sempre engasgava na pós-temporada, de modo que resolveu tentar ano passado uma reformulação tática radical para deixar a equipe mais imprevisível nos Playoffs. A mudança levou o time ao topo da Conferência, mas a engasgada nos Playoffs veio da mesma maneira, de forma vergonhosa e, mais uma vez, traumática.
A diretoria resolveu, então, que o time passaria MAIS UMA VEZ por mudanças radicais, incluindo – como nos mostrou o vídeo mostrado no telão do ginásio na abertura da temporada em casa – uma mudança de cultura, de narrativa. Vale a assistida:
O vídeo não tem muitas rédeas: fala que chegou a hora de dar um fim às inseguranças (do time e da torcida), que já não faz mais sentido a narrativa de que “ninguém quer ir para Toronto”, que eles estão na elite do basquete, e que é preciso esquecer todos os jogadores que foram embora ou não ofereceram aquilo que se esperava deles, como Tracy McGrady, Vince Carter, Chris Bosh, e pelas imagens até mesmo Andrea Bargnani e nosso Baby Araújo. O vídeo admite a dificuldade de abrir mão de membros importantes do elenco, mas afirma: “não chegamos tão longe só pra chegar tão longe, chegamos tão longe pra chegar mais longe ainda”.
A ideia do vídeo é simples: trocar a cultura de insegurança por uma cultura de “tudo ou nada”, de “risco”. Essa cultura de insegurança foi construída por anos e anos de eventos e narrativas, a ponto de criar uma sensação (tanto para o elenco quanto para os torcedores) de que esse time é “tudo que resta”, afinal ninguém quer ir para o Raptors, eles nunca conseguirão fazer uma reconstrução, os futuros jogadores vão abandoná-los de novo, é melhor ficar com um time bom que não é campeão do que ter que começar de novo num lugar em que ninguém quer jogar. É comum, até mesmo, um receio de que a TORCIDA abandone o time, já que demorou para que a cidade de Toronto abraçasse o Raptors após anos de fracasso, e agora vemos uma torcida apaixonada que toma o ginásio e as ruas. Mas será que essa torcida ainda estará lá se o time desmontar, se tiver que passar anos em reconstrução, se precisar começar de novo?
Frente a isso, a proposta do Raptors é simplesmente ARRISCAR, porque supostamente essa seria, segundo o vídeo, a “marca dos grandes campeões”. Se o time tiver que implodir, que assim seja. Essa nova cultura tenta transformar o risco GIGANTE de ter trocado por Kawhi Leonard (que pode abandonar o time ao fim da temporada já que esse é seu último ano de contrato) numa espécie de ORGULHO PELO RISCO, um time que não se contenta em apenas ser bom, que quer ser O MELHOR. Esse é o tipo de risco que seria completamente desencorajado por uma cultura como a do Spurs, por exemplo, que preza pelo comedimento, pela constância, por construir estruturas sólidas que durem décadas. Mas o Raptors optou por criar uma cultura que permita essa narrativa do risco como “necessário à vitória”, e que passa por todos os âmbitos: pela diretoria (que faz trocas e demissões “ousadas”), pelo marketing (que faz o vídeo e tenta transmitir a mensagem), pela torcida (que apoia o time mesmo sabendo que Kawhi pode ir embora sem deixar nada em troca), pelo elenco (jogando com Kawhi sem pensar no futuro, tentando o “tudo ou nada”) e até pelo esquema tático super agressivo e cheio de urgência. O resultado não é apenas uma diretoria sofrendo menos agressões por ter trocado DeMar DeRozan e ter possivelmente colocado em risco todo o futuro da franquia, é também um time invicto, líder da Conferência Leste, jogando provavelmente o melhor basquete da temporada nesses primeiros 10 dias.
Num time de basquete, não basta apenas tomar decisões, trazer talento, fazer escolhas táticas: é preciso uma CULTURA que dê significado a todas essas coisas, que dê coerência a todas as partes, que permita um discurso e uma narrativa capazes de dar direção e sentido a todos os envolvidos. Por isso não basta também ver apenas o basquete em si, nas quadras: é preciso ver a historinha que cada time conta para si mesmo, a imagem que eles tentam transmitir, a interpretação que eles dão para cada vitória ou derrota que acontece com eles. Na diretriz de “não se levantar” e num simples vídeo de abertura de temporada podemos ver o que está por trás do basquete que vemos todos os dias: é a estrutura narrativa que torna o basquete possível, e que dá às cestas e pontos um sentido maior do que aquilo que vemos no placar ou no boxscore.