🔒Um Spurs para os novos tempos

Perto do final de dezembro, o San Antonio Spurs estava numa situação complicada: com 28 jogos disputados, somava apenas 11 vitórias, o pior aproveitamento do time para essa época do ano desde a temporada 1996-97. Mesmo num Oeste atipicamente embolado, com diversas forças aparentemente niveladas lutando para chegar  aos Playoffs, um aproveitamento tão ruim quanto o do Spurs não parecia sequer suficiente para alcançar a pós-temporada. O começo ruim foi o bastante para levantar uma série de questionamentos sobre a equipe e, principalmente, sobre seu futuro.

A primeira dúvida, que ganha cada vez mais força nos últimos anos, é se Gregg Popovich e seu estilo tático, notoriamente avesso às bolas de três pontos, ainda possui espaço na NBA atual. Nenhum time arremessa MENOS bolas de três pontos do que o Spurs nessa temporada, com a equipe arremessando em média 17 bolas a menos por jogo do perímetro do que o líder no quesito, o Houston Rockets – e isso já depois de normalizar o número de posses de bola de cada um dos times. Numa liga que descobriu a superioridade estatística dos arremessos de três pontos, quão viável é ter um time vencedor que se recuse a fazer uso desse recurso? Essa discussão já é antiga aqui no Bola Presa: se por um lado o Spurs é um dos times que rema contra a maré, criando um basquete divergente (teimoso, porém fresco) no basquete contemporâneo, por outro Popovich nunca deixou sua baixa estima pelas bolas de três prontos comprometer seu uso desse recurso quando bons arremessadores estiveram disponíveis no elenco. Por isso há os que defendem que Popovich se adeque, os que torcem para o time continuar resistindo às novas tendências, e aqueles que afirmam que Popovich faria de bom grado os ajustes necessários – caso eles fossem possíveis, claro.

A suposta dificuldade de ajustes remete à segunda grande dúvida que paira sobre esse Spurs: o elenco. O processo de rejuvenescimento do time esbarra no constante sucesso moderado da equipe nos últimos anos, forçando os nomes da renovação a serem escolhidos sempre no meio ou no fim do draft, ou até fora dele – são os casos de Lonnie Walker (décima oitava escolha), Bryn Forbes (sequer draftado), Derrick White (escolha vinte e nove) e Dejounte Murray (escolha vinte e nove). O jovem jogador da equipe mais bem posicionado no draft, Jakob Pöltl (nona escolha), veio na troca de Kawhi Leonard, ou seja, sequer foi draftado em San Antonio. Além dos novos talentos não terem o renome e o talento, ao menos imediato, para transformar ou recomeçar uma franquia, as duas estrelas já estabelecidas – LaMarcus Aldridge e DeMar DeRozan – também não são nenhuma unanimidade. Aldridge nunca teve um encaixe fácil em San Antonio, com seu jogo de meia distância e suas dificuldades defensivas iniciais recebendo críticas constantes, enquanto a incapacidade de DeMar DeRozan de arremessar do perímetro sempre gerou dúvidas sobre sua real eficiência num ataque moderno.

A soma de todos esses elementos torna o Spurs, portanto, um grande caldeirão de inseguranças: duas estrelas que se embolam juntas tentando dominar a meia distância, um técnico que em seu mundo ideal abandonaria o perímetro, e jogadores novos aparentemente incapazes de quebrar essa dinâmica ou introduzir algum elemento verdadeiramente transformador para o time. Não é de espantar que a viabilidade do projeto, que conceitualmente já caminhava na corda bamba, tenha virado farofa depois desse começo de temporada recheado de derrotas, levando até mesmo a pedidos de reconstrução completa, trocas de Aldridge e DeRozan e até, por PURA HERESIA, uma troca de técnico.

E foi aí que no dia 23 de dezembro, com a Rodada de Natal se aproximando, algo diferente aconteceu: o San Antonio Spurs acertou 15 bolas de três (cinco a mais do que a sua média por jogo), marcou 145 pontos (seu máximo na temporada até aqui), atropelou o Memphis Grizzlies por surreais 30 pontos de diferença (também a maior vantagem da temporada) e saiu de quadra como se uma nova era tivesse começado. O ânimo era justificado: o time, uma das 10 piores defesas da NBA na temporada até então, parecia finalmente ter se ajustado e conseguido um esforço verdadeiramente entrosado e coletivo, defendendo o adversário da maneira correta. Mas, quem diria, foi no ataque em que vimos a maior diferença. Ainda era cedo para cravar com certeza, mas foi ali naquele jogo que o Spurs fez sua mudança mais ousada dos últimos anos: na prática, contrariando o boxscore e a súmula, o time usou DeMar DeRozan como ala de força, relegando Aldridge basicamente ao perímetro. O resultado inicial foi surpreendente: ali, contra o Grizzlies, DeRozan acertou 10 dos seus 11 arremessos tentados no jogo, com Aldridge acertando 3 bolas de três pontos – seu recorde na temporada até aquele momento – rumo a uma partida de 40 pontos marcados.

A mudança continuou desde então, apenas se consolidando e tornando-se mais evidente. Foram 8 partidas nesse modelo, em que o Spurs somou 5 vitórias – incluindo triunfos em cima de Bucks e Celtics, dois dos melhores times da liga, e derrotas apertadas para Mavs e para o mesmo Bucks. Nessas últimas 8 partidas o Spurs é um novo time: a defesa agora está na média da NBA, ao invés de entre as 10 piores, e o ataque é DISPARADO o melhor da liga, um dos cinco que mais convertem bolas de três pontos e o melhor aproveitamento nesses arremessos com sobra, mais de 3% à frente do segundo colocado.

Nesses 8 jogos, LaMarcus Aldridge – que nunca arremessou mais do que 1.5 bolas de três pontos por jogo na carreira – está tentando 4.4 arremessos do perímetro por jogo (chegou a tentar SETE dessas bolas na derrota apertada para o Bucks), acertando acima de 50% nesses lances. Mas para que não associemos o sucesso do Spurs diretamente ao APROVEITAMENTO de Aldridge nessas bolas, que nem por milagre se manterá nesse nível no restante da temporada, é bom ressaltar que o jogador acertou apenas uma das 5 tentativas do perímetro contra o Celtics fora de casa – e o Spurs venceu mesmo assim, basicamente porque a defesa da equipe de Boston estava ENLOUQUECIDA de preocupação com os seus arremessos de longa distância.

Enquanto isso, durante essas mesmas 8 partidas, DeMar DeRozan tem mais de 80% de aproveitamento em todas as suas tentativas de arremesso próximas ao aro e quase 60% de aproveitamento em bolas longas de dois pontos. Além disso, nesse período cobrou mais de 10 lances livres por duas vezes, algo que só havia acontecido em três outras ocasiões em toda a temporada até aqui – e que foi crucial para o Spurs vencer o Celtics mesmo quando as bolas de três pontos não estavam caindo.


É raro ver uma transformação tão grande no aproveitamento e no estilo de jogo de um time no meio de uma temporada, mas o mais fascinante é ver COMO isso aconteceu. Ao assumir que DeMar DeRozan é um ala de força espetacular, capaz de finalizar próximo ao garrafão com altíssimo aproveitamento, Popovich resolveu que era hora de tirar LaMarcus Aldridge do caminho, acabando com o problema grave de espaçamento que o time possuía, com gente demais ocupando o caminho para a cesta e atrapalhando as infiltrações e o espaço para arremessos de três pontos do restante da equipe. Tirar Aldridge do garrafão parece o último capítulo de uma longa história – a princípio Popovich queria que Aldridge desempenhasse o mesmo papel de Tim Duncan, o que supostamente frustrou o ala em sua primeira temporada em San Antonio; em seguida, admitindo ter forçado Aldridge a ser alguém diferente do que era, permitiu que o jogador orbitasse a meia distância, adentrando o garrafão eventualmente. Nenhuma das duas abordagens foi um sucesso, entretanto; por mais que os arremessos de Aldridge tenham sustentado um Spurs seriamente desprovido de pontuadores, nunca foram o bastante para atrair marcações, quebrar defesas e facilitar o trabalho dos demais jogadores do elenco. A nova abordagem – colocar Aldridge no perímetro – admite o fracasso da empreitada até aqui e relega o jogador a um novo papel mais benéfico ao time do que pra ele, com a crença de que isso será, também, benéfico para ele a longo prazo, como discutiremos mais pra frente. Na prática, isso não significa que ele esteja proibido de se aproximar da cesta – pelo contrário, ele ainda tenta várias das suas bolas tradicionais. O que importa, de verdade, é que ele passe a maior parte do tempo afastado da cesta e, principalmente, que sempre caminhe em direção à linha de três pontos depois de fazer um corta-luz. É a morte do pick-and-roll (o corta-luz seguido de um corte para a cesta) em nome de um constante pick-and-pop (o corta-luz seguido de um corte em direção ao perímetro). Dá para ter uma ideia vendo os melhores momentos de Aldridge na última vitória contra o Celtics:

Percebam que Aldridge sempre tende ao perímetro quando está sem a bola, recebe passes sempre fora do garrafão e, caso o garrafão esteja completamente livre e ele tenha a posse, pode tentar entrar ou dar arremessos longos de dois pontos. O importante é que ele nunca esteja lá esperando a bola.

DeMar DeRozan, agora, é quem passa mais tempo dentro do garrafão jogando de costas para a cesta e distribuindo passes para os outros quatro jogadores – incluindo Aldridge – que ficam abertos na linha de três pontos. Ainda assim, DeRozan dificilmente fica parado no garrafão simplesmente esperando a bola chegar; como tem bom drible e boa capacidade de infiltração, muitas vezes ele pega a bola longe da cesta, entra no garrafão e só aí vira de costas, jogando no mano-a-mano de costas para a cesta e pronto para distribuir um passe para fora. Mais uma vez os melhores momentos de DeRozan contra o Celtics ajudam a entender a situação:

Coisas para ver de novo e prestar atenção no vídeo acima: como a esmagadora maioria das jogadas de DeRozan ocorre de costas para a cesta (e quão bom ele é nisso, o gancho em cima do Gordon Hayward é coisa de sonho); como Aldridge NUNCA vai para o garrafão depois de um corta-luz, sempre próximo à linha de três; como os defensores do Celtics resistem a dobrar em DeRozan porque estão com medo de passes e arremessos do perímetro; como DeRozan tem facilidade em parar suas jogadas de garrafão no meio para passar a bola para fora.

Foi exatamente nesse esquema que o San Antonio Spurs converteu DEZENOVE bolas de três pontos na vitória contra o Bucks – segunda melhor marca da história da franquia justamente contra a melhor defesa disparada dessa temporada. Nesse jogo, Trey Lyles – que ganha cada vez mais espaço como pivô do Spurs por ter FOBIA DE GARRAFÃO – arremessou 6 bolas de três pontos, ainda que tenha convertido só duas; Patty Mills, agora com muito mais espaço para arremessar e um dos únicos com carta branca para tentar bolas de três pontos vindo do drible, converteu ele próprio mais 6. Outros jogadores começaram a ter mais espaço e protagonismo por conta do melhor espaçamento do time: Dejounte Murray tem mais possibilidades de infiltração e Lonnie Walker, que tem bom arremesso mas dificuldades de leitura de jogo, conseguiu até seu primeiro jogo como titular e pela primeira vez na carreira jogou três jogos seguidos por mais de 19 minutos cada nessa sequência atual de 8 partidas.

Ter mais espaço para arremessar e para infiltrar é o que faltava para esse Spurs, e é inebriante – faz com que os jogadores se movimentem mais sem a bola e, com isso, o time consegue encontrar mais passes e rodar a bola como nos tempos áureos do time (e como nos sonhos molhados de Popovich):

Curiosamente, isso só é possível na NBA atual com o garrafão esvaziado. Antigamente, tirar os seus pivôs do garrafão não adiantava muito no espaçamento porque os pivôs adversários ainda podiam ficar próximos do aro, contestando eventuais infiltrações. Hoje em dia, como TODO MUNDO arremessa de três pontos, os pivôs adversários precisam sair também, e aí há muito mais espaço para se movimentar com e sem a bola em direção à cesta. Na jogada abaixo, por exemplo, dá pra ver como essa cesta simples (um corte para o garrafão, um passe e uma bandeja) só é possível porque não tinha UMA VIVA ALMA perto do aro:

O Spurs está usando 5 jogadores abertos, ou seja, todo o seu quinteto em quadra está na linha de três pontos. Isso é ainda mais eficiente para esvaziar o garrafão de defensores quando o pivô de San Antonio está com a bola nas mãos para o passe, já que isso atrai ainda mais o pivô adversário e permite que os demais jogadores, mais rápidos, se movimentem ao redor dele. Curiosamente isso está fazendo com que LaMarcus Aldridge participe até mais no ataque do que o normal, e muitas vezes lhe rende não apenas oportunidades de passe mas também de encarar seu defensor no mano-a-mano e forçar arremessos contra uma defesa mais pulverizada ao longo da quadra.

Não preciso dizer o quanto essa inversão entre DeRozan e Aldridge tem sido boa para o Spurs – os números, os resultados e os trechos das jogadas acima provam exatamente esse ponto. Mas acho importante ressaltar como essa nova abordagem pode ter salvado o restante das carreiras desses dois jogadores. DeRozan sempre teria espaço na NBA, como sempre tem os grandes pontuadores, mas há anos ele é associado a um pesadelo de encaixe – não muito diferente do que vive Ben Simmons no Sixers, por exemplo. Saber que um jogador é bom não é suficiente para que os times saibam imediatamente onde colocá-lo em quadra, em que esquema tático e com quais outros atletas ao seu redor. Deixar de usar os talentos de DeRozan na média e curta distância é insanidade, mas é muito difícil conciliar seu jogo com outros jogadores de garrafão. Assumir que um jogador de seu tamanho e com o seu repertório pode ser um ala de força bastante tradicional nessa era de jogadores mais baixos e mais arremessadores certamente aumentará seu valor não apenas para o Spurs, mas também para outros times ao redor da liga – talvez até mesmo abrindo portas para que outros jogadores do seu estilo ganhem mais oportunidades próximos à cesta.

Mas se precisarmos escolher um beneficiado, certamente LaMarcus Aldridge é quem colherá mais frutos se o plano do Spurs nos últimos 8 jogos se mantiver a longo prazo. Muitas vezes considerado “introcável” numa liga que dá pouco valor para jogadores de garrafão que insistem na meia distância, Aldridge de repente entra num seleto grupo de jogadores COBIÇADÍSSIMOS por atuar no garrafão defensivamente e por arremessar bolas de três pontos no ataque. Essa combinação rendeu nada menos que 22 milhões de dólares por ano para Brook Lopez no Bucks, por exemplo. Não há um time da NBA que não esteja interessado num jogador capaz de defender no drop – ou seja, recuando quando atacado por um adversário após um corta-luz, defendendo apenas nas proximidades do aro, coisa que Aldridge faz muito bem – e que espace a quadra arremessando 4 bolas de três pontos por partida. Não precisa nem manter o aproveitamento ABSURDO de 50% – Brook Lopez está numa temporada ruim nesse quesito, abaixo da média da NBA, acertando apenas 30% de suas tentativas, e ainda é valiosíssimo porque abre o garrafão, forçando os defensores para perto dele por puro medo irracional. Aldridge deve ter o mesmo efeito ainda que eventualmente suas bolas não caiam e, por se adequar mais ao que se espera de um jogador do seu tamanho na NBA atual, deve ganhar mais alguns anos de contratos gordos pela frente.

Enquanto isso, o Spurs colhe os frutos de ter um time mais antenado com as novas exigências do esporte, sem no entanto perder inteiramente sua identidade – o movimento de bola, o basquete coletivo, os arremessos de meia distância – e, ainda mais importante, sem deixar de ser visionário. Não é todo time que teria coragem de usar DeRozan como ele vem sendo usado nos últimos jogos, fazendo com que o Spurs esteja, de um jeito ou de outro, sempre um passo a frente do seu tempo. Saber onde ceder e onde manter sua tradicionalidade e identidade é sempre o desafio dos novos tempos para todos times – e para todos nós, existindo num mundo que muda cada vez mais rápido. Mas se há um time capaz de encontrar o fino equilíbrio nessa difícil equação, esse time é o Spurs. Mantida esse plano de jogo, será muito difícil impedir esse time de alcançar os Playoffs, e mais difícil ainda questionar que todo time comandado por Popovich sempre terá um futuro, por mais teimoso que esse futuro possa parecer a princípio.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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