🔒Uma população de vampiros

Começou com Gregg Popovich alternando suas estrelas em jogos televisionados da temporada regular para descansar seus atletas, estendeu-se para LeBron James pulando alguns jogos em busca de algum respiro e culminou em Steve Kerr, num dos jogos mais aguardados da temporada 2016-17, sentando todos os seus titulares para descansá-los. A ideia de não colocar jogadores saudáveis em quadra sempre foi incômoda para a NBA e gerou alguns atritos entre a liga e Popovich ao longo dos anos, mas foi necessária a prática consolidar-se e atingir um dos times mais desejados de todos os tempos para que uma ação oficial fosse tomada.

Para a NBA, um jogo entre Warriors e Spurs, dois dos favoritos ao título do Oeste em 2017, é um bem valiosíssimo. A data para um clássico desse tamanho tem preferência no calendário, é decidida com antecedência e a partida é televisionada não apenas em rede nacional nos Estados Unidos mas também em televisões do mundo todo. Além disso, torcedores atravessam o país – às vezes até mesmo o oceano – para assistir esse tipo de embate querendo assistir suas estrelas em desafios do mais alto nível. Deixar de ver um jogador importante que acabou se lesionando é triste mas compreensível; descobrir que o jogador não estará em quadra por um motivo subjetivo como “descanso” já é mais difícil de engolir e certamente cria uma má imagem com os fãs. Mas a justificativa de Steve Kerr foi simples: o Warriors estava jogando sua oitava partida em 13 dias, atravessando nesse período 8 cidades diferentes. Na noite anterior à partida contra o Spurs, o Warriors havia jogando em Minessota, forçando o elenco a uma viagem longuíssima e uma nova partida em menos de 24 horas. Descansar, nesse caso, não seria um “capricho”, mas sim uma necessidade. O caso levou a NBA a ter que implementar regras bem claras de quando um time pode ou não descansar jogadores – e, como em toda negociação, fazer concessões, reduzindo o número de viagens e jogos em dias consecutivos para todas as equipes.

A partir da temporada 2017-18, os 22 jogos mais importantes para a televisão americana e mundial passaram a ser “protegidos”, nunca ocorrendo em back-to-backs (jogos em dias consecutivos), em sequências de 4 jogos em 5 dias, e nem em sequências de 5 jogos em 7 dias. Além disso, o calendário passou a garantir que os times participantes nesses jogos tenham poucos quilômetros de viagens nos dias anteriores. Ou seja, deram aos times condições para não ter que descansar ninguém quando o planeta estiver vendo. Fora isso o novo calendário inteiro, como já contamos aqui, passou a distribuir melhor as partidas ao longo da temporada, facilitando a vida de todas as equipes.

Por outro lado, descansar jogadores passou a ser algo muito mais controlado e passível de multas reais. Sob a justificativa de que privar os torcedores de ver um jogador saudável corresponderia a “conduta inapropriada em detrimento da NBA”, não colocar um jogador saudável em quadra em jogos com transmissão nacional passou a gerar multas de 100 mil dólares. O mesmo ocorre caso um time descanse mais de um jogador ao mesmo tempo num jogo qualquer da temporada regular ou quando uma estrela descansa num jogo fora de casa, já que essa seria uma oportunidade única para os torcedores de outras cidades e estados acompanharem pessoalmente esse jogador. Quando um jogador não entra em quadra, não basta mais apenas justificar – os famosos “gripe”, “lesão menor” e demais desculpas que abundam nas súmulas das partidas. Agora é preciso PROVAR, com relatórios médicos e atestados de especialistas.

Como Kawhi Leonard fez, então, para jogar apenas 60 partidas na última temporada regular mesmo sem lesões? Como o Raptors foi capaz de descansá-lo em tantas oportunidades, impedindo que ele disputasse todas as partidas em dias consecutivos que o Raptors enfrentou? A resposta é a nova EXPRESSÃO MODINHA no mundo da NBA: “load management”, ou “gestão de carga” aqui em terras tupiniquins. Ao todo foram 14 partidas na temporada 2018-19 em que o nome de Kawhi Leonard veio acompanhado da expressão – e relatórios médicos satisfatórios para justificá-la – na hora de listá-lo como “não disponível” para alguma partida.

A ideia central da “gestão de carga” está em maximizar a performance dos jogadores enquanto minimiza o risco de lesões. Supostamente uma carga de esforço nunca deveria exceder a capacidade de um jogador de superar essa carga, pois é nesses momentos em que o tecido não dá conta e as lesões acontecem. Ou seja, é justamente naqueles “momentos de superação”, em que o jogador deveria dar mais do que dá conta, em que as lesões geralmente ocorrem. Para evitar isso, não se trata de simplesmente diminuir os minutos de um jogador, mas sim de prepará-lo adequadamente para a carga que ele terá que aguentar nos tais “momentos de superação” de uma partida.

Aguentar uma carga num jogo significa, segundo os novos cientistas esportivos, já ter lidado com essa carga anteriormente e ter chegado nela de maneira gradual, com tempo suficiente para que o tecido se adapte e possa sustentar essa carga. Treinos pesados na verdade parecem REDUZIR a chance de lesões, enquanto situações intensas e inesperadas em uma partida oficial tendem a aumentar essa chance. Na prática, isso significa que a melhor maneira de um jogador estar saudável e atuando em altíssimo nível é treinar em ambiente controlado, aumentando a carga do esforço gradualmente, e descansar em quaisquer situações de jogo em que essa carga poderia ser superada de maneira incontrolável. Com os devidos testes, medições de carga e análise dos tecidos musculares, é possível atestar para a NBA que um jogador treinou demais, está aumentando sua carga, e que portanto não seria seguro colocá-lo em quadra. Da mesma fora, é possível tirar um jogador de jogos em dias consecutivos porque isso estaria ultrapassando a carga estimada, nos treinos, que um jogador seria capaz de carregar. Com médicos, cientistas e altíssima tecnologia dando respaldo para isso, a NBA não tem outra escolha a não ser aceitar a justificativa.

O curioso dessa ideia de “gestão de carga” é que ela caminha na contramão daquilo que o senso comum imaginava no mundo do esporte. Por muito tempo times preferiam descansar um jogador nos treinos – com muitas comissões técnicas sendo famosas por poupar seus atletas de treinos físicos durante os rigores da temporada da NBA – e colocá-los para jogar nas partidas oficiais, que é onde o resultado vale, imaginando que o descanso permitiria que eles se “superassem”, fazendo mais do que jamais fizeram. Pois bem, agora a ideia é oposta: o “fazer mais do que antes” deve ser controladíssimo, extremamente gradual, e portanto preferivelmente num treino ao invés de num jogo. Agora, cientistas atestam que é melhor treinar do que jogar, o que permitiria que os atletas tivessem suas melhores partidas nos momentos mais importantes da temporada, ou seja, no seu final.

A “gestão de carga” chegou ao Toronto Raptors como uma espécie de AFAGO a Kawhi Leonard, uma maneira de que pudesse retornar à forma aos pouquinhos depois da lesão – e da quebra de confiança – que amaldiçoou sua passagem pelo Spurs. Mas o resultado acabou saindo muito, muito melhor do que o esperado: Kawhi jogou apenas 60 partidas na temporada regular, muitas delas com minutos limitados e pouco protagonismo, para então ser o melhor jogador disparado dos Playoffs, claramente numa forma física incomparável com os demais atletas. O comissário da NBA, Adam Silver – aquele que estava desesperado com a ideia de que o Warriors descansasse seus jogadores idolatrados, amados, salve-salve – foi o primeiro a dizer, com todas as letras, que o “load management” era responsável por Kawhi Leonard estar tendo atuações tão memoráveis na pós-temporada e que a NBA teria que considerar isso para o futuro. A sensação é sempre de que Adam Silver está num flerte romântico-porém-tímido com uma temporada mais curta da NBA, mas os impactos da atuação de Kawhi Leonard para o presente da NBA envolvem outros times copiando a prática. O que não faltam são relatos de times usando a expressão para anunciar, antes mesmo da temporada começar, que farão uma criteriosa gestão de minutos dos seus principais atletas. Basta abrir qualquer site especializado em “Fantasy”, esses jogos em que os torcedores escolhem os atletas para suas partidas (nosso jeito adulto, maduro e inteligente de BRINCAR DE BONEQUINHO), e você verá uma infinidade de ressalvas alertando que diversas estrelas não são mais confiáveis no joguinho por estarem oficialmente em “load management” e, portanto, passíveis de perder partidas por descanso a qualquer momento.

No entanto, a “gestão de carga” e os jogadores deixando de participar de algumas partidas não resolve uma das novas preocupações da NBA, também relacionada com desempenho e saúde dos atletas: as horas de sonos. Pelo contrário, a prática do “load managemente” pode até piorar a situação, por dar mais ênfase (e mais tempo) aos treinos em agendas que já são apertadas e reduzem cada vez mais o tempo de sono dos jogadores.

Pelo jeito as reclamações com falta de sono e as dificuldades que a cercam – ansiedade, estresse, depressão – já são corriqueiras nos vestiários da NBA. Tobias Harris, por exemplo, é FAMOSO nos times em que passou por ser um dos jogadores mais vocalmente preocupados com a quantidade e a qualidade das suas horas de sono. Mas foi necessário um estudo recente, realizado pelo Orlando Magic, para descobrir quais são os impactos CLÍNICOS da privação de sono em atletas profissionais: dados apontaram que a queda de testosterona é tão significativa que jogadores com 20 anos tem a mesma quantidade do hormônio que indivíduos de 50 anos, algo que pode ser um dos maiores responsáveis pelas lesões que vemos hoje. Segundo um General Manager, a NBA tem oficialmente “uma população de vampiros”.

Frente a esses estudos, jogadores finalmente sentiram-se em condições de expressar suas dificuldades: Tobias Harris afirmou que a falta de sono na NBA será um dia tão preocupante quanto as concussões são no futebol americano; Andre Iguodala confessou sofrer com insônia por 10 anos; LeBron James afirmou ter um procedimento específico para conseguir o máximo de sono possível; Vince Carter apontou as horas de sono como o que mais impacta sua performance e sua carreira. Esses e outros depoimentos podem ser lidos em inglês aqui numa matéria incrível da ESPN que inclui até mesmo os esforços de Tobias Harris para diminuir os batimentos cardíacos e aumentar a quantidade de melatonina no corpo assim que entre num vestiário após um jogo, para aumentar as suas chances de dormir assim que chegar no avião – afinal de contas, a maior parte das equipes joga à noite, corre para o aeroporto, viaja durante a madrugada com sono de péssima qualidade, chega aos hotéis pela manhã e precisa jogar ou treinar em pouco tempo. Segundo os depoimentos a média da NBA é de 5 horas dormidas por noite, número que cai ainda mais entre as estrelas de seus times, dada a pressão de suas posições. Isso porque, além dos horários apertados, da correria e dos voos, ainda há o fato de que é difícil dormir depois da quantidade surreal de estresse envolvido numa partida de esporte profissional. Em adição a isso, vários jogadores lidam com uma série de distúrbios relacionados à pressão da profissão, que variam de insônia, ansiedade e crises de pânico até situações mais amenas e corriqueiras, como a tentativa de “escapar” para uma vida normal em jogos eletrônicos que comem ainda mais horas de sono. Se a ausência de sono passou a ser chamada de “problema secreto que todos conhecem”, os bastidores da NBA apontam jogos de videogame como “Fortnite” como outro problema com o qual ninguém sabe lidar.

O problema é que a busca por eficiência numa temporada de 82 jogos parece muitas vezes buscar coisas inteiramente contraditórias: para render mais um jogador deve treinar por mais tempo, mas isso reduz os jogos que ele pode participar na temporada regular; é preciso maximizar os lucros e portanto manter os 82 jogos, mas também descansar atletas, o que reduz lucros; é preciso que os atletas sejam mentalmente saudáveis, tenham noites bem dormidas e não sejam vítimas de distúrbios psicológicos, mas também manter uma rotina que em última instância é destrutiva para corpos e mentes. Aos poucos o discurso caminha na direção de proteger os atletas – preparem-se para uma temporada cheia de “load managements” e discussões sobre milhagem, distância e horas dormidas dos atletas para justificar más performances – mas enquanto tivermos 82 partidas por time numa temporada, a realidade dura da rotina sempre falará mais alto, com exaustão, ansiedade e, claro, lesões. Quantos jogadores perderemos com lesões ao longo do ano? Quantos poderiam estar jogando, e em nível mais elevado, num calendário mais humano de jogos?

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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