Stephen Curry foi eleito pela segunda temporada seguida MVP da NBA, o subjetivo prêmio de “jogador mais valioso”. Repetir o prêmio já era perfeitamente esperado, até mesmo totalmente previsÃvel – chegou-se a cogitar até que, após ganhar o prêmio de MVP na temporada passada, Curry poderia concorrer ao “MIP”, prêmio de jogador que mais evoluiu na temporada, tendo em vista sua melhora estatÃstica e o impacto ainda maior que conseguiu na atual campanha. Se conseguiu se sair ainda melhor do que na temporada em que foi MVP pela primeira vez, o repeteco era carta marcada. O que surpreendeu, portanto, não foi o prêmio mas sim o fato de que Curry foi escolhido MVP de forma unânime. Os 130 jornalistas que participam da votação escolheram, pela primeira vez na história, um único jogador. Shaquille O’Neal e LeBron James já haviam ficado a um mÃsero voto de conquistar a marca, mas apenas Curry colocará no currÃculo a unanimidade dos votos para o prêmio.
O que isso significa sobre as atuações e a dominância em quadra de Stephen Curry, Shaquille O’Neal e LeBron James, e de todos as outras grandes lendas do basquete que não conseguiram votações unânimes, ou que sequer ganharam o prêmio? Se levarmos em conta que cada jornalista vota com critérios exclusivamente pessoais e que “mais valioso” pode querer dizer qualquer coisa do planeta, então nada. Se o próprio prêmio de MVP já quer dizer pouca coisa sobre o talento dentro de quadra de qualquer jogador, a unanimidade da votação para o prêmio, então, não consegue significar muito mais. Mas ela certamente tem um significado para FORA das quadras. Um impacto cultural que parece não apenas escrever uma nova história no basquete, mas também reescrever as histórias antigas. Em tão pouco tempo, o passado parece já estar sendo reconstruÃdo através da janela que é Stephen Curry.A revista “The New Yorker” publicou uma matéria sensacional sobre como a percepção das novas gerações a respeito de Michael Jordan foi alterada recentemente. Muito tempo afastado das quadras, roupas cafonas, charutos fedidos, histórias terrÃveis sobre sua competitividade excessiva, a transformação de seu nome numa marca, seu fracasso com o Hornets e o insistente uso na internet de sua cara chorando como meme tornaram Jordan uma figura pública inteiramente desassociada de seus feitos dentro de quadra. A matéria afirma que Michael Jordan se tornou uma imagem decrépita do exagero na competição esportiva, da transformação de si mesmo em mercadoria, e que os jovens não se reconhecem mais naquilo que ele representa. Identificam-se mais com a alegria e a leveza de Stephen Curry e seu dominante Golden State Warriors.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Chorou, parou”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/05/Crying-Jordan.jpg[/image]
Ainda vejo constantemente Jordan ser defendido como “o maior de todos os tempos”, mas de uma maneira cada vez mais vazia de significado: ou como uma resposta automática de uma geração passada, que soa fantasiosa e distanciada para as gerações atuais da mesma maneira que ocorre com o nosso Pelé; ou como recusa ao novo e à s mudanças das últimas décadas, um medo irracional de que nossas memórias antigas sejam diminuÃdas e que as novidades do mundo retirem de nós todo o propósito e significado que construÃmos artificialmente durante nossas vidas. O mesmo processo que tornou Jordan inalcançável para recusar LeBron James, protegendo as memórias infantis de toda uma legião de fãs, já aparece em versão moderna quando idolatram LeBron James para recusar Stephen Curry numa geração um pouco mais nova. Dessa maneira, tanto Jordan quanto LeBron tornam-se “esvaziados”, meros casulos de memórias irreais, respostas prontas de quem responde discussões como se citasse uma enciclopédia, usando os mitos como escudos contra a ignorância.
As novas gerações têm certa relutância contra esse engessamento dos mitos. Buscam, com toda razão, novos rostos que transformem não apenas o esporte em algo vivo, mas também que representem os novos tempos, as novas condições sociais, os novos modos de se portar no mundo. Nesse sentido, é muito difÃcil encontrar – não apenas nos esportes, mas em qualquer lugar – indivÃduos que representem todo um momento histórico, toda uma mudança cultural que distancia o imaginário dos pais do imaginário dos filhos. É como os Beatles, que sabiam canalizar as constantes transformações pelas quais o mundo passava nos anos 60 e, aos dar voz a esses eventos, causavam ao mesmo tempo as próprias transformações culturais. Esse fenômeno em que a transformação se reconhece num indivÃduo e é ao mesmo tempo causada por ele cria os grandes rostos de uma geração, as imagens que apontamos para explicar o que raios estava acontecendo naquele perÃodo.
Acredito que Michael Jordan paga o preço de uma transformação cultural que o atingiu tanto dentro quanto fora das quadras. Socialmente a vontade irrestrita de vencer – de tentar destruir o adversário, de abrir mão de tudo o mais pela vitória – passou a ser cada vez pior recebida. O excesso de competitividade tornou-se um distúrbio, um obstáculo social. Criamos as novas gerações para competirem de maneira saudável, com o mote do “fair play” e o respeito ao adversário. Nas quadras, a revolução estatÃstica começou a mostrar que o jogo individual, no mano-a-mano, era menos eficiente. As mudanças nas regras da NBA, especialmente a legalização da defesa por zona, passaram a dificultar o jogo individualista. Cidadãos e jogadores passaram a ser criticados por serem “egocêntricos”. O San Antonio Spurs dominou toda uma década baseado num basquete coletivo, papeis delimitados e pouco foco em suas estrelas. Jogadores que brilhavam com arremessos forçados e jogadas individuais começaram a ser arrancados da NBA, como Allen Iverson e Stephon Marbury – ambos, aliás, convidados para jogar na China, que vive o fenômeno contrário. LeBron James, duramente cobrado para “decidir sozinho” como Jordan fez tantas vezes antes, velejou pelas águas dos novos tempos indo ser campeão com seus amigos em Miami, reduzindo seus números e sua importância para inserir-se numa coletividade. Kobe Bryant foi alvo de ódio e crÃticas, seu estilo de jogo considerado “obsoleto”, “prejudicial à equipe”, sua postura dentro e fora de quadra considerada “desfuncional”.
[image style=”fullwidth” name=”on” link=”” target=”off” caption=”Aposentados”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/05/Kobe.jpg[/image]
As mudanças em nossa percepção e consequentemente no basquete acabaram por causar times como o Golden State Warriors e jogadores como Stephen Curry. O fato de que tantos times, num perÃodo de apenas dois anos, fizeram esforços hercúleos para alterar seus estilos de jogo, suas comissões técnicas, suas equipes de gerência para tentar emular o que o Warriors faz nas quadras não é uma indicação apenas do número de vitórias conquistadas pelos atuais campeões, mas também da capacidade do Warriors de ter acompanhado as mudanças ao seu redor e ter abraçado a nova realidade das quadras. Stephen Curry surge como esse personagem histórico porque apesar de fazer tudo aquilo que se esperava de um basquete mais “clássico”, treinou por livre e espontânea vontade uma série de habilidades que se encaixam apenas no basquete atual e que, por um curto momento, não interessavam a time nenhum. De certa maneira, foi um visionário. Quando a NBA percebeu que os tempos haviam mudado, Curry calhou de ser o homem ideal para os novos esquemas táticos, e se seus arremessos de três foram causados por uma percepção individual dos tempos que se aproximavam, esses arremessos passarem a cair com uma frequência inimaginável consolidaram esses tempos tanto nas quadras quanto no imaginário popular. Por uma estranha sincronia, Stephen Curry explicitou para todos nós que a NBA havia mudado, e quanto mais ele nos evidencia isso dentro de quadra, mais a NBA muda em resposta, com jogadores e times querendo acompanhar esse processo. Curry tornou-se a cara de uma geração.
As recusas ao Golden State Warriors de Stephen Curry – “arremessos de três não são basquete de verdade”, “está estragando o jogo”, “é só uma fase” – são, assim como as recusas ao Chicago Bulls de 1996 – “basquete antiquado”, “individualista”, “limitado taticamente” – simples tentativas de olhar para um tempo usando outro momento histórico como parâmetro. No fundo, é isso que as grandes figuras históricas fazem: elas reescrevem a realidade de maneira tão contundente que só conseguimos olhar para o passado através delas, uma janela que ressignifica o passado. Stephen Curry faz isso por mero encontro fortuito do acaso: ele é jovem e tem um certo modo de agir que representa sua geração; está num time coletivo, que reinventou algumas movimentações ofensivas e defensivas; ganhou um tÃtulo de campeão; é focado, comprometido, mas mantém um certo grau de humor e leveza; é confiante o bastante para instigar desejos de grandeza e anular falsas-modéstias, mas tem uma percepção do coletivo que impede a soberba. Nenhuma dessas caracterÃsticas ou desses eventos é necessariamente bom ou ruim, mas é certamente significativo para os fãs do basquete, para o novo público que adentra o esporte, para a geração internet das redes sociais que busca um equilÃbrio entre o “fair play” que permite ser aceito pelo grupo, o ego que permite ser desejável, e a capacidade de não levar nada muito a sério:
Aconteceu de ser o Curry. Poderia ter sido Dwight Howard, com sua vontade de dominar jogos, seu humor bonachão e um time forrado de arremessadores, mas seu Orlando Magic não foi campeão, seu talento começou a ser questionado, a conjuntura certa nunca apareceu, pivôs passaram a ser preteridos na “nova NBA” e agora nos surpreenderemos se ele tiver outro grande contrato. Poderia ter sido LeBron James – e, culturalmente, seu impacto é grande o bastante para que alguns possam defender a ideia de que ele teve impacto similar – mas acredito que ele chegou cedo demais, quando a NBA ainda se recuperava da ausência de Jordan, causando comparações demais, seu time não foi campeão até que ele mudasse de cidade, e o modo como sua imagem foi administrada foi de um tempo passado. Tentaram fazer com LeBron a mesma coisa que Jordan conseguiu com sua linha “Air Jordan”, e o LeBron como marca desgastou-se, exposto no ridÃculo programa de televisão em que escolheu sua franquia futura, tudo simples decisões de marketing completamente alheias à sua vontade individual. Stephen Curry foi melhor gerido, melhor cercado de outros talentos, numa época melhor para seu conjunto de habilidades, num corpo mais acessÃvel para o grande público, com maneirismos e vestimentas mais representativas dos fãs mais jovens, e com um estilo de jogo mais afeito à geração YouTube. É o tipo de eclipse solar impossÃvel de prever, planejar ou controlar. Simplesmente aconteceu.
Quando os recordes começam a cair – as bolas de três pontos numa temporada, o maior número de vitórias numa campanha – fica evidente para todo mundo, inclusive para o público mais leigo, que alguma coisa está mudando. Que houve uma ruptura, que as coisas não são mais como eram antes. E no desespero de tentar entender o que está acontecendo, o rosto de Stephen Curry é a resposta mais óbvia, mais simples e mais viva desse momento. Isso não significa necessariamente que ele seja o melhor jogador da atualidade, ou que teria o mesmo desempenho se jogasse duas décadas antes, e nem que seria arrasado pelo tal Bulls de 1996. Isso significa apenas que a relevância cultural de Stephen Curry é tal que nenhum jornalista, em sã consciência, seria capaz de não votar nele para o prêmio de MVP. É bem possÃvel que a maioria desses jornalistas não tenha visto mais do que meia dúzia de jogos de Curry nessa temporada, especialmente aqueles dedicados a cobrir apenas um time e que por isso viram o Warriors apenas um par de vezes na atual campanha. Mas isso não é necessariamente sobre o que acontece em quadra, mas sobre a cara de um novo tempo. Sempre haverão detratores, aqueles que gastarão uma energia descomunal para atribuir a Stephen Curry um sem número de males ou limitações, mas isso também faz parte da constatação de que Stephen Curry é o personagem que explica a NBA atual. Mais do que isso: ele é o personagem unânime, dentro e fora das quadras, para o bem ou para o mal, de forma inescapável.