Quando Kevin Durant pisou na quadra do Oklahoma City Thunder para ser apresentado pela primeira vez com o uniforme de outra franquia, as vaias preencheram o lugar. Se foi possível ouvir alguns poucos aplausos e gritos de apoio a princípio, quando o jogo começou as vaias certamente já haviam atropelado qualquer outro tipo de manifestação. Toda vez que tocava na bola, Durant era bombardeado pelas cornetas desafinadas da hostilidade. Em meio aos ruídos, o técnico Steve Kerr foi questionado sobre a situação. Sua resposta foi simples e categórica: “É o esporte, apoio totalmente que vaiem o jogador, mas celebrem o homem”. Existe de fato uma distinção entre o jogador e o homem? Será mesmo possível esquecer dos efeitos do jogo assim que uma partida esportiva termina?
Num Filtro anterior contamos sobre a relação entre Kevin Durant e uma organização dedicada à educação de crianças sem moradia em Oklahoma que ele continua apoiando financeiramente mesmo depois de ter deixado a cidade, com histórias sobre como ele garantiu pessoalmente que cada criança tivesse uma meia para poder usar os tênis que ele estava doando. Além disso, não faltaram notícias sobre a doação de 1 milhão de dólares que Durant fez para ajudar as vítimas de um tornado que atingiu Oklahoma e deixou uma série de feridos e desabrigados. Seus laços com a cidade e com a comunidade sempre foram muito fortes e Durant era querido dentro e fora das quadras. É esse homem que Steve Kerr diz merecer “celebração” por tudo que fez pela equipe e pelos moradores de Oklahoma City durante oito temporadas.
Ao entrar em quadra, em teoria, Kevin Durant não é um bom cidadão, não é um bom cristão, não é um bom filho, ele é apenas um jogador de basquete. Essa é, afinal, a magia própria ao esporte: delimitamos um conjunto complexo de regras que, ao serem seguidas, trancam para fora todas as demais regras do Universo. O que é permitido, correto, ético ou adequado se transforma, passando a seguir o código estabelecido e aceito por todos os indivíduos participantes. Só joga quem aceita as regras do jogo, quem é capaz de colocar as demais possibilidades de regra para fora do mundo da brincadeira (tire seus pés da minha bola de basquete, por favor!). É por isso que rivais mortais na vida real ainda podem jogar uns com os outros; é por isso que guerras inteiras param para que as pessoas se enfrentem em um conjunto avulso de regras, menos bélicas e usualmente menos letais; é por isso que tribos inimigas deixavam suas querelas de lado para passar dias inteiros jogando lacrosse. Na tentativa explícita de criar um ambiente em que todos são iguais, já que seguem exatamente as mesmas leis através do rigor da arbitragem, o esporte cria um ambiente em que a competição é possível, em que não há privilégios e, portanto, podemos falar de mérito. Enchemos a boca para dizer que aquele que venceu mereceu vencer, afinal as regras são sempre as mesmas e portanto sagra-se vencedor aquele que melhor lida com elas. O esporte cria um mundo à parte em que não há lugar para preconceito, racismo, guerra: as regras uniformizam os jogadores e a identidade e a individualidade afloram por entre as frestas, na maneira com que cada um lida com as exigências do esporte.
No entanto, jogos de basquete não são disputador no vácuo, numa bolha espaço-temporal flutuando no Universo. Partidas de basquete são disputadas entre nós, em nossa sociedade, em nossas cidades, em meio ao conflito, ao confronto, às paixões e às desigualdades. Apesar de possuírem regras apartadas do mundo-da-vida, acreditar que o esporte não interaja com a vida cotidiana é esquecer justamente seu potencial para o sublime e seu potencial para o horror. O jogo “vaza” para a nossa realidade constantemente, tendo impacto direto no modo com que vivemos nossas vidas. Basta lembrar de atletas americanos e soviéticos, no meio da Guerra Fria, percebendo através do esporte que do outro lado estavam outros seres humanos, não monstros irrecuperáveis. Seguir o mesmo conjunto de regras – e mais do que isso, dedicar SUA VIDA a seguir esse mesmo conjunto de regras – cria um vínculo entre os indivíduos. Esse vínculo se dá pelo compartilhamento de valores, tanto os do jogo quanto os valores que tornam o jogo possível (seguir as regras, deixar as demais regras pra fora da disputa, etc), e pela dificuldade de esquecer ao término da partida daquela sensação incrível de que, por alguns instantes, SOMOS TODOS IGUAIS. Aí está dada a capacidade do esporte de, ao fim do jogo, vazar essa sensação de comunidade que nos faz questionar as diferenças, os conflitos e as fronteiras.
A pegadinha, no entanto, está no fato de que para o jogo funcionar as regras precisam ser tratadas com a mais pura e absoluta seriedade. Para quem joga, o jogo é sempre A COISA MAIS SÉRIA DO MUNDO, e é preciso um exercício de afastamento (como de quem viaja para o espaço e percebe que os humanos “são só formiguinhas”) para perceber que o jogo só existe porque a gente quis assim e que portanto ele é de mentirinha. Ao jogar com seriedade como se não houvesse amanhã – porque no jogo realmente NÃO HÁ AMANHÃ, não há nada que não seja o jogo – criamos sensações tão intensas, tão marcantes, tão significativas que não dá pra se livrar delas assim que o jogo termina. Por mais que o jogo tente constituir um mundo à parte, ele vaza constantemente para o mundo da vida. A sensação de vencer um jogo é maravilhosa, é a sensação de vencer um desafio, e é uma sensação única porque na vida real dificilmente temos objetivos claros e desafios justos e transponíveis. As amizades no jogo são incondicionais, porque estão obedecendo as regras do jogo e não o quanto as pessoas gostam ou não de você, suas afinidades e os interesses em comum. No mundo do jogo, os prazeres, as amizades e as conquistas são mais intensas. É natural que conhecendo esses extremos queiramos repeti-los na vida real: tentamos criar leis que garantam igualdade, tentamos bolar metas e objetivos pras nossas vidas, enfiamos regras em todos os lugares para facilitar nossa gama de escolhas, tentamos criar códigos de ética e moral para unir os indivíduos.
É frustrante quando não conseguimos alcançar os objetivos, tão claros e óbvios, delimitados pelo jogo e essa frustração atinge também nossa vida normal. É sofrido quando antes conseguíamos alcançar esses objetivos, justificativa última dos jogos, e agora não conseguimos mais. Kevin Durant pode até escolher ir para outro time como homem, como cidadão, como cristão e filho, como trabalhador que está pensando em seu bem estar, na sua diversão, na sua saúde mental, no leite das crianças, no seu legado e todas essas coisas que dizem respeito apenas a ele como indivíduo. Ninguém tem o direito de dizer a Durant, o homem, o ser humano, o que raios ele deveria fazer com as decisões que regem a sua vida. Mas sua decisão VAZA PARA DENTRO DO ESPORTE, porque ela atinge diretamente um conjunto de pessoas que estão jogando tão seriamente, que estão tão envolvidas com as sensações, os prazeres e as dores do esporte, que é impossível que não sintam as consequências.
Qualquer um que se afaste minimamente do jogo percebe que Durant ficar ou partir é indiferente, ele é apenas mais uma pessoa fingindo que são sérias as regras previamente inventadas. Mas qualquer um que experimente através do jogo as sensações de COMPANHEIRISMO, GRANDEZA e SUCESSO não pode evitar buscá-las de novo, em todos os lugares, e ressentir-se quando algum elemento impede que elas sejam reencontradas. A ausência de Durant é aquilo que separa a torcida e os jogadores do Oklahoma City Thunder de sentirem as coisas que todo mundo quer sentir através do esporte e, portanto, é motivo de raiva e frustração. Pior: a ausência de Durant explicita que todas essas sensações são apenas PARTE DO JOGO, que nunca foram reais pra começo de conversa, o que gera uma percepção forte de traição.
Em “O jogo da carona”, conto de Milan Kundera presente na coletânea “Risíveis amores”, um casal de namorados em viagem de carro resolve, ingenuamente, experimentar um pequeno jogo: a garota finge ser uma desconhecida pedindo carona e o garoto finge ser um desconhecido que lhe oferece carona. Passam a agir, portanto, como se não se conhecessem, interpretando personagens diferentes de suas personalidades reais. A brincadeira cresce rapidamente em intensidade, despertando sensações que eles nunca haviam experimentado. Por fim, chega-se à questão fundamental da narrativa: se a pessoa foi capaz de fazer aquilo no jogo, como posso garantir que ela não será capaz de fazer aquilo também na vida real? Pior: como posso garantir que as coisas que ela faz e diz na vida real não são, também, parte de um jogo? Sentindo-se traído pelas coisas que ocorrem dentro do jogo do casal, o garoto já não consegue lidar com o relacionamento que os dois possuem para fora dele. É o jogo vazando inteiramente na vida real.
Podemos imaginar quantas vezes Kevin Durant e Russell Westbrook deixaram de lado suas diferenças e juraram defender e apoiar um ao outro dentro das quadras. Quantas vezes prometeram companheirismo uns aos outros, nos bons e nos piores momentos, nas vitórias e nas derrotas. Quando Durant foi embora, nada disso deixou de ser real – o que foi dito e feito era condizente com as regras internas do jogo que disputavam naquele momento – mas a SENSAÇÃO é de vínculo quebrado, de confiança despedaçada, de que aquilo que foi dito no calor do jogo não era de verdade. É por isso que que sempre que os intervalos do jogo permitem, a relação entre os dois é cercada de animosidade, com um Westbrook agressivo e machucado de um lado e um Durant verdadeiramente confuso, de braços abertos em questionamento, do outro.
É difícil encarar que as coisas ditas no calor do jogo são em geral AS ÚNICAS VERDADES POSSÍVEIS EM NOSSAS VIDAS, porque são ditas dentro de critérios e regras e objetivos únicos e inquebráveis, e que o que acontece aqui fora é muitas vezes mera sombra da intensidade e da verdade que vemos no jogo. Fica impossível não levar o que acontece no jogo terrivelmente a sério, de modo que aquilo que Durant faz para machucar O JOGO dói mais e é mais intenso para jogadores e torcedores do que eventuais desvios que ele tivesse em sua vida civil fora das quadras. Não dá para separar o homem e o jogador no momento em que diversos indivíduos sentem-se lesados em seu prazer LÚDICO por conta das escolhas de Durant. Vaiaram o homem que estragou-lhes o jogo.
As vaias que ele recebeu foram belíssimas: um atestado de como ele impacta jogos e vidas, de como o jogo nos apresenta paixões que sem ele nunca conheceríamos. Celebrar o homem é, portanto, também vaiá-lo: permitir-se ser afetado por Durant, reconhecer o enorme peso do jogo em nossas vidas, externar nossas paixões com a corneta medonha de nossas gargantas. E depois voltar para casa como se nada tivesse acontecido, com uma estranha certeza de que, no ódio e na alegria, somos todos membros desse mesmo jogo e, ao celebrá-lo, celebramos estar vivos.