Mais um Clube do Livro no ar para assinantes, desta vez com nossa tradução de uma uma longa reportagem da ESPN publicada em 2019 sobre as fraudes cometidas por Tim Donaghy, ex-árbitro da NBA: trata-se de “Como o ex-árbitro Tim Donaghy conspirou para fraudar jogos da NBA”, de Scott Eden. O caso criou muita polêmica e a reportagem – fruto de uma investigação paralela de 2 anos, e nunca antes disponível em português – não ficou muito atrás, com a NBA questionando alguns dos pontos abordados. A reportagem fala sobre o mercado de apostas nos Estados Unidos e no mundo, a possibilidade de se fraudar jogos através da arbitragem e até como é a vida (e o salário) de um árbitro da NBA. São tantos assuntos (e a matéria é tão longa) que dividimos o texto em duas partes. A primeira, que você lê agora, abarca os atos 1, 2 e 3. A próxima parte, que publicaremos em breve, abarcará os atos 4, 5 e 6.
Não deixe de ler a reportagem antes de acompanhar nosso futuro podcast especial sobre ela, onde conversaremos sobre as ressalvas da NBA à publicação, todas as polêmicas do caso Donaghy e explicaremos vários dos termos específicos do mundo das apostas que surgem ao longo do texto.
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Como o ex-árbitro Tim Donaghy conspirou para fraudar jogos da NBA
por Scott Eden (com tradução de Danilo Silvestre)
Nota do editor original: Essa investigação, que durou 2 anos e revelou como o famigerado árbitro Tim Donaghy conspirou para fraudar jogos da NBA, com quem ele o fez, e os milhões de dólares que vieram dessa conspiração, foi originalmente publicada em 19 de fevereiro de 2019.
Ato 1: Uma meia verdade conveniente
James “Jimmy” “Bá-Bá” “A Ovelha” Battista estava estressado, acima do peso, viciado em analgésicos, com 41 anos, e endividado com uns apostadores obscuros em quantias que ele havia perdido a conta, quando sentou para assistir a um jogo da NBA que ele acreditava estar arranjado. Mais ou menos um mês antes, não muito antes do Natal, ele havia feito algo audacioso: sentou e fez um acordo com um árbitro da NBA. Agora ele temia que o esquema havia ficado óbvio demais.
“Você quer ganhar uma grana?”, Battista disse ao árbitro. “Então você tem que garantir a margem de pontos combinada”. O suborno era de apenas 2 mil por jogo – uma barganha ofensiva. Se o time escolhido ganhasse pela margem combinada, o árbitro ganhava seus dois mil. Se o time perdesse, o árbitro não ganhava nada; Battista tinha que engolir a derrota. “Sem dinheiro de entrada”, como eles dizem. Mas esse árbitro não perdia muito. Os times escolhidos estavam ganhando 88% das vezes, algo totalmente inédito em apostas esportivas por um período consistente de tempo. Estavam entrando na sexta semana do esquema – algo que podemos chamar de um período consistente.
Battista conhecia o árbitro, Timmy Donaghy, há 25 anos. Eles frequentaram o mesmo colégio paroquial nos bairros católicos de operários de Delaware County, nos arredores da Philadelphia – ou Delco, como é chamado às vezes – onde os bares de esportes são abundantes, onde uma familiaridade com todas as formas de aposta reina, onde as pessoas tem agentes de apostas assim como tem dentistas.
Battista era uma criatura daquele mundo. Ele era o que se conhece como “mover”. Para sermos específicos, “movers” não são nem apostadores nem agentes de apostas. Eles são uma espécie de corretor que oferece serviços para apostadores esportivos, fazendo as apostas em nome de seus clientes com agentes de todos os tipos ao redor do mundo, legalizados ou não. Battista estava bem posicionado o suficiente nesse mundo para, sem o conhecimento de Donaghy mas baseado nas escolhas de Donaghy, criar uma espécie de fundo de risco, ainda que meio vago e desordenado. Várias pessoas do submundo das apostas esportivas estavam, na verdade, bancando Battista – criando um fundo monetário que agora ele usava para apostar em jogos apitados por esse árbitro específico da NBA. Um membro do grupo chamava a coisa toda de “o ingresso” e “o escritório”.
“Acho que o escritório nunca sentou junto numa mesma mesa”, ele diz. “Mas todos comiam uma fatia da pizza.” O maior problema, então, era manter a coisa escondida.
Nas suas funções, Battista às vezes tinha um ajudante, outro colega de colegial, Tommy Martino, que servia como um contato no esquema com Donaghy. Amigo próximo do árbitro desde que eram crianças, Martino tinha um emprego durante o dia como analista de TI na empresa JPMorgan. Usando telefones descartáveis, Donaghy ligava para Martino e avisava da escolha que ele faria no jogo em que iria apitar. Martino repassava então a escolha para Battista. Battista e Donaghy nunca deviam falar um com o outro. Battista passava então o dia inteiro apostando de maneira pesada na escolha de Donaghy. No total, de acordo com uma pessoa com conhecimento da operação, ele tinha planos de apostar por volta de 1 milhão de dólares de seus investidores em cada jogo de Donaghy.
“Você quer ser pago, então tem que garantir a margem de pontos combinada”, Battista disse a Donaghy. Mas Battista nunca usou a palavra “fraude”. Ou “influenciar” ou “manipular” ou em momento algum conversou sobre os mecanismos para fraudar os jogos.
“Não tinha qualquer necessidade”, Battista disse aos seus amigos. A coisa toda foi meramente insinuada, algo como uma sugestão indireta. “O único mecanismo, ele tinha em suas mãos. Ele tem o maldito apito.”
Essa continua sendo uma das questões mais incômodas do esporte profissional americano: ainda existe fraude nos jogos? Em 100 anos desde 1919, quando apostadores chantagearam o Chicago White Sox, apenas o escândalo de Tim Donaghy nos ofereceu uma chance de resposta – mas também uma recusa à resposta.
Por 11 anos, a versão oficial tem sido que Donaghy era um árbitro trapaceiro e solitário, viciado em apostas, que apostou algumas vezes em jogos em que ele mesmo apitava – e nada mais. A NBA conduziu uma investigação própria e concluiu que Donaghy, na verdade, não fraudou jogos. Mas para muitos dentro e fora de liga, restam suspeitas de que a história completa não foi contada, que aquilo que realmente aconteceu foi omitido.
Agora isso interessa ainda mais. No dia 14 de março do ano passado (2018), a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou uma lei federal de 1992 que proibia os estados de legalizarem apostas esportivas dentro das suas próprias fronteiras. Muitos acreditam que essa decisão vai levar a uma anulação da lei que proíbe apostas esportivas entre estados diferentes, o que, por sua vez, aumentaria de maneira massiva o dinheiro apostado em esportes americanos. Ao mesmo tempo, a NBA – que antigamente era contra apostas – agora abraçou abertamente as apostas esportivas, mais do que qualquer outro esporte profissional nos Estados Unidos. Em 2014, o comissário Adam Silver escreveu para a página de opiniões do The New York Times defendendo a legalização. Em julho de 2018, ele anunciou um acordo de vários anos com a MGM Resorts para que ela seja “a parceira oficial de apostas da NBA”.
Quem propõe a legalização defende há muito tempo que regulações levam a transparência, o que ajuda a erradicar esquemas de fraude nos jogos. Mas existem várias evidências para sugerir o contrário. O economista da Universidade de Paris, Wladimir Andreff, escreveu: “Todas as análises econômicas concluem que quanto mais dinheiro você tem girando no esporte, maior é a corrupção”.
É por isso que a decisão de maio da Suprema Corte exige uma revisão do caso Donaghy. Se for mostrado que Donaghy de fato fraudou os jogos em que apitou, isso revelará uma verdade inconveniente, uma que quase todo mundo – ligas, times, fãs, apostadores – preferiria ignorar: quão fácil e rentável é fraudar um esporte americano.
No começo de 2017, inspirado pelo aniversário de 10 anos do escândalo, a ESPN resolveu refazer a investigação. A pesquisa gerou entrevistas com mais de 100 pessoas, incluindo árbitros aposentados e em atividade, funcionários da NBA aposentados e em atividade, apostadores, agentes de aposta, advogados, autoridades legais e amigos e parentes de Donaghy. (Ele próprio recusou recorrentes pedidos por uma entrevista). Requisições através do Ato de Liberdade de Informação foram feitas. Milhares de páginas de documentos levados à corte e registros de investigação foram analisados. Centenas de horas foram gastas assistindo a todas as partidas da NBA que Donaghy apitou na temporada 2006-07. Toda falta marcada foi cadastrada, os dados foram analisados, assim como as oscilações e históricos do mercado de apostas para cada jogo que Donaghy apitou naquela temporada.
Dois anos de investigação depois, a história finalmente pode ser contada: esse é o relato definitivo de como Tim Donaghy conspirou para forjar jogos da NBA – e como, ao fazer isso, ele involuntariamente enriqueceu uma vasta gama de apostadores em quantias que chegam provavelmente às centenas de milhões de dólares.
Ato 2: Um plano simples
Mendy Rudolph, Yogi Strom, Jake O’Donnell, Billy Oakes, Ed. T. Rush, Joey Crawford, Steve Javie, Tom Washington, Mark Wunderlich, Duke Callahan, Ed Malloy, Mark Lindsay, Aaron Smith, Tim Donaghy – todos árbitros ativos, aposentados, mortos ou (no caso do último) desacreditados, todos nascidos e/ou criados nos arredores da Philadelphia. Se existe um berço dos árbitros de basquete, é lá.
Oakes era o tio de Tim Donaghy. Gerry Donaghy, seu pai, por muito tempo vestiu as listras nos níveis mais altos do basquete masculino da NCAA. Malloy, Crawford e Callahan todos foram alunos do Ensino Médio Cardinal O’Hara de Delaware County, mesma escola de Donaghy – um berço dentro de um berço. “Eu nasci para esse trabalho”, Donaghy escreveu em seu livro de memórias, “Falta Pessoal”, mas a sentença tem duplo sentido. Abençoado com as conexões certas, e depois de quatro anos apitando na CBA, uma liga menor da NBA, ele foi chamado para apitar com os grandes em 1994. Tinha 27 anos.
A vida de um árbitro tem suas contradições. Durante a temporada, é um trabalho exigente, cansativo, estressante. Mas é bem remunerado – mesmo novatos em 2007 conseguiam ganhar pelo menos 100 mil dólares num ano. E então tem a offseason. Para todos os fins, é como se fosse uma quase aposentadoria. “Quando não era temporada de basquete, ele tinha muito tempo livre pra gastar”, conta um dos amigos de Donaghy.
Em 1998, Donaghy entrou num clube de campo em West Chester, Pennsylvania, chamado Radley Rin, em que Donaghy construiu uma casa espaçosa ao longo de seus vastos gramados. No clube ele formou um grupo de colegas de golfe. Jogavam 18 buracos por quatro ou cinco dias por semana. Tinha golfe, mas também bebidas e apostas. Excursões frequentes eram feitas até o Borgata, um cassino em Atlantic City. No cassino, Donaghy usava um boné de baseball com aba baixa para esconder seus olhos; todo mundo sabe das câmeras em cassinos, e a NBA proíbe qualquer tipo de aposta por parte de seus árbitros (com exceção, estranhamente, de corrida de cavalos).
De vez em quando, Donaghy ficava em casa. “Ele era um homem solteiro mesmo casado e com quatro filhos”, conta Kim Donaghy, sua ex-esposa. “Ele jogava golfe e apostava”.
Provavelmente o amigo mais próximo de Donaghy nesse grupo era um homem chamado Jack Concannon. Eles se conheciam desde o Ensino Médio. Como muitos nesse bando, Concannon tinha um agente de apostas, Peter Ruggieri, que também jogava golfe com frequência com a turma de Donaghy e Concannon. Baixinho, atarracado, de pescoço largo, Ruggieri tinha a estrutura, segundo alguns, de um pequeno rinoceronte. Em círculos que não fossem seu clube de campo, seu apelido era “Rino”.
Donaghy escreveu que Rino tinha um sistema para escolher vencedores de jogos da NFL e de futebol americano universitário. Em outubro de 2002, Donaghy e Concannon decidiram investir dinheiro e apostar nos palpites de Ruggieri. (Concannon recusou se pronunciar sobre essa história.) Era uma violação clara das regras da NBA, mas Donaghy superou esse detalhe. “Comecei a pensar – ou melhor dizendo, racionalizar: Merda, todo mundo por aqui aposta”, ele escreveu. “Era como se eu fosse um usuário de maconha progredindo para cocaína”.
Então, em algum momento de 2003, Donaghy e Concannon resolveram encarar o caminho das pedras. De acordo com a versão de Donaghy, os dois estavam sentados sozinhos na casa de campo em Radley depois de uma rodada de golfe quando decidiram apostar na NBA. Mas não era apenas a NBA; segundo documentos apresentados à corte, eles decidiram apostar nos jogos apitados por Donaghy.
Existem vários pontos mal compreendidos com relação ao escândalo de Tim Donaghy. Talvez o maior seja esse: que Donaghy era o árbitro que conspirou com apostadores em jogos da NBA durante uma temporada vergonhosa.
Isso é incorreto. Segundo um documento apresentado à corte, Donaghy e Concannon fizeram sua primeira aposta num jogo apitado por Donaghy em março de 2003 – mais de quatro anos e 4 temporadas da NBA antes de que ele fosse pego.
Ele começou com pouco. Naquele mês de março de inicial, apostou em apenas dois ou três jogos. Na temporada seguinte, no entanto, o volume aumentou subitamente – ele fez entre 30 e 40 apostas em jogos em que estava trabalhando. A mesma coisa ocorreu na temporada seguinte, e na temporada seguinte após essa.
Ele se saiu bem. Segundo Donaghy mesmo admite em suas memórias, tanto dinheiro começou a entrar que ele teve problemas em saber onde guardá-lo fisicamente para que sua esposa não começasse a fazer perguntas.
Hoje, Kim Donaghy vive em Sarasota, Florida, onde ela e seu então marido e quatro filhos se mudaram em 2005. Kim preencheu os papéis do divórcio no final de 2007, alguns meses depois do escândalo se tornar público. Quando a visitei em Sarasota pouco tempo atrás, no escritório em que ela trabalha, ela deixou claro que o divórcio era uma ideia de longa data. “Tim era muito, muito reservado. Estava sempre trancado numa sala, no telefone.”
Em Sarasota, Kim Donaghy imprimiu para mim as primeiras 98 páginas do seu ainda incompleto e não publicado livro de memórias, “A Esposa do Árbitro”. Nele, ela escreve sobre o paradoxo de sentir ao mesmo tempo “saudade dele” e “muito medo dele”. Ela descreve o momento em que pegou seu agasalho oficial da NBA para colocá-lo pra lavar e encontrou no bolso “um grande maço de notas de 100 dólares enroladas num elástico”. Quão grande? Com seu polegar e os dedos do meio, ela fez um grande “O” com o diâmetro de uma laranja. Ela teve dificuldades de se lembrar exatamente quando, mas disse que provavelmente começou a achar dinheiro em 2004, durante a temporada. Naquela época, ela disse pra si mesma que o dinheiro era de apostas no campo de golfe. Mas ela continuou achando maços iguais enrolados em seus bolsos conforme os anos passavam. Quando perguntei, ela disse que nunca contou o dinheiro, nem nunca confrontou o marido sobre a existência dele.
“Por quê?”
Ela deu uma resposta de apenas uma palavra: “Medo”.
Eles chamavam de “O Escritório”. Um apostador inveterado chamado Mike Rinnier, que fez fortuna nos supermercados de Delaware County, decidiu que iria financiar um pequeno consórcio de apostas esportivas nos anos 80. Colocou pra trabalhar a ambição de ganhar dinheiro dos operários nascidos em Delco. “Eram caras inteligentes que simplesmente não conseguiam ter empregos de tempo-integral”, conta um antigo apostador que os conhecia. Battista, que flutuava entre ser garçom, gerente de restaurante e ter uma pequena banca de apostas depois de terminar o Ensino Médio, já estava com vinte e poucos anos quando, de acordo com “Gaming the Game”, um livro sobre o escândalo de Donaghy escrito pelo ex-detetive de polícia da Philadelphia, Sean Patrick Griffin, Rinnier o recrutou para o grupo. Por puro acaso, ao longo dos anos seus membros todos ganharam apelidos de animais: Tigre, Galo, Rino, Foca, Ovelha. Com isso o consórcio deles acabou sendo chamado por alguns de “os Animais”.
No começo dos anos 2000, o mundo das apostas esportivas estava vivendo uma explosão equivalente à dos primeiros negócios na internet. Agentes de apostas ilegais de todos os Estados Unidos, apostadores profissionais e empreendedores visionários digitais com capacidade de programar estavam todos criando sites de apostas esportivas na internet, muitas vezes se estabelecendo em lugares com pouca supervisão fiscal, como Costa Rica, Antigua, Jamaica e Curaçau.
Os Animais se estabeleceram em Curaçau, onde ajudaram a lançar um site de apostas esportivas chamado PlayASAP. Ficava numa casa a um quarteirão da praia. E foi lá, no outono de 2003 – entre cervejas sob palmeiras no bar tiki da praia Mambo, entre rodadas de golfe e sessões de pôquer até tarde no cassino do hotel Holiday Beach – que os Animais começaram a ganhar dinheiro com uma descoberta brilhante.
Rino Ruggieri estava fazendo apostas pedidas por um conhecido seu, um cara que ele conhecia do campo de golfe chamado Jack Concannon. Na Philadelphia, Ruggieri tinha percebido que o tamanho das apostas de Concannon eram muitíssimo maiores em alguns jogos específicos da NBA. E aquelas apostas ganhavam – ganhavam de um jeito que Concannon nunca tinha conseguido antes. Geralmente esse cara apostava 100, 200 ou talvez 500 dólares. E geralmente perdia. Mas de repente esse vendedor de seguros, que fazia apostas idiotas por diversão e rendia um dinheiro fácil, começou a colocar cinco mil dólares em jogos específicos da NBA e vencer contra todas as expectativas? Tinha que haver um padrão.
Agora que ele fazia parte da PlayASAP, Ruggieri fazia todas as apostas de antes, incluindo as de Concannon, no site da PlayASAP. Todo mundo no escritório de Curaçau, portanto, tinha acesso ao histórico de apostas de Concannon. Eles estudaram suas apostas. E não demoraram muito para deduzir. Por ser também um membro esporádico no mesmo campo de golfe, Ruggieri sabia que Concannon e o árbitro da NBA Tim Donaghy eram amigos. Eles checaram os jogos. Quem eram os árbitros? Sem dúvidas, lá estava ele. Um dos três árbitros era sempre ele. O maldito Donaghy.
“Caramba!”, pensaram. “Donaghy e Concannon estão apostando nos jogos do Donaghy – e simplesmente arregaçando com tudo.”
O que fazer então quando se tropeça numa possível conspiração criminosa ocorrendo? O que Battista, Ruggieri e o resto fizeram foi seguir as apostas de Concannon e Donaghy com apostas deles próprios – 30 mil, 50 mil, 100 mil dólares por jogo, segundo uma pessoa ciente das apostas. Quantias enormes, mas que se lidadas com habilidade, não eram grandes o suficiente para alertar o resto do mercado de que algo sacana pudesse estar ocorrendo. Eles haviam possivelmente encontrado a melhor vantagem de todos os tempos. Agora tinham uma função: não perder essa vantagem ao deixar essa informação vazar. Se Donaghy estava ou não usando seu apito para fraudar os jogos era irrelevante. Quando Donaghy apitava e Concannon apostava, o lado que ele escolhia vencia pela margem correta entre 60 e 70 por cento das vezes. Os Animais chegaram ao ponto de estudar os box scores depois das partidas de Donaghy. “Se você olhasse para as estatísticas”, conta um apostador que estava no Escritório na época, “dava pra ver que ele apitava mais faltas do time contra o qual ele apostou contra e menos faltas do time em que ele apostou. Era bem óbvio.”
Outro disse: “Se eu assumi que ele estava fraudando os jogos? Com certeza. Mas não dei a mínima porque era uma informação muito boa. De 2003 a 2007, não deixamos de apostar em um jogo sequer. Todos os jogos em que ele apitava, fizemos nossas apostas.”
Numa noite do começo de dezembro de 2006, Tommy Martino recebeu uma ligação urgente de Battista. Junto com o resto dos Animais, Battista voltou de Curaçau em 2004 depois que a PlayASAP foi à falência. Battista decidiu a partir de então abrir seu próprio negócio como agente de apostas. Fosse qual fosse o motivo da ligação, Battista disse que não podia falar a respeito no telefone.
Uma década depois, numa sala dos fundos do salão de cabeleireiros em que ele trabalhava, Martino me contou o que se passou: Martino já sabia que seu colega Tim Donaghy vinha apostando em seus próprios jogos com Concannon, e ganhando essas apostas. Battista, depois de descobrir isso, vinha copiando essas apostas por quase 4 anos inteiros. Mas agora, quando Battista chegou na casa de Marino, soltou a bomba.
O grande problema, Battista disse, era que os mercados de aposta estavam ficando mais espertos com o surgimento de cálculos incrivelmente precisos das margens de pontos exigidas nas apostas pelos times favoritos em jogos da NBA. Como esse privilégio, esse tesouro, corria o risco de evaporar, Battista decidiu que precisava assumir controle direto sobre o árbitro.
Martino não era um apostador, mal tinha feito uma aposta na vida. Mas ele continuava um amigo próximo de Donaghy e de Battista após o Ensino Médio – enquanto os dois, pelo contrário, nunca foram muito próximos um do outro. Martino, desse modo, se tornaria a ponte improvável pela qual a conspiração poderia viajar. Para Martino, Battista parecia desesperado, até mesmo assustado. “Você tem que me conseguir uma reunião com Donaghy”, Battista afirmou.
Era 12 de dezembro de 2006, uma terça-feira, uma hora antes da meia-noite, no hotel Marriott do aeroporto da Philadelphia, dentro do principal restaurante do hotel, chamado na época de Riverband Bar & Grille. E foi lá que, num salão vazio se não fosse por eles, sentados ao redor da mesa, Battista e Donaghy, com Martino de testemunha, fecharam um acordo. Battista existiu que Donaghy nunca mais apostasse com Concannon, e em troca de comunicar seus palpites de aposta, Donaghy ganharia 2 mil dólares por jogo – mas apenas se o palpite ganhasse. Bem mais pra frente ele passaria a chamar esse encontro de “o casamento”.
As versões sobre esse encontro divergem. De acordo com declarações que Donaghy deu para as autoridades federais, o acordo com Battista foi na verdade um ato de extorsão. Você não quer ninguém “de New York” indo na sua casa, Battista lhe disse. E: você não quer que a NBA descubra o que você tem feito com Concannon.
De acordo com Battista, no entanto, foi Donaghy quem o procurou, pedindo por uma reunião. Tanto Battista quanto Martino disseram que não houve nenhuma ameaça, que todos estavam nervosos mas que a situação parecia amena, e que aquilo que convenceu Donaghy a fechar um acordo foi Battista lhe dizer: “Sabemos que você tem entregado os jogos para Jack Concannon”. E depois, torcendo a faca, Battista lhe contou quanto dinheiro Concannon estava ganhando.
Donaghy se levantou da mesa. Ele tinha que ir ao banheiro, pelo que disse, e gesticulou para que Martino fosse com ele. “Ele fica tão pálido às vezes, chega a ficar amarelo, juro por deus”, Martino me disse. “No banheiro, Donaghy soltou um ‘Tom, você consegue acreditar nessa merda?’ E eu disse ‘No quê?’, pensando que ele diria: Que merda! Estão sabendo que eu entrego jogos pro Jack! Mas não. Sabe o que ele disse? Ele falou assim: ‘Você acredita? Concannon estava ganhando toda aquela grana e não me dando nada!’”
De volta à mesa, Martino e Donaghy disseram a Battista que precisavam dirigir até um posto de gasolina próximo. Voltaram do posto com um pacote de papel de fumo, e ali mesmo dentro do carro, sob a luz fluorescente do posto de gasolina, na crescente área urbana de aluguéis caríssimos adjacentes à pista do Aeroporto Internacional da Philadelphia, Martino enrolou um baseado. Passaram de um para o outro – Battista, que tinha cheirado um pouco de cocaína antes, recusou – e conforme o carro se preenchia com fumaça, eles fizeram, conforme Martino me contou, “um pacto”. O pacto era: “Não conte pra ninguém. Porque é assim que se entra numa furada.”
Ato 3: Tudo que sobe…
Os Celtics enfrentaram o Sixers na noite seguinte à reunião com Marriott. Donaghy trabalhou naquele jogo. No carro, no posto de gasolina, de acordo com “Gaming the Game”, Donaghy tinha dito: Aposte no Celitcs. Foi o primeiro palpite enviado para Battista. O Celtics, que era o favorito e portanto precisava vencer por 2.5 pontos nas casas de apostas, ganhou de lavada. Uma fonte conhecedora da conspiração alega que Battista movimentou cerca de 500 mil dólares em apostas nesse jogo: “Fizemos uma aposta grande nele. Fizemos apostas grandes em todo maldito jogo.”
Apostar nos níveis mais altos das apostas esportivas é semelhante a qualquer instituição financeira. Existem pregões definidos. Abrem de manhã e fecham pouco antes da primeira bola ao alto. É possível, até mesmo, comprar e vender apostas já feitas, fazer contratos de futuro para compra e para venda, fazer fundos de cobertura. Os melhores negociadores levam anos compilando uma vasta rede de clientes e bancas de aposta, ou contrapartes, com os quais é possível negociar. Battista tinha uma rede dessas.
É possível, através do Don Best Sports, um serviço de informações sobre apostas, rastrear os dados de variações das cotações de cada jogo da NBA de anos e anos atrás. É como olhar para um gráfico do mercado de ações. Os dados registram as flutuações de preço. Se a vantagem de pontos necessária aumenta durante os pregões, então dá pra saber que a demanda entre apostadores por apostas no time favorito aumentaram.
E de fato, os gráficos para o jogo entre Boston e Philadelphia no dia 13 de dezembro de 2006 mostram os prêmios pagos pelo Boston crescendo muito e então abaixando de novo. Apostas imensas no Boston no meio do pregão, entre as 11h30 e as 15h30, levaram a diferença de pontos necessária para uma vitória de 2.5 para 3 e então para 4. Nos mercados de NBA, segundo especialistas em apostas, qualquer mudança de 1.5 pontos ou mais é considerada excepcionalmente severa – resultado de milhões de dólares entrando.
Na noite seguinte à vitória, de acordo com todas as partes envolvidas, os conspiradores se encontraram uma vez mais, na casa de Martino nos subúrbios de Boothwyn, na Philadelphia. Battista chegou com uma pilha bem grossa de notas de 100 dólares unidas por um elástico – 2000 dólares pela taxa previamente combinada e 3000 dólares para adoçar a boca. A partir daí, segundo Battista, Donaghy e ele nunca mais se comunicaram diretamente. Em vez disso, Martino fazia o meio de campo. Eles usavam, segundo o depoimento de Martino para o FBI, um código. Martino tinha dois irmãos. Um deles, Johnny, morava em New Jersey. O outro, Chuck, morava em Delco. De acordo com Martino, se Donaghy mencionasse o nome de Johnny, que morava em outro estado, o palpite era pelo time visitante. Se Donaghy falasse sobre Chuck, a aposta era no time da casa. Não é exatamente uma criptografia complexa, mas é melhor do que sair por aí tagarelando sobre times específicos e correr o risco de alguém acabar ouvindo alguma coisa.
No mundo ideal, Donaghy precisava escolher seu palpite o mais cedo possível, de preferência na noite antes dos seus jogos, ou pelo menos logo de manhã. Assim Battista podia começar a preparar os mercados, manipulando os preços a seu favor. Ele começava antes do nascer do sol com o incrivelmente líquido mercado asiático de apostas, um grupo amorfo ilegal ou quase legal de sites de apostas localizados em lugares como Manila e Kuala Lumpur. Normalmente isso significava fazer algumas apostas apenas como “finta”. Se você acha que o Celtics é o time que vai vencer, então você entra no mercado o mais cedo possível e coloca dinheiro no time da Philadelphia. Se fizer direito, você abaixa o preço do time de Boston. Então, mais tarde no mesmo dia, com o preço certo, você enche o bucho o quanto puder de apostas no Boston. De acordo com Martino e Battista, depois de completar essas transações, Battista, através de Martino, avisava da margem de pontos que ele precisava garantir na partida. E assim começou…
Da Philadelphia, Donaghy pula para um jogo do Nets em casa, e então 1700 milhas para o Oeste rumo a Denver, e então rumo a Seattle, e então um voo transcontinental para Atlanta, e então sudoeste para Houston, e de volta ao leste para Washington – Donaghy ziguezagueia o país inteiro, entrando e saindo dos ginásios da NBA, enviando seus palpites para Martino com celulares descartáveis de camelô, mas não sempre, porque às vezes eles se esqueciam e usavam seus celulares normais, afinal quem se importa? – vencendo e vencendo e vencendo e vencendo, seus palpites vencendo praticamente 100 por cento das vezes. “Como Chuck está?” “Mande um oi para o Johnny por mim…
Entregas de dinheiro e pagamentos em Blue Bell, na Pennsylvania; em New York; em Las Vegas; em San Francisco. Notas de cem em pacotes de 10.000 dólares, unidas por elástico e entregues por office boys de confiança. Battista aumenta a taxa para Donaghy para 5000 dólares por palpite certo – minúsculo se comparado com as quantias que Battista passa a movimentar. Battista aproxima a cabeça da mesa e cheira uma linha de cocaína para se manter alerta, para ficar acordado. Tarde da noite, Martino no telefone com Donaghy, os dois desenvolvem um ritual noturno diário antes de dormir: Se o palpite de Donaghy fosse vencedor, e se a margem de pontos tivesse se concretizado, Martino liga e sussurra ‘Bom garoto”, e Donaghy repete “Bom garoto” e então desligam.
Donaghy apita duas faltas com diferença de 50 segundos entre elas contra o cestinha do Sixers, Andre Iguodala, no terceiro quarto contra o Boston, já com a diferença de pontos dentro da necessária. Iguodala vai para o banco; Boston ultrapassa a margem combinada… Donaghy em Seattle, com o Sonics recebendo o Mavs, apita 11 faltas seguidas contra o time de Seattle e depois a última falta da noite, com 23 segundos para terminar o jogo. O time de Dallas acerta os dois lances livres, aumentando a vantagem para oito pontos. Margem final necessária: Dallas por 8… Donaghy no Ano Novo em Charlotte marca 14 faltas contra o Bobcats, cinco contra o Wolves; o Wolves fica acima da margem necessária…
Battista em geral assistia a esses jogos em casa, mas às vezes não. Assistir aos jogos lhe dava azia, segundo ele, ao ponto de que então tinha que desligar a televisão: “Lembro de pensar tipo, ‘Que merda, ele está saindo do controle’. Era óbvio demais. Eu pensava ‘Se qualquer pessoa estiver assistindo isso, teremos problemas’.” E mesmo assim isso continuou…
Donaghy em Dallas dia 30 de janeiro marca uma falta contra o time da casa e 12 contra o time de Seattle, incluindo seis seguidas contra o Sonics quando a margem de pontos estava abaixo de 13. Precisando vencer por 12, Dallas bate a meta… Donaghy em Miami apita 12 faltas contra os visitantes de Charlotte, duas contra o Heat. O Heat supera a margem necessária… Donaghy em Toronto marca 4 faltas do cestinha do visitante Nets, Vince Carter, forçando ele a ir para o banco, a última dessas faltas quando Donaghy estava do lado oposto da quadra e o Raptors liderava por três pontos. Raptors, precisa vencer por 10.5, e consegue…
Com dinheiro jorrando nesses jogos em que Donaghy apita, as cotações durante os pregões são atropeladas por rumores de compras maciças – alargando e estreitando as margens de pontos necessárias em 1.5, 3, 4.5, até 5 pontos, algo sem precedentes na NBA exceto pelos casos de lesão em jogadores importantes… Battista manda pílulas pra dentro, Vicodin e OxyContin, analgésicos fortíssimos, às vezes cai no sono sentado na mesa de restaurantes, às vezes vomita sangue. Battista todo pilhado e sem dormir a noite toda, de maneira obsessiva e sem pensar em nada, joga blackjack e pôquer online, e às vezes até faz apostas em esportes em que ele não tem nenhum conhecimento ou informação privilegiada, e perde, perde, perde…
E então Donaghy apita faltas do visitante Heat 12 vezes dentro do Madison Square Garden contra apenas 4 do Knicks; o Knicks bate a margem… Martino pega um voo para Toronto para pagar Donaghy e festejar, contratando prostitutas de um site… Donaghy no dia 14 de março em Indianapolis marca 4 faltas seguidas no quarto período contra o azarão Pacers quando perdiam por seis pontos para o Wizards, visitante. Precisando vencer por 6, o Wizards, visitante, bate a margem… Battista no dia 15 de março confessa para sua esposa que perdeu 7 milhões de dólares dos seus clientes… Battista no dia 16 de março, sem dormir e chapado na casa de Martino, é cercado repentinamente por sua família próxima praticamente inteira. Uma intervenção… Battista dois dias depois veste um roupão de banho numa casa de recuperação para dependentes químicos.
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