A semana que se passou foi trágica – e decisiva – para o basquete brasileiro. Depois de anos de falta de organização, não pagamento de dívidas, descaso com o basquete da base, ausência de transparência e nenhum plano de reestruturação, a Confederação Brasileira de Basquete foi suspensa pela FIBA de quaisquer competições internacionais que pudesse disputar. Os motivos, que foram mais claramente elencados pelo Fábio Balassiano – que, como todo fã de basquete sabe, está cantando essa bola há anos – foram suficientes para que a FIBA entendesse que nossa Confederação não cumpre suas promessas, não tem capacidade de auto-organização e, pior, não dá sinal algum de mudança de curso. O cenário desastroso culminou com a CBB abrindo mão de participar dos campeonatos Mundiais Sub-18 (em que as seleções brasileiras só compareceram por intervenção direta da Liga Nacional de Basquete), o cancelamento de todos os torneios brasileiros de base do ano e a não realização da etapa brasileira do Mundial 3X3. Frente a isso, e como tudo indicava que os envolvidos diretos nesse desastre organizacional iriam continuar no controle da entidade após as eleições do próximo ano, a FIBA entendeu que era necessário intervir.
A proposta de criar uma força-tarefa mista, contendo membros da gestão brasileira e ajuda experiente internacional, parece que não saiu do papel apesar da insistência da FIBA. Se isso já era evidente há anos, agora fica inteiramente explícito que o basquete brasileiro esteve fechado numa bolha durante tempo demais, negando uma troca de experiências com outras iniciativas internacionais de sucesso e arrogante demais para pedir ajuda e copiar modelos já testados lá fora. De fato, há uma realidade esportiva brasileira que é demasiada nossa e exige soluções caseiras – já que nossa relação cultural com o futebol é passional e de longa data, e que os outros esportes naturalmente serão asfixiados por essa hegemonia – mas isso não significa que não existam coisas a serem aprendidas com o basquete internacional, tanto na parte técnica e tática quanto na parte de gestão esportiva. Como NBA sempre foi o foco desse blog – e como a NBA é, claramente, o maior sucesso de organização do basquete no mundo – vamos dar uma olhada em como funciona o basquete nos Estados Unidos, os motivos para isso, e o que pode ser apreendido ou copiado desse modelo.
Nos Estados Unidos, o basquete – como esporte, não como Liga – é administrado pela organização conhecida como “USA Basketball”. Ela é responsável por cuidar do basquete FIBA no país, realizando torneios, organizando as seleções nacionais e PROMOVENDO A PRÁTICA E A FRUIÇÃO do esporte da bola laranja. Isso significa que a “USA Basketball” aceita como membros todas as ligas e as organizações interessadas em basquetebol no país, permitindo que esses membros ajudem na tomada das decisões, na gestão financeira e possam pensar juntos em planos gerais de longa duração. A NBA é, portanto, um dos vários membros da “USA Basketball”, que também incluem a D-League (a Liga de Desenvolvimento da NBA), todos os órgãos de basquete universitário (incluindo a NCAA), de basquete do Ensino Médio e de basquete infanto-juvenil, além de diversas entidades de basquete para-olímpico, grupos de organização e treinamento de técnicos e até mesmo os Harlem Globetrotters. Na prática a “USA Basketball” garante que tantas instâncias diferentes possam fazer parte de um único eco-sistema, de uma mesma visão comum – não através de mandos e desmandos, mas através de uma gestão colaborativa que inclui todos os envolvidos e que tem a promoção do basquete como ponto central.
Curiosamente, esse tipo de abordagem exige pouco dinheiro por dar total autonomia a cada um dos seus membros. A NBA é uma Liga pronta, à parte, gerenciada pelos donos de cada time envolvido, que faz sua própria promoção e é financeiramente autônoma. A NCAA é um torneio universitário autônomo, que inclui uma série de programas de incentivo ao esporte, financiado e gerido pelas próprias universidades que participam. A “USA Basketball” oferece apenas apoio estrutural quando necessário e liga os pontos, garantindo que o eco-sistema seja interligado. Ela coloca os campeonatos colegiais em contato com as universidades; liga os campeonatos amadores uns aos outros; promove clínicas de apoio, treinamento, incentivo; apresenta planos de longa duração para que as categorias de base possam saber qual será o futuro do esporte – apenas eventualmente investe algum dinheiro onde necessário. Basicamente, sua obrigação é garantir um ambiente “equilibrado” para o basquete e, para isso, manter uma visão de longo prazo: se os torneios da base estão ficando escassos, ela intervém; se as participações internacionais estão tendo menos resultado (como uma derrota Olímpica, por exemplo), ela muda o projeto. Já falamos aqui no Bola Presa sobre como a seleção americana de basquete foi completamente transformada por um ousado plano que tornou jogar pela seleção algo DESEJÁVEL porque ela se tornou a melhor CLÍNICA DE BASQUETE do planeta, com a melhora dos jogadores envolvidos sendo a melhor propaganda possível. Isso só é possível porque a “USA Basketball” tem diálogo direto com a NBA e acesso a todos os jogadores sem que haja uma posição de cobrança ou de subordinação direta.
[image style=”” name=”on” link=”” target=”off” caption=”A alegria de fazer parte de uma família feliz – e mais o Kobe”]http://bolapresa.com.br/wp-content/uploads/2016/11/USA.jpg[/image]
Talvez o que esse modelo mais tenha a nos mostrar é como todas as instâncias do basquete – da categoria de base infantil ao basquete profissional e às clínicas de técnicos – acabam alimentando-se umas das outras. Ao ter sucesso, a NBA acaba incentivando o basquete universitário a se tornar ainda mais forte e competitivo. Quanto mais forte é a NCAA, mais organizados ficam os campeonatos colegiais. Com tantos jovens talentos entrando na NBA, passa a fazer sentido criar uma Liga de Desenvolvimento à parte, o que por sua vez abre espaço para mais jogadores, o que fortalece ainda mais as categorias de base. Técnicos bem formados conseguem treinar jogadores melhores desde a infância, que melhoram o nível do basquete profissional – o que por sua vez sobe o interesse pelo basquete no país, o que aumenta a quantidade de jovens treinando. É um ciclo virtuoso em que o sucesso de uma ponta só pode acontecer – e é também causado – pelo sucesso da outra.
No Brasil, não apenas vimos nossa Confederação atrapalhar a criação da Liga Nacional de Basquete (responsável pelo NBB) como também ignorar em larga escala a formação de jovens atletas e cancelar a Escola Nacional de Técnicos. Os resultados também são sentidos em cadeia: técnicos defasados, jovens atletas com problemas nos fundamentos, uma Liga com menor nível técnico e, consequentemente, uma Liga que atrai menos interesse do público, movimentando menos dinheiro e tornando menos interessante o investimento na base e assim por diante. Não é à toa que falta dinheiro no esporte nacional e que os patrocinadores morram de medo de se comprometer com qualquer equipe.
É claro que a NBA é uma outra realidade – lá, o basquete pode não ser o esporte mais assistido, mas ainda assim é um esporte de massa – mas é seu modelo de gestão que garante um grau de estabilidade com o qual o basquete nacional nunca chegou a sonhar. Na NBA, o que importa é a marca NBA – e, de maneira intrínseca, o basquete – e não alguma equipe em particular. Nenhuma equipe terá sucesso a longo prazo se a Liga for uma PORCARIA, e equipe alguma será reconhecida se seus adversários forem amadores, ou se deixarem de existir de um dia para o outro porque faliram. É por isso que na NBA, parte do dinheiro arrecadado por uma equipe é redistribuído para todas as outras equipes que mais precisam de dinheiro; é por isso que equipes que ultrapassam o teto salarial precisam pagar multas para os times com menos grana que não chegaram a alcançar o teto de gastos. É pensando no bem GERAL E COLETIVO que os lucros são divididos, que todas as equipes possuem peso igual nas decisões da Liga, que parte do dinheiro que poderia ir para os atletas vai na verdade para ações de marketing, de promoção do esporte, para a “USA Basketball” e a garantia de que a base lhes oferecerá sempre novos talentos. Além disso, a NBA sabe da importância de estar ligada à comunidade, colocando seus jogadores para realizar trabalhos voluntários, promoção da Liga, caridade, ações sociais, etc. Até mesmo coisas ESTÚPIDAS como o código de vestimenta dos atletas está preocupado em vender uma certa imagem da NBA e do basquete em nome de um bem maior, mesmo que isso incomode a alguns indivíduos.
Por fim, a garantia tanto na NBA quanto na “USA Basketball” de que todos os afetados participam ativamente das decisões gera uma enorme TRANSPARÊNCIA que acaba se refletindo também na relação com os torcedores. As finanças são abertas e acessíveis e todas as decisões – incluindo os planos de longa duração – são divulgados amplamente. Os planos para que a seleção americana de basquete retomasse o ouro olímpico eram conhecidos muito antes do sucesso chegar, de modo que os fãs frustrados sabiam o que esperar. Mesmo num lugar em que o basquete é um sucesso inegável, entende-se a necessidade de criar a sensação de “família”, em que os fãs do basquete precisam se unir e, para isso, sentir que estão a par de tudo que se passa nesse esporte, das questões administrativas à última enterrada ou jogada de efeito que ocorreu ontem.
Como isso poderia ser passado para a realidade brasileira? Admito que estou olhando a situação de fora, de modo que posso tropeçar em romantismos ou cometer alguns equívocos, mas consigo apontar algumas possibilidades. Do ponto de vista da CBB, o primeiro passo precisa ser uma gestão coletiva, em que a Liga Nacional de Basquete e demais entidades envolvidas com o esporte tenham igual poder de decisão interno. A partir daí, os esforços precisam ser inteiramente colocados na base: organizar campeonatos juvenis, clínicas para os técnicos, criar parâmetros de formação de atletas, talvez até repensar o modo como se lida com o basquete no currículo escolar dos Ensinos Fundamental e Médio. É preciso unificar também os campeonatos universitários, padronizando os formatos, a arbitragem, deixar que sejam auto-geridos mas criar alguma sensação de continuidade para que possam ser celeiros minimamente razoáveis de novos jogadores. Entendo que a Liga Nacional de Basquete possui pressa de reconstruir o basquete, e que ela não tem nada a ver – ao menos não diretamente – com os campeonatos de base, mas num mundo ideal ela poderia interferir nesse processo através da CBB para garantir que receberá, num futuro próximo, atletas mais bem preparados, o que melhorará o nível geral do campeonato.
Além disso, o basquete brasileiro precisa urgentemente de um misto de TRANSPARÊNCIA e DIVULGAÇÃO. Vejam bem: o basquete é um nicho no Brasil, a divulgação é pequena, os torcedores são escassos, as empresas não se interessam e quem acompanha o Bola Presa desde o começo sabe das inúmeras tentativas frustradas de tentar tornar o blog viável através de patrocínios, apoios e parcerias privadas. Mas eis que quando abrimos a situação, mostramos as dificuldades e pedimos ajuda da comunidade, vocês leitores tornaram o blog financeiramente sustentável de um ano pra cá. Esse tipo de coisa precisa acontecer com todo o basquete nacional: a gente admitir que o esporte é pequeno, que o futebol engole e sempre engolirá tudo, e que portanto precisamos nos UNIR, ter uma visão conjunta e apoiar financeiramente o basquete. Não dá pra cada um ficar puxando para um lado, fazendo braço de ferro – nem entre CBB e LNB, nem entre comentaristas de TV e blogs de basquete. Com um plano aberto a todos, honesto e APAIXONADO, a CBB poderia CLAMAR PELA FAMÍLIA DE FÃS DE BASQUETE e ter com isso ajuda de voluntários, blogs, ex-atletas, podcasts, financiamentos coletivos, campanhas de doação, bazares beneficentes, leilão de artigos esportivos, etc. E esse plano, claro, precisa nos munir não apenas com informações sobre o que se está fazendo e o que se quer fazer, mas também com informações de tudo que está acontecendo nesse momento: é preciso JORRAR conteúdo para a mídia, apoiar todos os blogueiros ativamente (acredito demais, por motivos pessoais e óbvios, que isso mudaria o cenário nacional), incentivar qualquer forma de divulgação espontânea, ter resumos de todas as rodadas de basquete nacional em texto e em vídeo, um programa em vídeo semanal no YouTube em estilo mesa redonda, os jogadores fazendo mutirão de casa popular, sorteio de camisetas da seleção e toda essa micagem necessária para atrair novos fãs e fazer com que os fãs antigos sintam que fazem parte de alguma coisa. Hoje no Brasil é muito difícil ter qualquer sensação de PERTENCIMENTO com o basquete nacional, em parte porque sequer se sabe o que está acontecendo – sinto-me mais próximo do basquete de Houston, com toneladas de informações para consumir todos os dias, do que me sinto do basquete da minha própria cidade tupiniquim. Para mim, que fui como leigo acompanhar a final brasileira do Campeonato de League of Legends – um jogo de computador, vejam só! – foi devastador ver que a organização, os comentários especializados em tempo real para os torcedores, o apoio à imprensa e aos fãs, o programa em vídeo semanal e o acesso às novidades cria um senso de pertencimento, de seriedade e de profissionalismo que deixa o nosso basquete inteiro no chinelo.
Podem parecer sugestões simples demais para interromper um sagramento tão sério e de proporções tão devastadoras quanto esse que estamos enfrentando agora, mas realmente acredito no poder de tirar das costas inaptas da CBB as decisões do basquete nacional e COLETIVIZAR uma visão única e focada de como deveria ser o basquete daqui pra frente, colocando parte dessa carga nas costas dos fãs – um grupo de pessoas apaixonadas que está querendo se engajar, apoiar, incentivar, torcer, mas não sabe que o basquete nacional existe ou sente que ele é completamente caótico ou desinteressante. Torná-lo interessante é, acima de tudo, torná-lo ORGANIZADO, dar a ele uma sensação de propósito, de que todas as suas pontas estão interligadas, de que sabe-se o que esperar. Mesmo no meio do caos, das contas no vermelho, do futuro cinza, é preciso FALAR DISSO ABERTAMENTE para os fãs e estar disposto a ouvir sugestões e aceitar ajuda. Não adianta sentar em cima de uma dívida milionária esperando cair do céu um investidor divino, é melhor admitir as perdas, dar mil passos pra trás e começar outra vez, permitindo que os torcedores sintam que estão fazendo parte de um processo novo, instigante, promissor, munido de um sentido, de um propósito. No fundo, o basquete só precisa deixar de ser um objeto da CBB, e passar a ser uma paixão coletiva que está, empurrada por todos nós, indo para algum lugar.