🔒As mudanças que assombram a NBA

No começo dos anos 2000, jogadores de garrafão ainda dominavam a NBA. Em 2000, 2001 e 2002, o Los Angeles Lakers foi campeão com um pivô imparável, Shaquille O’Neal; em 2003, assim como ocorrera em 1999, o título foi para o San Antonio Spurs de Tim Duncan, jogador de garrafão eleito MVP em 2002 e 2003. Nesses mesmos anos, o prêmio de melhor novato foi para Pau Gasol e Amar’e Stoudemire, dois jovens pivôs. Os três quintetos com os melhores jogadores da temporada 2002-03, que somavam 15 atletas, continham 8 jogadores de garrafão: Shaquille O’Neal, Tim Duncan, Kevin Garnett, Dirk Nowitzki, Chris Webber, Ben Wallace, Dikembe Mutombo e Jermaine O’Neal.

O protagonismo desses jogadores criou uma percepção de que era impossível vencer partidas sem um jogador dominante da posição, o que levou as equipes à uma corrida por pivôs através de draft e de contratações. Muitos jogadores de talento questionável começaram a ser escolhidos em posições altas demais, enquanto pivôs medianos passaram a receber propostas salariais obscenas. Em 2004, quando o Dallas Mavericks estava convencido de que apenas um pivô os separava de um título, Erick Dampier recebeu um contrato exorbitante com SETE anos de duração. No ano seguinte, foi a vez de Eddy Curry receber outro contrato máximo, dessa vez de seis anos pelo Knicks. Hoje, os dois contratos são famosos como dois dos piores na história da NBA. Eram muitos anos de comprometimento salarial, mas na época garantir um pivô pelo máximo de tempo possível traria, supostamente, tranquilidade de que a posição mais importante na quadra estava garantida.

No entanto, em 2001 a NBA mudou suas regras de defesa, permitindo que os times utilizassem zonas e instituindo um limite de apenas 3 segundos para que defensores ocupassem os garrafões sem defender um jogador próximo. Em 2004, foi a vez de alterar as regras de contato físico no perímetro, facilitando (de propósito ou sem querer, não se sabe muito bem) a vida dos armadores que tentassem atacar o aro. Rapidamente pivôs foram perdendo espaço e protagonismo, mas muitas equipes estavam comprometidas por quase uma década com jogadores caríssimos da posição.

Não foi à toa, portanto, que quando jogadores e equipes sentaram para discutir as novas regras contratuais da NBA em 2011 – uma situação que gerou tanto impasse que a temporada acabou tendo apenas 66 jogos – os times queriam reduzir a duração máxima dos contratos para 3 anos, com 4 apenas em casos de um time estar renovando com seu próprio jogador. A ideia era não apenas proteger as equipes de si mesmas – impedindo que péssimos dirigentes pudessem tomar decisões ruins e comprometer todo o futuro próximo da franquia – mas também proteger as equipes dessas mudanças repentinas de regra, de cultura ou de entendimento do jogo. O que ocorreu com os pivôs ao longo dos anos 2000 também ocorreu, em alguma medida, com armadores que não conseguiam arremessar de longe ou que seguravam muito a bola, por exemplo; vários desses atletas tinham contratos longos e caros no instante em que suas equipes perceberam que eles, sob as novas análises estatísticas, não eram mais desejáveis. Some essas mudanças às constantes possibilidades de lesões, idade e queda de rendimento e é fácil entender como os times podem querer evitar contratações de longa duração.

Os jogadores, por outro lado, reivindicavam o oposto em 2011: contratos de 5 anos, com a possibilidade de um sexto em caso de renovações. Para os atletas parecia importante ter essa segurança, especialmente depois de ver jogadores consagrados receberem, repentinamente após alguma mudança na NBA ou lesão grave, uma total falta de interesse no mercado. Para a temporada ser retomada, optou-se pelo meio termo: contratos de 4 anos, com um máximo de 5.

Mas, quem diria, mudanças culturais na NBA acabaram levando desde então os jogadores para a direção contrária, e agora são eles que desejam os contratos mais curtos. Foi uma renovação de 4 anos ao invés de 5 que permitiu a LeBron James, Dwyane Wade e Chris Bosh uma união em 2006 no Heat que lhes rendeu quatro Finais da NBA e dois títulos; o quinto ano na renovação de Carmelo Anthony com o Denver Nuggets foi precisamente o que impossibilitou o jogador de se unir aos seus amigos em Miami e, de certa maneira, mostrou-se uma escolha que acabou pesando negativamente sobre toda sua carreira. Desde então, as grandes estrelas aprenderam uma importante lição: contratos menores não são “falta de segurança”, mas sim CONTROLE: LeBron James saiu de Cleveland após o título porque assina contratos de apenas 2 anos; Kevin Durant fez o mesmo com o Golden State Warriors; até mesmo Kawhi Leonard, famoso por ser comedido e conservador com suas escolhas, assinou um contrato de 3 anos, ao invés dos 4 permitidos, ao se mudar para o Los Angeles Clippers. Estrelas PERDERAM O MEDO, migram agora de um time para o outro e apreciam mais a possibilidade de tomar decisões do que a segurança de um contrato longo e engessado. Por um lado isso faz com que times estejam sempre mudando de cara, colocando times inusitados na disputa pelo título; por outro, impede que os times se planejem a longo prazo, tentando sempre sequências de 2 ou 3 anos rumo a um anel de campeão. Uma década inteira entre os melhores da NBA, como fez o San Antonio Spurs entre 1999 e 2009, parece uma tarefa cada vez mais impossível.

Para além das regras salariais combinadas em 2011, muitos fatores totalmente incontroláveis acabaram levando a NBA nessa direção: o sucesso de LeBron James, a derrocada de Carmelo, um discurso de empoderamento dos jogadores (que vem na esteira de uma mudança cultural maior, de toda a sociedade, com as novas gerações preferindo escolher os rumos de suas carreiras ao invés de permanecer numa mesma empresa até a aposentadoria), e até mesmo a ciência médica e esportiva, que oferece aos jogadores mais garantias de reabilitação em caso de lesões sérias. Esses fatores assemelham-se àqueles que tiraram o protagonismo dos pivôs e de pontuadores solitários como Allen Iverson, e que mudaram regras salariais: são questões externas que de repente invadem a NBA e mudam suas estruturas. É impossível se planejar para elas.

Talvez essa seja uma das coisas mais interessantes sobre a NBA: ao invés de uma liga estática, em que o basquete é jogado sempre da mesma maneira e sob os mesmos preceitos, trata-se de uma liga que responde àquilo que acontece ao seu redor, que reage às questões culturais e econômicas do seu entorno, e que renegocia as regras e suas prioridades de acordo com as demandas dos times e dos jogadores. O Denis fez um trabalho espetacular com sua série sobre história tática da NBA ao mostrar como o estilo do jogo mudou nos anos 50 e 60, 70, 80 e 90, por exemplo. Mesmo a parte do basquete que ocorre dentro das quadras nunca permanece exatamente a mesma, sempre alterado e influenciado pelo que ocorre fora delas.

Justamente por isso o ano de 2020 será certamente considerado um ano de mudança para a liga. Haverá, claro, uma série de mudanças drásticas para que a temporada 2019-20 possa ao menos terminar (no momento em que escrevo considera-se, por exemplo, que a pós-temporada ocorra sem torcida, numa quadra única para todos os times), mas teremos também mudanças que não se darão como exceções desesperadas, mas sim como respostas de curto, médio e longo prazo para a crise, como cicatrizes que restarão dela. São apenas palpites, mas com base nas mudanças que listamos previamente desde o ano 2000, é muito provável que tenhamos mudanças nos contratos – ou, ao menos, na PERCEPÇÃO dos jogadores com relação aos contratos e suas durações, o que impacta toda a liga.


Quando um contrato de um jogador veterano (10 anos ou mais na liga) é assinado, ele pode receber até 35% do dinheiro disponível para o time com contratações – precisamos lembrar sempre, claro, que na NBA existe um teto de gastos, ou seja, o dinheiro disponível é limitado. Nos anos seguintes do seu contrato, o jogador pode ter pequenos aumentos salariais, que são limitados a uma pequena porcentagem por temporada. Mas o dinheiro que fica disponível para contratações, que varia com a quantidade de dinheiro que a NBA fatura a cada ano, tende a sempre aumentar – e aumentou em uma velocidade bastante significativa nos últimos anos. Isso significa que encerrar um contrato e assinar um novo permite que ele seja maior do que o anterior – os 35% de limite não mudam, mas o dinheiro disponível tende sempre a aumentar, deixando os contratos máximos progressivamente mais gordos.

De certa maneira, isso também estimulou estrelas a assinarem contratos menores: há sempre uma esperança de que o próximo contrato será ainda mais valioso do que o anterior. A crescente popularidade da liga, o ingresso no mercado chinês e os valores cada vez altos dos acordos da NBA com as redes de televisão tornaram a liga um negócio em constante ascensão que pode sempre contar com tetos salariais mais altos. Isso até 2020, claro. Antes mesmo de toda a pandemia global começar, a crise política da NBA com a China já apontava para uma perda de até 400 milhões de dólares e uma possível estagnação do teto salarial; com o hiato atual e um possível encurtamento da temporada, talvez estejamos falando de uma antes inimaginável REDUÇÃO do teto salarial das equipes para os próximos anos.

Perto do impacto econômico mundial frente a essa crise, a NBA perder uma grana parece coisa pequena. Mas, como vimos, esse é o tipo de fator externo que acaba tendo efeitos indiretos na maneira com que os times são construídos e, portanto, também dentro das quadras. Possivelmente os contratos novos serão, na temporada que vem, MENORES do que os contratos máximos que já estão em vigor; mesmo se forem iguais, os contratos já em vigor terão uma vantagem, porque podem ter pequenos acréscimos ano a ano que não podem ser colocados desde o princípio. Ou seja, ao menos financeiramente, serão recompensados os jogadores que assinaram contratos mais longos quando as finanças da NBA estavam em alta. Além disso, o impacto de um ano parado – seja por lesão, seja por um CAOS GLOBAL GENERALIZADO – é muito maior nos contratos menores. O Los Angeles Clippers, por exemplo, se viu obrigado a comprometer o futuro da franquia em nome de ganhar um título nos próximos três anos, tempo de duração do novo contrato de Kawhi Leonard. Se um desses três anos for perdido na atual situação, resta pouquíssimo tempo para o Clippers alcançar o que sonhou – uma simples lesão e todo o comprometimento futuro terá sido em vão.

Esse é o preço de times e jogadores optarem por essas “arrancadas curtas”, tentativas momentâneas e pontuais de ganhar um título durante um período muito curto de tempo. O título do Boston Celtics, em 2008, e os do Heat em 2012 e 2013, passaram essa sensação de que trazer estrelas todas de uma vez e investir tudo em alguns poucos anos pode dar grandes resultados; é o que apostou o Lakers e o Knicks recentemente, fazendo times praticamente do zero. A fragilidade desse modelo é que basta alguma estranha condição externa para a arrancada não trazer frutos e não restar mais nada para continuar brigando. É tudo ou nada; se para alguns times o plano deu certo, para outros o legado pode ser uma terra arrasada, sem perspectiva de recuperação.

LeBron James, sempre na VANGUARDA em termos de contrato, parece ter percebido isso em sua nova empreitada com o Los Angeles Lakers: poderia ter assinado seu tradicional contrato de dois anos (sendo um garantido e outro escolha do jogador) mas preferiu um contrato tradicional de 4 anos, justamente o tipo de contrato que ele ajudou a tornar obsoleto. Sua posição é de que o Lakers precisaria de mais tempo para se estruturar, arrumar possíveis erros e se comprometer com um elenco de apoio. Quatro anos ainda é pouco tempo para um time criar um plano, uma estrutura, uma mentalidade, uma CULTURA, mas é mais do que a maior parte dos candidatos ao título conseguem ter hoje em dia. LeBron James certamente fez isso porque achou que seria uma vantagem – para ele, para o Lakers ou para ambos – em comparação com os times rivais. Mas depois da crise atual, além de uma vantagem estratégica, o contrato mais longo volta a ser uma vantagem também financeira, tanto para o jogador (que mantém seus gastos ainda que o teto salarial caia) quanto para os times de ponta, que seguram suas estrelas (e portanto suas chances de continuar brigando por títulos) mesmo que o limite salarial seja ultrapassado.

Os impactos disso a curto prazo devem ser visíveis já na próxima temporada: times que apostaram em tiros muitíssimo curtos (como o Knicks, por exemplo, que pensou num plano de UMA mísera temporada para poder contratar todas as estrelas juntas de uma vez na temporada seguinte) podem tomar um susto ao ver um teto salarial menor, menos poder de contratação e, pior ainda, jogadores não querendo deixar suas equipes, optando por mais um ano de contrato com seus times atuais para manter salários antigos mais vantajosos do que os novos. Será mais difícil construir de uma só vez na temporada que vem, com times que estão reconstruindo de maneira longa e gradual (e especialmente os que estão fazendo isso com jovens jogadores de salários mais baixos) ganhando uma larga vantagem. Por conta disso, dá pra imaginar times como o Atlanta Hawks se saindo bem melhor nos próximos anos do que aqueles que fizeram planos como os do Knicks – o Lakers, por exemplo, poderia facilmente figurar nessa lista, mas deu sorte de conseguir realizar tudo mais cedo, antes dos efeitos da pandemia caírem sobre nossas cabeças.

No longo prazo, é possível que vejamos efeitos semelhantes, com jogadores e times mais interessados em contratos mais longos, “à prova de crise”, e uma mentalidade de que ter controle é, na verdade, PLANEJAR e ter ESPAÇO PARA MANOBRAR, ao invés de tomar decisões drásticas a cada um ou dois anos. Uma NBA de contratos mais longos valoriza mais times organizados do que o poder dos jogadores de se auto-organizarem, o que certamente mudaria a dinâmica da NBA atual. Nesse cenário, casos como o de LeBron James e de Chris Paul correm o risco de se tornarem emblemáticos e, passada a crise, virarem modelos a serem seguidos por outros jogadores. LeBron, como mencionamos antes, ao aceitar um contrato de 4 anos com um projeto que sequer existia antes de sua chegada; e Chris Paul ao mostrar que seu contrato longuíssimo e caríssimo, antes TOTALMENTE INDESEJADO, pode ser transformador para um time organizado que está desenvolvendo jogadores aos poucos e sabe olhar para o futuro com calma. Os sucessos de Lakers e Thunder no mundo pós-coronavírus podem ditar uma nova tendência, que por sua vez mudará as relações contratuais, que por sua vez mudarão o estilo de jogo da NBA. O Thunder é um caso muito interessante, em que a liderança de um jogador veterano e caríssimo garante uma estabilidade (e uma quantidade alucinante de vitórias em jogos apertados) capaz de diferenciá-lo dos outros times jovens que amargam tantas derrotas que sequer conseguem dizer com precisão se estão ou não no caminho certo. Vejo um cenário possível, futuro, em que mais times jovens topam receber veteranos por 4 ou 5 anos, e uma mudança para cima nas durações dos contratos na próxima vez em que times e jogadores se encontrarem para negociar – possivelmente em 2023 se as duas partes concordarem com a necessidade de alterações nas regras.

É claro que até 2023 muita coisa pode acontecer na NBA; a economia pode mudar, a liga pode enriquecer de novo, projetos curtíssimos podem ter sucesso, o Knicks pode ser campeão (quer dizer, não pode, não). Mas a tendência é que os impactos econômicos empurrem, pelo menos um pouco, os times para uma outra direção, mais longa e mais resistente às dificuldades externas, menos impactada por lesões pontuais ou dificuldades econômicas globais. Se isso ocorrer, o basquete também muda, e veremos equipes e jogadores que já apontavam para essa direção como desbravadores, influenciadores e visionários. O que estamos vendo agora, num momento de crise, é apenas o começo de um futuro próximo que, de uma maneira ou de outra, mudará o basquete da NBA como conhecemos – mais uma vez.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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