🔒Uma visita a 1990

Os placares altos da temporada 2018-19 não param de surpreender. Para alguns, seriam responsabilidade do auge do basquete ofensivo; para outros, são responsabilidade do excesso de faltas marcadas pela arbitragem; para os mais saudosistas, no entanto, os placares são responsabilidade pura e simples do fato de que as defesas nunca foram PIORES, e que marcar muitos pontos é mais fácil hoje do que jamais foi. Aqui no Bola Presa já refutamos alguns argumentos de que a NBA está piorando (você pode ler aqui a parte 1, a parte 2 e a parte 3 de uma série em que mostramos que os arremessadores nunca foram tão bons, que a disparidade entre os times não aumentou apesar da percepção de que hoje em dia temos “panelas”, e que a safra de jogadores atuais é espetacular). No entanto, a PERCEPÇÃO é algo muito forte: para além dos números, dos argumentos e dos fatos, muitas vezes percebemos ou sentimos algo diferente porque há algo que confunde, nubla ou atrapalha nossa recepção do mundo. Frente à percepção que volta e meia vejo por aí de que jogadores como Stephen Curry teriam pouca chance contra as “defesas de ouro” dos anos 80 ou 90, resolvi então fazer uma viagem no tempo e analisar um jogo da temporada 1989-90 para ver o que é possível perceber do basquete – e das defesas – desse período.

Primeiro, antes de mergulharmos de cabeça no jogo em questão, precisamos de um pouco de contexto. Ao invés de contabilizar quantos pontos por jogo são marcados por cada time na NBA, a visão moderna é que se analise quantos pontos são marcados POR POSSE DE BOLA – isso porque em algumas temporadas o ritmo do jogo é lento, gerando poucas posses de bola, e em outras o ritmo é acelerado, gerando muitas posses de bola. A temporada atual, 2018-19, tem até o momento exatas 100 posses de bola por jogo, um número bastante elevado e um dos grandes responsáveis pelo aumento dos placares finais das partidas. A última vez que a NBA teve um ritmo mais elevado do que esse foi na temporada 1988-89, em que cada partida tinha 100.6 posses de bola por jogo. A partir de então o ritmo do jogo começou a cair (chegando em seu nível mais baixo na temporada 1998-99), voltando a subir de maneira significativa apenas nos últimos 5 anos.

Resolvi então escolher um jogo da temporada 1989-90, quando tivemos 98.3 posses de bola por jogo, não tão distante assim das 100 posses de bola por jogo da temporada atual. Foi a temporada em que o Detroit Pistons conquistou seu segundo título consecutivo antes do que seria, a partir dali, uma dinastia do Chicago Bulls com três campeonatos em sequência. Por conta disso, resolvi procurar uma partida entre o Pistons e o Bulls, mas não queria uma daquelas partidas épicas, históricas, em que Michael Jordan teve uma atuação surrealmente fora da curva – queria ver algo especial, mas mais próximo de “um dia comum”. Após alguma pesquisa, acabei encontrando na íntegra o Jogo 3 das Finais da Conferência Leste, uma vitória do Bulls após duas derrotas em casa nas primeiras partidas. O Pistons venceu a série numa lavada no Jogo 7, mas no Jogo 3 os 47 pontos de Michael Jordan forçaram uma virada impressionante e garantiram sua primeira vitória em casa na série. Para quem quiser é possível ver o jogo inteirinho no vídeo abaixo:

Abaixo, listo minhas impressões sobre como esse jogo destoa daquilo que vemos na NBA atual.


– Embora os times corram bastante nos contra-ataques, a imensa maioria das bolas de 3 pontos possíveis na transição não são arremessadas. Os jogadores simplesmente abrem mão desse tipo de bola, de modo que as defesas correm todas para perto da cesta. Em uma posse de bola, Isiah Thomas resolve arremessar uma bola de três pontos na transição (que ele converte) e os narradores ficam MALUCOS, alegando que ele arremessou sozinho contra 4 defensores mesmo que nenhum desses defensores estivesse minimamente perto dele. A percepção geral é de que foi um “mau arremesso” simplesmente porque foi apressado. Muitos outros arremessos no começo do cronômetro de arremesso seriam ótimos, livres, mas são deixados de lado em nome de bolas muito piores, contestadas, vários segundos depois. Ainda não era a época de se pensar em arremessos eficientes, o que torna as decisões desses jogadores muito estranhas para os padrões atuais.

– Em parte porque não se preocupam com o perímetro, mas em parte porque as regras dos anos 80 e 90 obrigam a marcação a ser INDIVIDUAL (cada defensor deve estar marcando seu homem ou então ajudando na marcação de um jogador que tenha a bola no momento), a defesa de transição desse Jogo 3 é muito ruim. Muitas vezes os defensores se complicam para encontrar quem deveriam estar perseguindo e acabam deixando gente correr livre em velocidade. Michael Jordan usa essas situações para costurar a defesa e para dar passes para companheiros livres, mas muitas vezes seus próprios companheiros não acompanham e perdem passes excelentes.

– A necessidade de marcação individual (com dobra só podendo acontecer na bola) leva a uma situação bizarra: há muitos defensores no garrafão (já que os dois times usam dois ou mais jogadores constantemente próximos ao aro), mas dificilmente um deles consegue deixar sua posição para ficar no caminho de alguém que está infiltrando. Há um momento em que um pivô tenta antecipar o caminho que Jordan fará para infiltrar e, ao marcar esse espaço, é punido com “defesa ilegal” e o Bulls ganha um lance livre e mais a posse de bola. Isso resulta em vários jogadores tentando infiltrar e trombando em múltiplos defensores, mas também em jogadores explosivos sem ninguém em seu caminho, só precisando “costurar” alguns adversários ou deixar seu marcador original para trás para atacar a cesta com liberdade, como é o caso de Jordan constantemente nesse jogo.

– Como é difícil parar um jogador que tenha batido o seu defensor, e como a marcação é individual, cometem-se MUITAS faltas o tempo todo. Nesse jogo o Pistons cobrou 27 lances livres, enquanto o Bulls cobrou 34. Tanto Michael Jordan quanto Scottie Pippen cobraram 13 lances livres cada no jogo. Não é uma aberração: Michael Jordan cobrou 74 lances livres na série de 7 jogos, ou seja, mais de 10 por partida.

– A única maneira de que um jogador não receba marcação simples individual sem ninguém na cobertura para barrar seu caminho para a cesta é DOBRAR A MARCAÇÃO quando ele tem a bola nas mãos. Curiosamente isso é muito eficiente porque os jogadores que ficam livres nessas situações raramente tentam arremessos de três pontos. A maior parte deles recebe a bola livre e depois tenta infiltrar, o que significa que acabam se aproximando de mais defensores e a defesa tem tempo de se recuperar. Jordan recebe marcação dupla com muita frequência nesse jogo, às vezes quase no meio da quadra, mas seus companheiros aproveitam pouco seus passes. Essa partida mostra que Jordan poderia facilmente ter 20 assistências por jogo – embora, caso ele chegasse a esse ponto, os marcadores certamente parariam de dobrar a marcação em cima dele, claro.

– Quando a dobra de marcação em Jordan acontece ENQUANTO ele está infiltrando, numa tentativa de impedir que ele tenha acesso fácil à cesta, Jordan passa a bola muito bem para TRÁS, onde seus companheiros estão livres – é muito difícil passar a bola para o garrafão nessas horas porque há muitos defensores próximos, embora ele também tente e acabe gerando turnovers e tocos diversos. Esses passes para trás geram arremessos muito livres, mas sempre de dois pontos – isso, por si só, já explica que os times da época façam menos pontos por posse de bola do que hoje em dia. São arremessos FÁCEIS, livres, que valem dois pontos ao invés de três.

– Como pouca gente quer arremessar de três pontos, a marcação dupla acontece numa versão INEXISTENTE nos dias atuais, que é a PRESSÃO DE QUADRA INTEIRA. Ou seja, o jogador que recebe a bola cobrada da linha de fundo já ganha dois defensores, ele precisa passar a bola para outro jogador que por sua vez ganha dois defensores, e assim por diante. Não faltam oportunidades de alguém livre dar um arremesso de longe, mas os dois times ignoram essas chances e deixam as defesas adversárias se reagruparem. Isso faz com que essas dobras pressionadas de quadra inteira sejam eficientes, gerando vários roubos de bola e são as maiores responsáveis pelo aumento do ritmo do jogo, criando mais posses de bola.

– Outra coisa que aumenta o número de posses de bola, especialmente nessa partida, é a quantidade OBSCENA de rebotes ofensivos. O motivo é evidente: cada defensor está cuidando de um único adversário, mas quando um jogador com a bola se aproxima do garrafão, de costas para a cesta, um pivô adversário surge para dobrar a marcação; isso significa que alguém ficou livre embaixo da cesta para pegar o rebote. Nesse jogo o Pistons pegou 12 rebotes ofensivos, enquanto o Bulls pegou 21. A tendência não é só desse jogo: na época se pegava quase 14 rebotes ofensivos por jogo, enquanto hoje são apenas 10 (e na temporada passada não chegava nem a isso).

– Os jogadores tem MUITO espaço para dar arremessos de três pontos e também arremessos longos de dois pontos. Nenhum defensor se preocupa com essas bolas, que são muito eventuais, e portanto ficam muito longe dos jogadores de perímetro, não chegando a sequer LEVANTAR OS BRAÇOS nessas situações. Vale dar uma olhada em quanto espaço Michael Jordan tem quando anda pela linha de três pontos caso quisesse arremessar uma bola:

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Isso se justifica pelo fato de que Jordan só uma única vez na partida resolve numa situação dessas dar um arremesso de 3 pontos – que, aliás, ele converte. Mas esse tipo de defesa “preguiçosa” não acontece só nos arremessos de três pontos, não: separei uma jogada em que Michael Jordan, ao desistir de ficar de costas para a cesta próximo ao aro e se dirigir para um arremesso longo de dois pontos, recebe todo o espaço do mundo de seu defensor e um total de ZERO mãos levantadas na sua direção.

 

E caso você esteja se perguntando, essa defesa do Pistons é a segunda melhor defesa da temporada 1989-90, virtualmente empatada com a defesa do Rockets pelo primeiro lugar. Lembre-se: o Pistons será campeão ao fim dessa temporada, vencendo com facilidade as Finais da NBA em cima do Portland Trailblazers.

–  Como as defesas são individuais e não há ainda a ideia de que os defensores deveriam trocar de alvo após receber um corta-luz, é surreal quantas vezes os jogadores saem totalmente livres quando recebem um corta-luz fora da bola (ou então um hand off, ou seja, quando um jogador solta a bola para um companheiro já fazendo um corta-luz com o corpo). Michael Jordan fica livre o tempo todo nessas circunstâncias, o que destoa demais de como ele sofre com marcação dupla quando está batendo a bola ao iniciar as jogadas. Mas também chama atenção como os jogadores das duas equipes erram arremessos livres de meia distância com frequência, é até um pouco constrangedor – simplesmente porque existem menos arremessadores “especialistas” em quadra, dada a ênfase no garrafão.

– Abrindo mão das bolas de três pontos e com tantos jogadores próximos à cesta, é óbvio – mas também um pouco assustador – que a maior parte dos arremessos seja composta de bolas forçadas, contestadas ou vindas de jogadas de costas para a cesta. Não são bons arremessos e tornam o jogo muito mais “feio” do que nossa memória dá conta de lembrar. Muitas vezes são os jogadores que correm em direção à defesa e não o contrário.


Esse jogo mostra que a vida de Michael Jordan no começo dos anos 90 era muito complicada: sofria dobra de marcação o tempo todo, tinha companheiros que não acertavam arremessos quando recebiam passes livres, gente que não acompanhava sua visão nos contra-ataques e enfrentava garrafões amontoados de gente. No entanto, também tinha facilidades: sobrava espaço para arremessar de três pontos quando ele queria (nessa série contra o Pistons, no entanto, acertou apenas 28% das suas tentativas de três), saía livre de qualquer corta-luz sem a bola para arremessos de média distância, podia bater facilmente seus marcadores individuais quando recebia marcação simples porque não existia marcação por zona nem sobrecarga de defensores num lado específico da quadra para limitar seu movimento, e sofria faltas o tempo inteiro dada a incapacidade dos defensores de poder impedir sua progressão nas regras da época.

Analisar uma única partida de uma temporada aleatória tem valor meramente anedótico, é uma historinha interessante que não necessariamente mostra uma tendência. Mas acredito que a partir desse jogo (em que podemos ver o comportamento de uma das melhores defesas de sua geração e os tipos de arremesso tentados por aquele que viria a se tornar um dos times mais emblemáticos da história da NBA) é possível perceber os indícios de uma maneira de se PENSAR o basquete naquele período. As defesas “fortes” da virada dos anos 80 para os 90 são, na verdade, fruto de dobras de marcação e um excesso de faltas. Seriam consideradas defesas “fracas” caso os jogadores fora do garrafão, livres, acertassem bolas de três pontos, ou caso apontássemos o fato de que essas mesmas defesas cediam um número absurdo de rebotes de ataque. Basta ver esse Jogo 3 das Finais da Conferência Leste para SENTIR que as defesas pressionavam muito mais – é DESESPERADOR ver dobras de marcação nas saídas de bola, é verdadeiramente de tirar o fôlego e muito novato de hoje em dia faria xixi nas calças nessas situações. Por outro lado, esse tipo de defesa foi abandonado porque hoje em dia qualquer jogador usaria essas dobras de marcação de quadra inteira para converter bolas de três pontos, e qualquer dobra convencional na meia quadra levaria a um arremesso de três pontos livre e fácil para um arremessador “especialista”. Hoje em dia as defesas, por poderem marcar em zona, não precisam pressionar com marcação dupla para tirar a bola das mãos de alguém – basta marcar os ESPAÇOS de locomoção do jogador adversário, impedindo que ele infiltre ao ocupar o caminho entre ele e a cesta, e apertando apenas no perímetro, para que não se tente um arremesso de três pontos.

As defesas são diferentes porque as regras mudaram – e a capacidade de arremesso dos jogadores também. Hoje em dia é DESEJÁVEL para o time atacante que um jogador tente uma bola de três no começo do cronômetro de posse de bola caso ele esteja razoavelmente livre, o que faz com que as defesas tenham que impedir esse tipo de jogada. Defender não é impedir uma única jogada específica de acontecer, mas sim impedir o que O ADVERSÁRIO QUER FAZER. Se o adversário quer dar arremessos a dois passos da linha de três pontos, é preciso impedir isso, não dobrar a marcação na saída de bola. Os tempos mudaram: assista ao jogo acima e tente imaginar como os arremessadores de hoje em dia DESTRUIRIAM a defesa de Bulls e Pistons na mesma medida em que os jogadores atuais não saberiam o que fazer com as marcações duplas pressionadas e com a necessidade de infiltrar no meio de 4 defensores adversários.

Assistir aos jogos antigos é um excelente antídoto para o saudosismo: não se trata de achar o basquete da época ruim, mas sim de constatar que ele é drasticamente diferente – aliás, NECESSARIAMENTE diferente porque as regras eram distintas e havia outras coisas com as quais se preocupar. O que se fazia defensivamente na época não funcionaria hoje em dia, e o que se faz hoje em dia seria PROIBIDO pelas regras dos anos 80 e 90. As defesas não pioraram, elas se ADEQUARAM. Se elas não dão conta de Stephen Curry, isso não é diferente das defesas que apesar de tudo não davam conta de Michael Jordan – defesas estão sempre um passo atrás porque elas são REAÇÃO, não ação. Mas assim como aconteceu no início dos anos 2000, eventualmente os ataques estagnam e as defesas alcançam, até que se invente a próxima grande coisa. Defesas, por definição, estão sempre correndo atrás.

Torcedor do Rockets e apreciador de basquete videogamístico.

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